Arquivo do mês: dezembro 2016

A nova Bravo!

Por Nívia Maria Santos Silva

Em agosto, zapeando pela internet, encontrei a notícia: “A revista Bravo! é relançada com plataforma digital e versões trimestrais impressas”. Corri para o link http://bravo.vc/ e eis que encontro um manifesto que continha explicações sobre o novo formato, a aposta e o objetivo da chamada nova Bravo!, a saber: “Bravo! volta para avançar o olhar para as fronteiras do fazer artístico, dar acesso à nova arte, dialogar com os artistas e com o público que consome arte, debater tendências.”. O manifesto ainda anuncia que “O nosso trabalho diário será o da curadoria e seleção do que melhor se produzir no campo da cultura, no Brasil ou além.”.

Formada principalmente por dossiês monotemáticos multimidiaticamente apresentados, a Bravo! retorna em outro suporte, com outro visual e outra equipe editorial e de jornalistas, mas mantendo a pretensão de ser referência “do melhor”, discurso que a Bravo! já enunciava desde sua criação por Luiz Felipe D´Ávila, em 1997.

À época de seu lançamento, com o apoio da Lei 8.313, também conhecida como A Lei Rouanet, a Bravo! contava com as cotas do Banco do Brasil, Pão de Açúcar, Iguatemi, Banco Real e da Volks, suporte financeiro necessário para atender às ambições da revista que chegou às bancas com um projeto gráfico sofisticado, que incluía um alto padrão editorial. Rodada em quatro cores, em papel couchê, cada edição apresentava em média 150 páginas, custava em média 120 mil reais e tinha uma circulação que chegava a 45 mil exemplares.

Com o pretexto de ser uma agenda cultural, desde aí a sua tendência à curadoria, apresentava também espaço para o ensaísmo e a crítica, apresentados em colunas como “Ensaio!”, “Notas”, “Crítica” e “Livros”, assinadas por nomes controversos como Ariano Suassuna, Reinaldo Azevedo, Olavo de Carvalho, Daniel Piza, Sérgio Augusto, Fernando Monteiro e Bruno Tolentino. De 1997 a 2003, pertenceu à editora D’Ávila, período no qual apresentava uma linha editorial pautada, conforme seu primeiro diretor de redação, Wagner Carelli, na separação entre cultura e entretenimento. Suas páginas tratavam não só da literatura, mas também de cinema, teatro, música, dança e, principalmente, artes plásticas, ressaltando, sobretudo, os parâmetros da cultura erudita.

Seu segundo diretor de redação, João Gabriel Lima, chegou a dividir a existência da revista Bravo! em quatro fases, a primeira sem abertura para o entretenimento e as demais com uma linha editorial mais flexível, principalmente após ter sido comprada pela editora Abril. A última Bravo! em versão impressa mensal foi publicada em outubro de 2013, número 192, com José Saramago na capa.

Três anos depois, com a licença da Abril Comunicações S.A. e contando com o apoio do Instituto de Políticas Relacionais, uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público, a Bravo! volta sob a direção visual de Henk Nieman, direção de criação de Peèle Lemos e Yentl Delanhesi e com os publishers Helena Bagnoni e Guilherme Werneck.

Dispondo de vídeos, áudios, links, blog e utilizando uma linguagem mais própria para web, a nova Bravo! é uma revista digital que explora as possibilidades das ferramentas que a internet oferece. Ela possui, inclusive, um serviço de newsletter por meio do qual continua a sua marca de nascença que é ser também uma agenda de artes e espetáculos: o “Bravo! Indica”. E a Bravo! indica museus de todo o mundo, como os de Málaga e Madri, sugeridos no Newsletter #11 e apresentações artísticas em geral como mostras de cinema, exposições, espetáculos de dança, sobretudo da cena cultural brasileira, mais especificamente São Paulo.

Seus dossiês monotemáticos são apresentados em forma de temporada, como as séries de TV. A cada 15 dias, um novo episódio é lançado. Cada temporada é composta por seis episódios publicados ao longo de três meses. Nesse formato episódico, não há muito espaço para a opinião e para o ensaísmo, que eram outra marca da primeira Bravo!. O investimento maior da nova Bravo! parece ser a circulação da informação cultural por meio de uma hipertextualidade que conecta o leitor-navegador a entrevistas, a artes visuais, a músicas…

Por oferecer acesso gratuito ao site, a nova Bravo! tem o desafio de realizar parcerias para que o projeto continue sendo viável, como a que fez com Spotify. Tendo o Facebook como uma de suas principais plataformas de divulgação, com 14.573 curtidas, a Bravo! tem como outro desafio conseguir mais leitores-seguidores.

Diante de um campo no qual os jornais impressos diminuíram o espaço ou descontinuaram seus suplementos culturais, como o Prosa&Verso, e as revistas especializadas precisam cada vez mais de auxílios governamentais, como a Reserva Cultural (cotas de assinatura compradas pelo governo), para se sustentar, a internet se tornou o terreno mais atrativo para o desenvolvimento do jornalismo cultural.

