Arquivo da categoria: Derrida

Curadoria como um processo de (des)montagem e reorganização

Lílian Miranda

Créditos da imagem: Rosana Paulino, técnica mista sobre papel. 28,5 x 38,0 cm – 2016.

No meu último post apresentei a noção de arquivo segundo Jacques Derrida (2001) e minha hipótese de como ela pode nos ajudar a pensar o trabalho feito por Ana Maria Gonçalves para composição do livro Um defeito de cor. Hoje, quero acrescentar mais uma ideia: será que é possível falar em curadoria para caracterizar o modo como a autora (des)monta, seleciona e reorganiza criticamente os documentos de que ela se apropria para a construção do livro?

O curador-chefe do Museu de Arte Moderna de São Paulo, Cauê Alves aborda o papel do curador num contexto contemporâneo em seu textoA curadoria como historicidade viva” (2010) e explica que o curador de arte é o profissional responsável por organizar e supervisionar ou dirigir exposições de arte, seja em museus, nas ruas ou outros locais nos quais esse tipo de atividade pode ser desenvolvida. Ele aponta que a atividade de curadoria implica em reinventar trabalhos de arte suscitando outras experiências. Além disso, afirma que por estar mais próximo do campo da recepção do que da invenção, o trabalho do curador inclui compreender e relacionar as obras de que cuida à história da arte, inserindo-as em um diálogo com outros trabalhos no contexto de uma discussão atual.

Hans Ulrich Obrist em seu livro Uma breve história sobre a curadoria entende a curadoria e a atividade do curador como um trabalho de ligações e escolhas. Ana Maria Gonçalves lança mão desse processo fazendo uma seleção de obras que conversam entre si e compõem uma bibliografia de referência  que registra a história oficial do período colonial no Brasil e os eventos históricos que a autora narra ao longo do livro. Tomás Maria Tavares Diniz Neves e Castro em sua dissertação de mestrado intitulada “Curadoria como interpretação e interpretação sem curadoria: Um ensaio sobre arte”,  afirma:

Um conhecido curador [Obrist] descreveu-se uma vez como um “fazedor de ligações” entre pessoas, objetos artísticos, conceitos e muitos outros tipos de coisas. Segundo esta posição, fazer ligações é uma atividade produtiva que dá origem a novos entendimentos quando se juntam diferentes elementos.

Para Alves o curador é um sujeito que pensa, estuda e reflete sobre obras que mesmo que não sejam do seu agrado, acabam por complementar aquele trabalho que ele está desenvolvendo. Gonçalves elenca uma série de registros que inclui desde fontes primárias –  documentos, anais, revistas e jornais- até obras ficcionais como Viva o povo brasileiro de João Ubaldo Ribeiro e Memorial do convento de José Saramago, por exemplo.

Mas como pensar a curadoria na composição de uma obra ficcional?

Cauê Alves diz que é preciso lembrar que sempre percebemos parcialmente porque há  inúmeras perspectivas que podem dirigir nosso olhar. Embora a narrativa do Brasil colonial tenha sido replicada e recontada ao longo dos anos por diferentes tipos de representações, esses registros constituem partes dessas “percepções incompletas”. Gonçalves realiza uma curadoria dos arquivos que consulta para constituir uma obra ficcional que re(a)presenta uma outra possibilidade de percepção acerca do Brasil colonial e da história dos negros africanos. Representando de forma secundária figuras e eventos tidos como importantes pela história oficial e pelas narrativas canônicas, destacando eventos, costumes, cultura e personagens que sofreram com o apagamento e a impossibilidade de narrar a própria história.

Vamos citar um exemplo: a Revolta dos Malês, episódio em que Luiza Mahin se destaca como uma das heroínas sobreviventes e é comumente lembrado nos livros de história do ensino básico junto a outras revoltas que surgiram na Bahia e no Brasil ao longo do século XIX, o que é – muitas vezes –  feito de forma genérica e pouco desenvolvida. Em Um Defeito de cor a autora realiza muito mais do que uma citação ao evento, ela o ambientaliza a partir da ótica de uma revoltosa que acompanha diariamente os planejamentos para o levante, as reuniões e as complexidades que atravessavam os principais nomes ligados ao movimento, tais como Manuel Calafate e Alufá Licutan, lideranças muçulmanas que foram fundamentais para a rebelião.

Uma outra operação que poderia ser aproximada ao trabalho de curadoria diz respeito à figura de Francisco Félix de Souza, apelidado como Chachá de Souza, o traficante de escravos que é pouco mencionado pela história oficial brasileira, mas que ganha importância e destaque na narrativa de Gonçalves.  Ele foi um brasileiro mestiço que retornou à Uidá na África e cresceu economicamente com  o tráfico transatlântico de africanos de diferentes partes do continente para serem escravizados nas Américas. Chegou a ser um dos maiores traficantes do mundo, tornou-se dono de uma frota imensa de tumbeiros. Na história de Kehinde ela menciona o Chachá de Souza não necessariamente se posicionando com revolta sobre o que ele fazia, mas tampouco concordando com sua estratégia para enriquecer. Ela se relaciona profissionalmente com o personagem por conta de seus projetos de investimentos em Uidá, já que ele era responsável por tudo que entrava e saía dos portos de Uidá e dos comércios que tentavam se expandir por lá.

