Arquivo da categoria: Philip Roth

Conflitos difusos em Philip Roth

João Daniel Oliveira[1]

Créditos da imagem: Gespenst eines Genies, Paul Klee

            Quando saiu no ano passado, pela Companhia das Letras, o livro Por que escrever? Conversas e ensaios sobre literatura 1960-2013, de Philip Roth (falecido em 2018), considerei-me afortunado. Eu ingressara no Programa de Literatura e Cultura da UFBA um ano antes, para iniciar meu Doutorado, e me questionava, como ainda hoje me questiono, se o meu projeto não seria lá muito audacioso. Insinuei – no anteprojeto – e continuo insinuando – em artigos de disciplinas, em conversas e reuniões de orientação – que Roth sustentou uma espécie de projeto literário difuso e em conflito com ele mesmo. Devo dizer que o meu projeto para escrever a tese também me parece difuso, em geral; e eu também me flagro, vez ou outra, em conflito comigo mesmo quanto a essa questão. Por isso, vislumbrei em Por que escrever? a possibilidade de pescar informações fornecidas pelo próprio Roth que pudessem validar a ideia.

            Um dos seus ensaios mais famosos, que naturalmente consta na coletânea, fornece uma pista: em Escrevendo ficção nos Estados Unidos, Roth sugere que a vida real estaria tão insana que já teria superado a capacidade imaginativa da ficção, pondo os escritores em uma sinuca de bico. Essa foi uma reflexão feita em 1960. Até então, Roth havia publicado um único livro (Adeus, Columbus). Era como se ele estivesse dando permissão a si mesmo para chutar o balde literário, uma vez que a sociedade americana, tresloucada, estaria apta para lidar com isso. A reação hostil da comunidade judaica tradicional ante os contos de seu primeiro livro nada mais seria que uma manifestação de nicho. Mas, como se sabe, algumas coisas acabaram saindo do eixo.

            Com O complexo de Portnoy (1969)– um romance potente, erótico, polêmico –, Roth sentiu na pele a reação do país que, afinal de contas, fez Hawthorne escrever A letra escarlate. Penso que o ressentimento de Roth com o puritanismo americano (e, em certa medida, com a questão judaica), que já se encontrava demarcado em Adeus, Columbus, passou a polvilhar com ainda mais intensidade toda a sua obra subsequente, não apenas no conteúdo, mas também na forma. Esse ressentimento – o alicerce do seu suposto projeto difuso – parece estar presente, também, nos textos de Por que escrever? Praticamente todas as entrevistas que constam no livro tocam no assunto Portnoy; há uma específica sobre este livro, na qual seu autor está particularmente passivo-agressivo. Há conversas com outros escritores; há palestras; há ensaios bastante inusitados (em um deles, Roth imagina um Franz Kafka imigrante, morando nos EUA, em contato com sua família); e a sombra do ressentimento parece alcançá-los todos.

            Talvez Roth tivesse ojeriza às pretensões taxonômicas do seu trabalho, e eu também não gostaria de ficar à mercê da possibilidade de ter que empreender leituras e análises de todas as suas obras para poder escrever a tese. Mas devo confessar que, quando cheguei na leitura do texto Suco ou molho?, mais de 400 páginas depois, fui tomado de súbita emoção. Nessa palestra de 1994, Roth nos conta que, certa feita, em 1956, numa lanchonete qualquer, encontrou perdida numa mesa uma folha de papel com 19 frases datilografadas. As frases – que ele lê na palestra – seriam nada menos que os 19 inícios dos seus 19 romances publicados até então. Fiquei perplexo. Não seria isso um indicativo robusto de que houve uma tentativa de projeto literário rothiano? Se esse papel existiu de fato, se ele mente ou não, é o que menos importa. Eis sua descrição: “Esse documento – essa brincadeira, essa dádiva, essa coisa incompreensível, seja lá o que fosse, esse nada” – palavras, devo dizer, assustadoramente atribuíveis a vários de seus livros.

Inclusive, não deixa de ser irônico – este elemento tão caro ao discurso rothiano – o fato de que essa mesma palestra acabou sendo publicada como posfácio à edição comemorativa dos 25 anos de O complexo de Portnoy, a obra de cuja sombra inexorável ele tentou tantas vezes escapar (e, pelo visto, falhando), o texto cuja recepção de público e crítica, ao longo dos anos, aparentemente só fez intensificar a sua matéria-prima talvez mais frutífera: seu próprio ressentimento.  


[1] João Daniel Oliveira é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura da UFBA. É mestre e especialista em Estudos Literários pela UEFS, instituição na qual também se graduou em Letras Vernáculas. É professor do ensino básico, escritor e membro do Conselho Municipal de Cultura de Feira de Santana, representando a cadeira de literatura.