A renovada revista Bravo! vem nessa esteira, mas vai investir também numa publicação trimestral impressa. A temporada#0, chamada Incertitude, por exemplo, já foi finalizada e lançada em forma impressa na última terça-feira, dia 13 de dezembro, em São Paulo. Com certeza, uma edição de colecionador. Agora, uma próxima temporada vem por aí com mais produção de conteúdo cultural para ler, ver, ouvir, assistir e consumir, é claro. Se ela conseguirá ser uma mediadora da cultura só o tempo dirá.

Em busca da autoficção

Por Davi Lara

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Crédito da imagem: Stephen Boyle

Uma das formas mais tradicionais de se abordar a autoficção é inseri-la dentro daquilo que se convencionou chamar de “o retorno do autor”. Por “retorno do autor” entenda-se a revalorização da figura do autor por um amplo leque de agentes e agências do campo literário no contemporâneo. Assim, depois da paulatina desvalorização da instância autoral na literatura e na teoria modernista – que culminou no anúncio da “morte do autor” feita por Roland Barthes em 1968 – eis que as gerações mais recentes viram ressurgir o interesse pela figura autoral. Os sinais desse ressurgimento, por assim dizer, se veem hoje em todos os lugares: nas teses acadêmicas, nas manchetes dos jornais especializados, na proliferação das festas literárias, das oficinas de escrita criativa, das bienais do livro… e pelo número crescente de narrativas em que há a intromissão da voz autoral.

O mais interessante desse enquadramento é que, ao se colocar a autoficção ao lado de eventos extratextuais como as festas literárias, se põe em evidência um elemento muito importante deste gênero narrativo: o esgarçar dos limites entre a ficção e a realidade. Deste modo, é comum se pensar a autoficção para além dos limites do objeto livro, abarcando todas as instâncias midiáticas em que a figura do autor dá o ar de sua graça, como as redes sociais, por exemplo. Com um pouco de atenção, é possível ver como alguns autores contemporâneos constroem uma persona autoral fazendo uso de diversas plataformas, inclusive seus próprios romances. Se, por um lado, a realidade invadiu os livros de ficção, por outro, a ficção parece invadir a própria realidade na medida em que se torna mais claro esse processo de (auto)criação da persona artística de um escritor.

Como resultado disso, se tem a noção de um eu multifacetado e descentrado, que se baseia não em um eu primordial e pré-existente ao texto, mas num eu que se constrói junto com o texto, no texto. Se a persona que aparece nas redes sociais está equiparada à persona literária, então não há por que considerar qualquer persona como superior à outra, incluindo a persona familiar, a persona do trabalho etc., não importa, todas valem o mesmo. Em um importante estudo, a crítica argentina Diana Irene Klinger (2012) já aponta para essa característica ao “articular a escrita com uma noção contemporânea de subjetividade, isto é, um sujeito não essencial, incompleto e suscetível de auto-criação”. Contudo, por mais que essas reflexões nos afastem da crítica estritamente textual, conforme é ou foi praticada pelos estruturalistas, por exemplo, isso não significa que devamos abandonar a reflexão sobre a forma. Logo, uma das perguntar que surgem é: se a autoficção traz uma nova concepção de autoria menos autocentrada e sem a referência de um eu primordial, quais são as estratégias narrativas que dão corpo a essa concepção contemporânea de autor? Ou, pra ser mais sucinto, qual é a obra que nasce deste novo autor?

Esta pergunta não é de fácil resolução, haja vista a diversidade de obras que são reunidas, hoje, sob o signo da palavra-valise. Levando isso em consideração, qualquer tentativa de estabelecer uma forma própria da autoficção privilegiará um corpo de obras e ignorará outros. Isso não impede, contudo, que, tomando o cuidado de não generalizar, busquemos identificar certos campos de força dentro do continente que se chama de autoficção. Num post recente aqui do blog, Fernanda Vasconcelos cita o “estado de estúdio”, termo cunhado por Reinaldo Laddaga para designar as obras contemporâneas em que o escritor, dentro da narrativa, comenta o seu processo de escrita. De modo análogo, a já citada crítica Diana Klinger (2012), num estudo sobre a autoficção, assinala o caráter inacabado, incompleto de algumas obras, como um work in progress. Como um exemplo deste processo, poderíamos mencionar o romance citado por Fernanda Vasconcelos, o volume 1 da hexalogia do norueguês Karl Ove Knausgård, A Morte do Pai – Minha Luta 1, onde depois de mais de cem páginas de reminiscências sobre a infância do autor, o leitor é conduzido ao escritório de trabalho de Knausgård e acompanha aqui e ali, o processo de escrita da obra que está lendo.

