Arquivo do mês: fevereiro 2018

O editor e a autopublicação

Por Neila Brasil

 

As relações entre autor e editor são complexas e matizadas. Cabe ao editor, em última instância, decidir quais textos serão transformados em livros e como estes livros serão editados, distribuídos e comercializados, dependendo do público que se quer atingir e das demandas do mercado e diretrizes comerciais da empresa para a qual trabalha. O editor, portanto, é detentor de saberes e poderes específicos, que implicam em responsabilidades e tomada de decisões nas esferas intelectual, social, financeira, administrativa e jurídica.

Como observou com argúcia o editor da famosa editora alemã Suhrkamp, Siegfried Unseld, as relações entre autores e editores se caracterizam por um mal-estar persistente, que resulta da própria atividade do editor, que tem duas faces, como o deus Jano. Por um lado, o editor tem habilidades para reconhecer uma “obra sagrada” (o nome do editor Maxwell Perkins é emblemático), por outro, é um comerciante que precisa vender.

Em muitas situações o editor é peça fundamental para a concretização do texto de um escritor que está no início de sua trajetória. Devido à sua experiência no campo, o editor, por meio da observação de elementos e detalhes que muitas vezes passam despercebidos aos olhos do escritor, modula o texto final, tornando-o mais adequado para a edição e comercialização.

Na visão de Luiz Schwarcz, fundador da Companhia das Letras, que manteve durante algum tempo um blog na página da editora na internet,  o relacionamento entre autor e editor assemelha-se, muitas vezes, às relações amorosas ou familiares, compostas de altos e baixos e susceptíveis a rompimentos catastróficos. O editor acrescenta ainda que a parceria pode ser crucial ou irrelevante para o resultado final da obra, e que há, por parte do editor, comprometimento integral em relação à obra, desde a leitura minuciosa do texto até a sugestão para resolução de problemas práticos envolvendo as condições de criação do autor. Entretanto,  há casos em que o editor excede seu papel, interferindo no processo de criação do autor ou arrogando-se um poder maior do que possui de fato. Aqui, o caso mais clássico é a parceria de Gordon Lish e Raymond Carver.

Atualmente, todo o campo literário, incluindo aí a atividade editorial, tem sofrido o impacto das inovações tecnológicas. A autopublicação é uma delas. Se, em outros tempos, os autores que não contavam com uma grande editora para investir em sua obra pagavam uma versão impressa, hoje, muitos autores optam por uma edição virtual, que é um recurso acessível e barato. Uma inovação tecnológica, que está modificando a forma de produzir e divulgar literatura, é o surgimento de plataformas que possibilitam financiamentos coletivos. Uma das grandes vantagens dessa ferramenta é que ela oferece independência ao escritor que, agora, pode manusear seu trabalho sem ter que atender às exigências das editoras ou negociar mediações com o editor.

A utilização dessas plataformas atribui ao autor toda a responsabilidade pela publicação e divulgação do livro. Para participar, muitas plataformas exigem apenas que o interessado inscreva-se na plataforma de financiamento coletivo, apresente seu projeto em vídeo e defina uma meta e um prazo de arrecadação. A partir daí, os eventuais colaboradores passam a fazer contribuições financeiras para a execução do projeto.

Embora algumas pessoas enxerguem a novidade como uma ameaça ao mercado editorial, a utilização da ferramenta tem mostrado o contrário: através de parcerias entre as plataformas, as editoras, os escritores e os investidores, está sendo possível criar uma nova cultura, que valoriza a produção independente. Um exemplo é a proposta da coletânea de poesia brasileira Garganta, feita por Sérgio Cohn (ele mesmo um poeta-editor responsável pela Azougue) por meio da plataforma “Embolacha” que propõe a produção de um vinil com registro sonoro da poesia brasileira contemporânea falada pelos próprios autores.

Atualmente, a revolução tecnológica é responsável por grandes mudanças no cenário editorial. A facilidade da autopublicação na rede é apenas um exemplo disso, e de como podem mudar as relações entre autores e editores.

O professor e a literatura

 

Por Luciene Azevedo

Recebendo todo semestre alunos que ingressam nos cursos de Letras, costumo perguntar quantas pessoas do círculo de relações deles podem ser consideradas leitores e leitoras de obras que, apesar da elasticidade do termo, possam ser chamadas de literárias. O silêncio que recebo em resposta não deixa de provocar certa melancolia. Por outro lado, é comum ouvir dos alunos, durante as aulas de literatura brasileira ou de teoria literária, a queixa de que há muita “teoria” e que a prática, a dinâmica didática do ensino da literatura nunca lhes é oferecida, ao menos não suficientemente, no entendimento dos alunos, pelo currículo do curso de Letras.

