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Narrativa (em meio) digital

Por Sergio Santos

narrativa em meio digital

Foto: Kitty Biscuits (ou Cat Illuminati)

Fonte da imagem: https://goo.gl/NbdcCZ

Um dos acontecimentos literários do ano passado nos Estados Unidos foi a publicação do conto Cat person, da estudante de literatura norte–americana, até então inédita, Kristen Roupenian. O conto, publicado em dezembro na revista The New Yorker, viralizou nas redes sociais e comunidades foram criadas para discutir os diversos temas abordados. A polêmica gerada o alçou à condição de publicação com maior audiência do ano no site da revista.

Cat person conta a história de Margot, de 20 anos, e Robert, 34, cuja atração sexual é instantânea ao se conhecerem no local de trabalho dela, um cinema de arte. Daí surgiram os diversos temas que fizeram o conto viralizar, como gordofobia (Margot se decepciona ao ver a barriga saliente de Robert) e a sexualidade feminina em época de pós–feminismo (mesmo decepcionada com o aspecto físico de Robert, ela decide ir para a cama com ele).

Mas a relação de Margot e Robert se dá, sobretudo, por mensagens eletrônicas. E é para isso que quero chamar a atenção.

Numa entrevista dada ao jornal The New York Times, Roupenian diz que “não queria que seu conto fosse um tédio ao colocar transcrições de conversas eletrônicas”. Cat person, ao privilegiar em sua narrativa algo que se aproximasse de um texto que pode ser facilmente encontrado no Facebook, ou em qualquer chat, parece trazer para a literatura uma certa peculiaridade quanto à forma como esses diálogos, originados na rede, podem aparecer nas obras de ficção.

O tédio a que Roupenian se refere, talvez parta de uma certa dinâmica pertencente ao meio digital que ainda soaria “estranho” ao texto narrativo literário. A grande questão então é encontrar um modo de representação para o modo de comunicação próprio aos ambientes digitais que envolvem não só a sobreposição e interrupções dos turnos de fala, típicos dos bate–papos na rede, mas também as falhas da internet, como sinal caindo ou bugs, tal como podemos ler em Estação atocha (2015), de Ben Lerner, em que há um diálogo, via chat, em meio a falhas de uma rede de internet cujo sinal é ruim (comentada aqui por Luciene Azevedo). São frases sobrepostas, em delay e com chiados. Tudo parece uma mimese cujo propósito é “aproximar” mais o leitor de um ecossistema muito conhecido seu, a partir de suas particularidades.

Carol Bensimon, ao comentar o texto de Roupenian em seu blog, diz que há perigo quando a literatura passa a acompanhar o que está acontecendo up to date no mundo. Segundo ela, isso faria com que a literatura entregasse sua potência ao “conteúdo”, e não “aos atributos literários do texto”. A autora de Sinuca embaixo d’água afirma que quando o conto de Roupenian se aproxima de um “textão do Facebook”, na verdade, está invocando no leitor o mesmo tipo de recepção dessa rede social – um leitor que toma partido, que discute conteúdos, não formas. Embora soe um tanto conservadora, Bensimon aponta para uma antiga disputa entre forma e conteúdo, que reaparece quando discutimos mudanças na forma da representação literária, que é o que parece estar em jogo na incorporação de alguns recursos próprios ao mundo digital na narrativa de ficção.