Arquivo do mês: dezembro 2015

Sobre uma estética relacional

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Por Elizangela Santos

De acordo com o crítico de arte Nicolas Bourriaud, diretor da Escola Superior de Belas-Artes, em Paris, a produção artística vivencia o tempo de uma estética relacional, cujo foco encontra-se na convivência e interação das manifestações de arte, ou seja, uma sensibilidade coletiva da qual fazem parte novas formas da prática artística. Pensando nisso, será que poderíamos pensar na internet como uma nova forma de mobilização e integração dessa “sensibilidade coletiva” quando se trata de novas formas de práticas artísticas?

Para o crítico, os artistas contemporâneos buscam formas de estar no mundo, apostando na ideia de arte como um campo de trocas. A obra de arte é entendida como princípio dinâmico, construído por meio da interação entre autor, espectador e obra; a obra existe exatamente nessa relação em que o outro/espectador é elemento importante para a realização do objeto artístico.

Assim, Bourriaud chama a atenção para formas de práticas artísticas que colocam em segundo plano conceitos como originalidade e autoria, pois o autor defende uma espécie de ligação da arte com a esfera das relações humanas e seu contexto social. Para o curador, há uma rede colaborativa entre artistas e não-artistas que visa à interação e à produção de subjetividades; deixando de lado o espaço simbólico autônomo e privado das atividades artísticas. Nisso consiste a ideia de uma estética relacional.

Ao acompanhar a produção contemporânea em artes plásticas, Bourriaud percebe que em artistas dos anos 1990, como Pierre Huyghe, Rirkrit Tiravanija, Dominique Gonzalez-Foerster e Maurizio Cattelan, por exemplo, existe a noção comum de arte como campo de trocas. Unindo essa concepção ao espaço que a internet abre para as possibilidades de interação, pode-se creditar a essa ferramenta as novas experimentações no campo artístico.arena-felix-gonzc3a1lez-torres

Um dos exemplos comentados pelo curador francês é a exposição de Gonzalez-Torres, na galeria Jennifer Flay, em 1993. Aí, o artista montou um quadrilátero no meio da galeria, delimitado por lâmpadas acessas e disponibilizou walkmans aos visitantes para que dançassem em silêncio sob as guirlandas de luz. O “espectador” é levado a interagir com a obra, completando-a como elemento integrante desta.

O espaço das obras desse artista, de acordo com o curador, “é elaborado na intersubjetividade, na resposta emocional, comportamental e histórica que o espectador dá à experiência proposta”.

A estética relacional de Bourriaud interessa a meu trabalho na medida em que gostaria de pensar a literatura contemporânea sob um novo paradigma de produção, circulação e recepção, considerando a possibilidade de ler as produções literárias contemporâneas sob a lógica da pós-produção, para usar outra nomenclatura cara ao crítico francês, em que as noções de autoria e originalidade são repensadas.

Literatura e autoficção

Por Luciene Azevedo

Não é difícil encontrar hoje opiniões criticas que concordariam com certa desliteraturização da literatura em virtude da avassaladora incidência das narrativas em primeira pessoa no cenário contemporâneo. Acusando-as de regojizo com a exploração detalhada das menores “emoções, as mais insignificantes experiências sexuais, as reminiscências mais fúteis”, Todorov, em seu mea culpa estruturalista, toma a autoficção como bode expiatório do perigo que ameaça o literário.

Evocar a morte da Literatura não é coisa tão nova assim. Sua exaustão já estava tematizada pelo crítico americano John Barth em um artigo de 1984 e, nas anotações à preparação de seu seminário sobre o romance no College de France, Roland Barthes reconhece alguns “sinais de desuso”, um “sentimento de que a literatura, como Força Ativa, Mito vivo, está, não em crise (fórmula fácil demais), mas talvez em vias de morrer.”

Em outro momento do mesmo conjunto de anotações às aulas do curso sobre a preparação do Romance, Barthes comenta que há uma “certa transformação do Biográfico”, que parece se imiscuir em algumas obras importantes do século XX (além de Proust, claro, Barthes está pensando também em Gide), mas o mais impressionante é o diagnóstico certeiro que faz sobre o que chama de uma “renovação da relação vida/obra”, como se estivesse revisando a si mesmo, a suas proposições sobre a célebre morte do autor, sugerindo que “a posição da vida como obra, aparece pouco a pouco, como um verdadeiro deslocamento histórico dos valores, dos preconceitos literários”.

No caso da operação autoficcional levada a cabo em muitas narrativas contemporâneas, o próprio eu é absorvido e dramatizado ficcionalmente. Menos que prestar reverência ao velho “documentarismo positivista” ou servir como panegírico à era do narcisismo, o uso de elementos não ficcionais provoca um curto-circuito na ideia de literatura moderna sob a qual ainda hoje vivemos, pois essa ideia teve como fundamento a legitimação da ficção como algo que se fundamentava no anticonfessionalismo e no antidocumental. “A arte cria a distância do eu”, diz um verso de Paul Celan.

As narrativas autoficcionais valem-se da chancela da ficção, de sua reconhecida capacidade de consumir outros gêneros, para fazer a literatura provar de seu próprio veneno. Arriscando-se perigosamente à pura mistificação, as narrativas autoficcionais continuam requerendo a etiqueta do romance, mas aproveitam para falsificar a moeda literária, enxertando gêneros não-ficcionais (o ensaio, o diário, a autobiografia) e formando no tecido narrativo pequenos grumos de autonomia: são verdadeiros ensaios, diários e autobiografias contaminados de ficção, de literatura.