Ao longo da narrativa, então, são apresentadas outras personagens e episódios que encontram referência histórica, mas que também foram “esquecidos” historicamente. Explorando esses arquivos não explorados pela história, romanescamente, Gonçalves efetua um procedimento de recorte e reorganização desses arquivos, e talvez isso possa ser caracterizado como um trabalho de curadoria.

O (mal de) arquivo: nós lembramos porque esquecemos

Lílian Miranda

Créditos da imagem: (The businessmen, 1947. Jacob Lawrence.)

Como já comentei aqui, meu projeto de pesquisa busca estudar as relações entre literatura e documento investigando os conceitos de arquivo e curadoria em Um defeito de cor de Ana Maria Gonçalves, livro que transita entre história e ficção. Mal de arquivo: Uma impressão freudiana de Jacques Derrida é a primeira leitura teórica da iniciação científica a que venho me dedicando.

O livro de Derrida se baseia numa conferência feita pelo autor em Londres no ano de 1994 e tinha como título original O conceito de arquivo. Uma impressão freudiana. Os primeiros capítulos de Mal de arquivo são dedicados à proposta de revisão do conceito de arquivo e, nos capítulos que se seguem, Derrida analisa criticamente os textos do escritor israelense Yosef Yerushalmi.

Nas primeiras tentativas de leitura a cada virar de páginas surgiram sucessivas interrogações devido à densidade do livro, ao modo de encadeamento das ideias e ao comentário de conceitos freudianos, até então novos para mim, como pulsão de morte – desejo de destruição – e a própria noção de inconsciente, conceito que Freud explica a partir da ideia de que a consciência possui muitas lacunas e determinados atos psíquicos só podem ser justificados pela pressuposição de outros atos para os quais a consciência não oferece provas. Derrida propõe que a teoria da psicanálise seja também uma teoria do arquivo. Só após algumas releituras, pude apreender melhor o percurso que o autor traça para explicar sua teoria.

Derrida revisita a etimologia da palavra arquivo, que vem de arkhê e que significa começo e comando, o que remete à ideia de arquivo enquanto origem e autoridade. O autor chama atenção para esses significados. Ele aponta que o arquivo deve se distinguir das noções de experiência de memória e retorno à origem (pois é uma forma de reduzi-lo) e também de noções como arcaico, arqueológico, lembrança etc. No que tange à ideia de comando – relacionada ao arconte, aquele que comanda e que representa uma autoridade – podem ser apresentados dois vieses. Por um lado, o arquivo não deve ser considerado uma autoridade visto que também é um registro arbitrário e manipulável. Por outro lado, essa mesma ideia expõe a relação entre poder e arquivo, a detenção e o controle sobre o documento, ou nas palavras de Derrida: “Não se renuncia jamais ao poder sobre um documento, sobre sua detenção, retenção ou interpretação”.

Joel Birman em Arquivo e Mal de Arquivo: Uma Leitura de Derrida sobre Freud afirma que:

a ousadia teórica de Derrida estaria em  afirmar que o arquivo seria necessariamente lacunar e sintomático, isto é, descontínuo e perpassado pelo esquecimento em decorrência da sua própria virtualidade.

Derrida afirma que a leitura do livro O Moisés de Freud. Judaísmo terminável e interminável (1991) de Yerushalmi (que interpela Freud sobre seu comprometimento com o judaísmo) foi fundamental para repensar a noção de arquivo e enunciar a concepção de mal de arquivo. Dois gestos são fundamentais para isso acontecer.

Derrida se detém sobre a interrogação de Yerushalmi a Freud, no final de seu livro, sobre o reconhecimento pelo próprio Freud de sua condição como judeu e criador da psicanálise. Derrida afirma que Yerushalmi lida em seu livro com um gigantesco arquivo que contém não apenas a produção científica de Freud, mas também sua correspondência e é aí que é possível encontrar em uma carta de Freud ainda jovem a afirmação identitária de que ele é um judeu. Mas Derrida diz que Yerushalmi ao reiterar a pergunta pelo judaísmo de Freud (mesmo conhecendo a carta) parece realizar dois movimentos simultâneos: “esquece” um documento importante (a carta) e, simultaneamente, torna concreto o “mal de arquivo”, que representa uma paixão, uma procura pelo “arquivo onde ele se esconde”, dirigindo-se a ele com um desejo compulsivo, repetitivo e nostálgico”.

As considerações de Derrida a respeito da noção de arquivo podem ajudar a pensar o romance de Ana Gonçalves, Um defeito de cor, se consideramos, por exemplo, a extensa bibliografia apresentada no final do livro. Como se atuasse como uma curadora das leituras e pesquisas que faz, Gonçalves reabre e manipula um arquivo que contém obras que se empenharam em discutir representações do país (na bibliografia constam Jorge Amado, Gilberto Freire e Nina Rodrigues, por exemplo).

Ao valer-se do velho artifício do manuscrito encontrado por acaso, abandonado ao léu, Gonçalves quer renovar o arquivo de representações sobre o Brasil, sua constituição como nação, ao escolher como heroína, Kehinde, mulher negra escravizada que representa uma voz historicamente silenciada no Brasil. Assim como Yerushalmi, Gonçalves “esquece” a narrativa convencional dos eventos  históricos e explicita seu “mal de arquivo”, sua paixão, seu desejo por um arquivo que faça justiça àqueles que vieram do outro lado do Atlântico e que foram impedidos de  contar ou deixar registradas suas histórias.