Não é incomum ouvir e testemunhar a estupefação dos alunos diante da dissonância cognitiva que experimentam ao ouvirem falar da literatura nas aulas. Muitos chegam a confessar o constrangimento de não serem leitores, mesmo tendo se decidido pela formação como professores de língua e literatura. O que os futuros professores afirmam é que a experiência como alunos do ensino fundamental, principalmente no ensino médio, deu-lhes uma ideia da literatura como um conjunto enfadonho de nomes de autores, datas, características de períodos literários e pouca ou quase nenhuma experiência de leitura dos próprios textos apresentados a eles como literários.

Todo semestre tenho de me desdobrar para inserir os alunos na discussão da dificuldade da definição do literário, da falta de uma essência da matéria sujeita às mutações culturais, acostumá-los ao gosto pelas perguntas, mais que à urgência das respostas definitivas a fim de fazerem conviver dois objetivos do ensino da literatura: a oferta ao aluno do conhecimento de sua tradição cultural, literária e a formação de sua proficiência de leitura das produções dessa tradição.

Lendo recentemente o texto de Paulo Franchetti na coletânea organizada por André Cechinel  encontro nele uma avaliação ampla sobre a condição do literário hoje: a de que a teoria literária suplantou a leitura da literatura e que por isso também é responsável pela perda da relevância social da literatura hoje. Tomando como base sua própria formação profissional, Franchetti alia a perspectiva testemunhal a uma acurada análise da profissionalização do estudos literários na universidade. Seu texto é um passeio pelas diferentes vertentes analíticas da obra literária, indo desde a boa e velha “explicação de texto”, passando pelo estudo intrínseco do texto que inaugura a prática da teoria literária na academia até chegar ao triunfo da análise estrutural entre nós.

Mas o mais interessante de seu posicionamento consiste no elogio ao ecletismo dos métodos analíticos para a leitura da obra literária.  Franchetti afirma que ao longo de sua formação vivenciou nas aulas da universidade a combinação de métodos distintos (um pouco de ‘explicação de texto’, mais alguma coisa de crítica sociológica, por exemplo) que, analisados hoje, operaram uma “síntese improvável” em sua própria atuação docente, pois a combinação eclética dos métodos analíticos que o formaram privilegiava a “leitura produtiva do texto”, a “leitura analítica como principal função do estudo da literatura”, independente do instrumental teórico utilizado.

A leitura recente desse posicionamento me fez lembrar minha condição de estudante ainda na pós-graduação quando ouvi de um professor que a teoria literária tinha morrido, não existia mais, pois não dava mais conta da tarefa de entender a literatura. Hoje, mais de 20 anos depois, entendo a provocação um pouco como um lamento à la Compagnon, chorando seus “amores”, como uma crítica a certa instrumentalização excessiva da teoria, entendida como uma caixa de ferramentas ou como um aparato conceitual autossuficiente.

No cotidiano de minhas aulas, a teoria é um elemento utilizado para ampliar as possibilidades de conhecimento sobre o modo de leitura dos textos literários. Digo isso porque acredito que a teoria é uma prática de leitura, um exercício de escrutínio das diferentes dimensões do texto considerado literário (sua forma, sua linguagem, seus entornos), que oferece ao aluno a possibilidade de ampliar suas perspectivas de leitura, de ter “uma percepção melhor das implicações das questões que coloca às obras que lê”, com assevera um clássico de nossa área  e por isso sempre me soou estranha e estreita a oposição entre teoria e prática.

O cultivo como prática docente da multiplicidade dos interesses e do ecletismo das perspectivas teóricas são defendidos por Franchetti como a luz no fim do túnel. Assim, antes de ser um professor de teoria da literatura, o professor universitário seria um “professor de leitura, um profissional capaz de obter o maior rendimento de leitura de um texto literário com vistas à formação de um público culto”. Burlando a dicotomia entre a prática e a teoria, Franchetti propõe “um lugar novo para a literatura, no âmbito da formação humanística ampla”.

Tendo comentado -e abonado- aqui mesmo no blog a postura descrente do filósofo alemão Peter Sloterdijk em relação ao humanismo, minha primeira reação às proposições de Franchetti é torcer o nariz, mas ao mesmo tempo me identifico com a ideia de que a literatura “é um conjunto de textos, produzidos em épocas (e línguas) diversas, que merece o esforço de aproximação, entendimento e mobilização de todo o arsenal disponível para compreender as obras do ponto de vista mais complexo, mais abrangente possível”, como afirma o professor da Unicamp.

Talvez o impasse não possa mesmo ser resolvido e sua validade seja a de servir simultaneamente como pergunta e  resposta, pois talvez a grande questão esteja nos modos como imaginamos nossas identidades, quem somos e como atuamos como professores, e como pensamos sobre nosso objeto de trabalho, de estudo e de prazer. E assim talvez estejamos contribuindo para  reinventar a justificativa para o lugar e o papel da literatura no século XXI.