Muito mais do que considerar o hibridismo da autoficção como marca característica de  uma desrealização discursiva da literatura, apostando na indistinção total entre a ficção e a realidade ou na impossibilidade de circunscrever zonas de operação artísticas, acredito que o hibridismo é um dispositivo que opera uma expansão, uma transformação das características modernas que comumente, há mais de 300 anos associamos à literatura, como a autorreferencialidade ou o estrito rigor da construção formal do objeto, por exemplo.

Tomemos, por exemplo, as narrativas de Ben Lerner, escritor americano que teve seu primeiro romance, Estação Atocha, traduzido no Brasil. Aí, as características do protagonista podem facilmente ser associadas as do autor, pois é fácil identificar a história de Adam Gordon a do próprio Ben Lerner: um jovem escritor contemplado com uma bolsa para passar um ano na Espanha a fim de escrever um livro de poemas. O escritor sente-se uma fraude e essa mesma experiência fraudulenta reaparece tematizada no segundo livro do autor, 10:04. “Eu convoco a fusão do autor histórico com o autor ficcional”, afirma Lerner.

E não é só na condição de autor que Lerner fala de uma estranheza em relação à condição do literário hoje. Na resenha que escreveu para os três primeiros volumes da hexalogia do autor norueguês Karl Ove Knausgaard, Lerner se pergunta se há uma forma estética em Minha Luta ou se se trata apenas de uma coisa após a outra. Dando por certo que não se pode tratar a narrativa como uma ficção no sentido convencional, Lerner centra sua atenção no que chama de uma disposição antiliterária por trás do projeto de Karl Ove e entende que os volumes de Minha Luta funcionam como uma espécie de crônica que ilustra como o autor dá as costas ao gênero romance.

Explorar, portanto, as operações narrativas contemporãneas me parece um convite feito pelas produções atuais que mantendo um efeito-de-literatura, usam a própria literatura, sua estabilidade histórica associada à alta modernidade, para recodificar o próprio sentido do literário, redesenhando uma transformação do objeto literário na direção de algo ainda não bem definido, “uma literatura que vem após a literatura”, como afirma Lars Lyer em artigo à revista Serrote publicada em 2012.

Eu Googlo, tú Googlas, nós Googlamos: sobre a poesia de Angélica Freitas.

debora

Por Débora Molina

Hoje, a plataforma da web mais visitada no mundo é o Google. Utilizamos o Google para obter receitas de bolo, bulas de remédios, para procurar endereços, pessoas, saber quem foi Isaac Newton e até mesmo os passos de como fazer um bom nó. Quem nunca escreveu algum texto com o auxílio de dezenas de abas do Google que continham variados links sobre determinado assunto? Ou ainda para pesquisar sites que embora saibamos o endereço preferimos acessar pelo link oferecido pelo Google? O Google é um recurso tão utilizado que pesquisar no famoso site deu origem a um novo verbo: Googlar. E a googlagem não ficou de fora da escrita literária trazendo para o campo mais uma possibilidade de fazer literatura no contemporâneo.

No ano de 2013, a autora gaúcha Angélica Freitas, no livro O útero é do tamanho de punho, utilizou a ferramenta para escrever suas poesias. ‘3 poemas com auxílio do google’, intitulados ‘A mulher vai’, ‘A mulher pensa’ e ‘A mulher quer’, buscam representar os olhares lançados sobre o mulher na sociedade contemporânea. Em uma declaração no Fórum de Literatura contemporânea desse ano, Freitas nos contou que enquanto escrevia o livro, decidiu pesquisar como eram escritos os textos sobre o corpo da mulher que estavam na internet, foi então que colocou no campo de busca as frases iniciais de cada poema entre aspas obtendo diversos resultados. Utilizando o procedimento de recorta e cola, Angélica Freitas selecionou algumas das frases que apareceram na pesquisa e tentou dar uma ordem que desse algum ‘resultado’ para a escrita:

A mulher quer

a mulher quer ser amada

a mulher quer um cara rico

a mulher quer conquistar um homem

a mulher quer um homem

a mulher quer sexo

a mulher quer tanto sexo quanto o homem

a mulher quer que a preparação para o sexo aconteça lentamente

a mulher quer ser possuída

a mulher quer um macho que a lidere

a mulher quer casar

a mulher quer que o marido seja seu companheiro

a mulher quer um cavalheiro que cuide dela

a mulher quer amar os filhos, o homem e o lar

a mulher quer conversar pra discutir a relação

a mulher quer conversa e o botafogo quer ganhar do flamengo

a mulher quer apenas que você escute

a mulher quer algo mais do que isso, quer amor, carinho

a mulher quer segurança

a mulher quer mexer no seu e-mail

a mulher quer estabilidade

a mulher quer nextel

a mulher quer ter um cartão de crédito

a mulher quer tudo

a mulher quer ser valorizada e respeitada

a mulher quer se separar

a mulher quer ganhar, decidir e consumir mais

a mulher quer se suicidar

(FREITAS, p. 72, 2013).

As frases reproduzem uma teia de clichês que envolve o desejo feminino. Como sabemos, a pesquisa do Google apresenta os resultados de acordo com uma ‘hierarquia’ relacionada ao número de acessos de cada site. Deste modo, ao pesquisar e recortar as frases sobre ‘a mulher quer’, Angélica Freitas trouxe para o poema o recorte do retrato da sociedade machista em que vivemos, afinal, tudo o que a mulher quer é o que escreveram sobre ela.

A apropriação de frases retiradas de uma ferramenta virtual parece brincar com o conceito de autoria e também com o próprio fazer poético, cujo procedimento principal, no caso desses poemas, está baseado no recorte e cole.