Arquivo da categoria: Anonimato e singularidade

Formas narrativas de uma vida anônima e impessoal

Samara Lima

Créditos da imagem: Doctor Heisenberg’s Magic Mirror of Uncertainty, Duane Michal, 1998

Em La vida impropria: anonimato y singularidad (2022), a professora e crítica literária Florencia Garramuño analisa diversas produções de artistas plásticos, escritores e cineastas latino-americanos, como Rosângela Rennó, Edgardo Dobry e Veronica Stigger, a fim de comentar sobre algumas práticas estéticas contemporâneas que parecem abandonar a preocupação com a individualidade e a identidade para explorar formas do impessoal e do anonimato.

Segundo a autora, é possível perceber nas produções atuais um drástico esvaziamento das categorias de indivíduo e subjetividade, pois as vozes, os personagens e narradores expressos nessas obras aparecem muitas vezes como meras testemunhas de um acontecimento, buscando abster-se de toda interioridade e propriedade em função da valorização de situações exteriores, das relações afetivas e da cartografia de espaços e coisas.

O fato é que tais práticas não estão interessadas em uma construção de uma personalidade, em relatar a vida de um sujeito ou de um grupo social em específico, mas, sim, desenhar formas de vidas que transcendam as singularidades de cada um para abarcar o que elas têm em comum com os outros. É importante pontuar que as produções que buscam apostar na impessoalidade não estão completamente privadas do “eu”, pois, como a própria Garramuño argumenta, o impessoal não é o contrário do pessoal. Aí, o que parece estar em jogo é a tentativa de fazer das experiências mais íntimas uma possibilidade de experiência de qualquer pessoa.

Durante a leitura do livro tenho vagado pela minha estante à procura de narrativas literárias que incorporam as dinâmicas da impessoalidade como mecanismo de construção de um olhar sobre a macrohistória. Ou seja, que pensam as relações cotidianas e os eventos do mundo para além da perspectiva da vivência individual.

A primeira obra que me ocorreu foi Os anos (2021), que é apresentada ao leitor como uma autobiografia impessoal de Annie Ernaux, a qual narra a trajetória da autora desde 1940, o ano de seu nascimento, até meados da década de 2000. O livro é baseado numa coleção de fotografias da escritora em diferentes momentos de sua vida. Memórias pessoais, referências culturais e tendências sociais, situações ordinárias e história política, unindo a perspectiva de um indivíduo (Ernaux), de uma geração (aqueles que cresceram após a Segunda Guerra Mundial) e de uma nação (França).

Quanto à forma, um dos aspectos do “coletivo” fica evidenciado no traço mais marcante dessa espécie de autobiografia: Ernaux nunca usa a primeira pessoa do singular, pois constrói o relato a partir do “nós”, ou ocasionalmente, do “um” e “ela”. Essa escolha estilística reflete, por exemplo, a descrição da narradora sobre a maneira como os seus familiares contavam histórias da Segunda Guerra Mundial: as histórias eram contadas com o uso do “nós”, dos pronomes indefinidos e construções impessoais, como se todos fossem igualmente afetados pelos acontecimentos.

Em diversos momentos Florencia Garramuño afirma que uma das potências das formas anônimas é imaginar um certo viver-junto (resgatando Barthes), principalmente no contexto atual de crescimento de ideologias fascistas que destroem toda forma de coexistência. Neste sentido, penso que uma das forças do livro de Annie Ernaux é justamente a luta contra os convites ao individualismo consumista gerado por constantes apelos à singularização e a tentativa de reabilitar o interesse e o valor do comum, dado aqui como uma história que, ao fazer do seu corpo de mulher um lugar de encontro com tantas outras vidas pode, sim, ser compartilhável.