Quando os caminhos da pesquisa e da sala de aula se cruzam

Milena Tanure

Créditos da imagem: Locked, Victoria Ivanova.

Partindo das bases da narratologia e da teoria da lírica, tentei certa vez em sala, na busca por análises mais elaboradas de meus alunos, diferenciar narrador, eu lírico, personagem e autor…e essa foi a oportunidade perfeita que minha aluna de 14 anos teve para, com sua formação leitora, sem uma discussão teórica sobre o pacto ficcional de Lejeune ou as discussões sobre a autoficção, questionar: “Mas na literatura contemporânea há uma equivalência de nomes entre narrador e autor em vários livros, professora!”. É bom observarmos que aí não há um questionamento, mas uma convicção de leitora. No mesmo sentido, falando sobre aspectos biográficos de certo autor brasileiro, a aluna manifestou que tal história estava parecendo uma fanfic…termo, aliás, muito citado pelos jovens alunos que, no espaço das redes, se reconhecem autores e grandes leitores.

Escrevo esse relato no blog em um momento em que o trabalho de sala de aula parece se sobrepor ao exercício da pesquisa e quase que impossibilita as investigações da pesquisadora. Nesse momento de angústia, me deparo com situações e falas em sala de aula sobre a literatura brasileira que me devolvem ao campo da investigação e me deslocam de lugares comuns, como a falaciosa percepção de que só na academia se desenvolve o fazer científico em toda a sua constituição. Não é a sala de aula também o espaço para se pensar a literatura brasileira contemporânea? Não é a ação docente espaço para se questionar a publicação e circulação de obras entre jovens leitores?

As inquietações do trabalho docente, para além de me colocarem diante do
debate sobre o contemporâneo e a literatura, me fez relembrar uma postagem nesse blog da professora Luciene Azevedo intitulada O professor e a  literatura. A postagem problematizou os lugares da literatura e da teoria literária na formação docente, bem como a formação leitora dos estudantes de letras e futuros professores de literatura e língua portuguesa. Em especial, me chamou atenção, naquela oportunidade, não apenas o modo pelo qual a leitura literária não é uma prática comum na vida de muitos alunos de Letras, mas sobretudo como as colocações deles costumam ser no sentido de apontar a formação escolar como um dos grandes fatores que contribuíram para isso.

As colocações dos estudantes apresentam como a experiência no ambiente
escolar cria, muitas vezes, uma relação quase que traumática com a leitura literária. Além da leitura obrigatória e avaliativa dos paradidáticos, a literatura ainda costuma ser apresentada “como um conjunto enfadonho de nomes de autores, datas, características de períodos literários e pouca ou quase nenhuma experiência de leitura dos próprios textos apresentados a eles como literários”.

Há, então, um círculo vicioso na medida em que, estudantes de letras desestimulados para a leitura tornam-se professores que, muitas vezes, dominam a teoria e a historiografia, mas não conseguem avançar na discussão do próprio texto com os alunos, deixando de oferecer a eles a possibilidade de construirem uma leitura. Mas há também um outro lado da questão: o professor também pode negligenciar a formação leitora de seus alunos, e isso não significa apenas desconhecer os bestsellers pelos quais eles se interessam, mas, sobretudo, negligenciar o fato de que os alunos leem o que lhes chama a atenção. Nesse aspecto, cito a inocente surpresa que tive em algumas aulas ao me deparar com alunos que leem desde os clássicos europeus à literatura brasileira e norte-americana dos nossos dias sem que isso seja uma exigência da disciplina. Em que pese tal realidade não seja a regra – obviamente que não tenho essa utópica percepção- ela nos coloca diante do fato de que há uma formação leitora que nos instiga a pensar a literatura produzida em nossos dias, assim como os modos de leitura dos sujeitos contemporâneos.

Pensando o agir da pesquisa e a ação docente, relato, ainda, como os alunos,
reconhecidamente leitores, apresentam indagações e colocações sobre a literatura brasileira contemporânea. Ao falar sobre as escolas literárias, por exemplo, sempre surge a pergunta sobre qual seria a escola de agora e quais as características da produção do contemporâneo. Nesses momentos, retomo o lugar da pesquisa e, conforme afirmou Suely Rolnik em palestra proferida no concurso para o cargo de professor titular da PUC de São Paulo, percebo que o pensamento “[…] não é fruto da vontade de um sujeito já dado que quer conhecer um objeto já dado, descobrir sua verdade, ou adquirir o saber onde jaz esta verdade; o pensamento é fruto da violência de uma diferença posta em circuito, e é através do que ele cria que nascem, tanto verdades quanto sujeitos e objetos […] Assim, neste tipo de trabalho com o pensamento o que vem primeiro é a capacidade de se deixar violentar pelas marcas […]”. Nesse ponto, distanciada, em tese, do fazer acadêmico, identifico cada vez mais como o meu objeto de pesquisa, o fazer literário, atravessa, também, o fazer docente e pode se fazer provocativo em diferentes cenários e circunstâncias.

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2 Respostas para “Quando os caminhos da pesquisa e da sala de aula se cruzam

  1. Recentemente tenho refletido bastante acerca do local da literatura brasileira contemporânea no espaço do ensino básico e, principalmente, público. Ainda não tenho respostas concretas, mas acho que refletir sobre é um importante primeiro passo. Obrigada por esse texto, Milena!

  2. Elisana, muito obrigada pela sua leitura e pelas palavras. Cada dia que passa percebo que o debate é indispensável para que possamos pensar em ações efetivas para a formação de leitores. Há algo de muito esquisito quando, por vezes, o ensino básico se constitui como lugar de construção de uma repulsa ao livro.

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