Também no romance Paris Não Tem Fim do escritor espanhol Enrique Vila-Matas, o protagonista escreve notas para uma conferência sobre a ironia e, não por mera coincidência, o romance que estamos lendo é dividido em pequenas partes, como se fossem as próprias anotações do protagonista. Soldados de Salamina, do também espanhol Javier Cercas, por sua vez, conta a história de um personagem chamado Javier Cercas durante as pesquisas para a preparação de uma narrativa real que se chamará “Soldados de Salamina”. Nesses três romances se têm exemplos distintos de obras em construção, work in progress, que soam também como uma espécie de making of do romance. O romance mesclado com a preparação do romance, para citar mais uma vez Roland Barthes.

O mais instigante disso é que, com o work in progress, a forma literária espelha o mesmo perfil de incompletude e fragmentação que é assumido pela figura autoral. Há uma correspondência entre uma coisa e outra, dando uma unidade para a ideia da autoficção. Assim, se este gênero desafiador pode ser entendido como um componente do movimento mais amplo do “retorno do autor” e, por isso, tende a escapulir para fora dos limites textuais, arriscaria dizer que, dentro do campo estrito da literatura, essa nova experiência do eu promove uma mudança na forma do romance.

A autoficção vale a pena?

Por Luciene Azevedo

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William Kentridge, da série Particular Collisions, 2013.

Realizando um estudo de fôlego sobre o romance autobiográfico, Philippe Gasparini (2004) afirma que o termo autoficção não passa de uma expressão da moda, que atende a princípios puramente mercadológicos e que por isso não é rentável especulativamente. Assim, o teórico francês defende que é preciso colocar o termo, a incidência de livros que misturam autobiografia e ficção, em perspectiva histórica e reativar o gênero do romance autobiográfico. Mesmo que anos mais tarde, Gasparini (2008) tenha revisado a contundência de sua posição, reconhecendo a autoficção como uma volta a mais no parafuso dos gêneros autobiográficos, não deixa de ser interessante observar como a mesma resistência encontrada hoje na recepção à palavra valise, repete-se em relação ao romance autobiográfico.

A primeira evidência é a própria subalternidade que a investigação sobre o romance autobiográfico tem para a teoria literária. E se a argumentação de Gasparini dá como exemplos tanto Apuleio e seu Asno de Ouro como Byron, que identifica como um precursor na Inglaterra, mas também as narrativas de Philip Roth, perguntamo-nos porque a longevidade dos exemplos não é suficiente para consolidar o romance autobiográfico como um gênero. Sem arriscar uma explicação para o que chama de “infortúnio crítico” do romance autobiográfico, Gasparini faz uma arrazoado das posturas críticas mais comuns a respeito do tratamento que esse texto híbrido recebe. Segundo o francês, o errático destino crítico do termo está estritamente relacionado à sua condição ambivalente, à sua inscrição em um equilíbrio sempre instável entre romance e autobiografia. Gasparini afirma que mesmo aqueles críticos que superam o preconceito contra o gênero demonstram dificuldade de lidar com sua inscrição ambivalente o que os leva a desmerecer narrativas desse tipo por reduzi-las à sua dimensão referencial, recusando-lhes um estatuto artístico ou por atribuir-lhes uma “literariedade incontestável”. Dessa forma, Gasparini parece sugerir que a complexidade da mescla de gêneros no romance autobiográfico é uma pedra no sapato da crítica, que desviando-se do desafio proposto pelo híbrido, apresenta respostas por demais facilitadoras.

Mas é em outro estudo superlativo sobre a autoficção que encontramos uma explicação epistemológica para a resistência que viemos comentando. Manuel Alberca (2007) corrobora a pouca atenção teórica devotada aos termos romance autobiográfico e autoficção e atribui essa resistência ao “peso da tradição aristotélica e [a]o respeito à pureza conceitual dessa tradição que separava clara e radicalmente a história da ficção”. Alberca aponta ainda para a continuidade no século XX de tendências teóricas formalistas que adotaram como valor o “objetivismo textual desligado de qualquer excrescência subjetiva”. Colocando à prova sua hipótese, podemos reconhecer os ecos aristotélicos não apenas na voragem de Lejeune pela separação entre os pactos romanesco e autobiográfico (ainda que as intenções fossem as melhores, pois tratava-se naquele momento, na década de 70, de dar valor crítico à própria autobiografia), mas também no levantamento feito por Gasparini e comentado pouco acima sobre a tendência da recepção crítica de desmantelar o quebra-cabeças proposto pelas formas híbridas em uma ou outra direção: romance ou autobiografia.

Se concordamos que a resistência não se deve à mera questão de nomenclatura, mas à própria reivindicação do valor dos gêneros biográficos na sua tensão com a ficção, podemos aprender com os impasses propostos à recepção crítica pela forma dos romances autobiográficos. Afirma Gasparini: “O romance autobiográfico vai…acumular os fatores de variabilidade aos quais estão submetidos seus dois gêneros de referência”, sugerindo que a plasticidade do romance e a instabilidade do sistema de valores no qual os relatos autobiográficos são julgados, considerando-se as mutações nas noções de verdadeiro, falso ou sincero, são a condição mesma do duplo pertencimento na qual se inscreve o gênero e que sua “viscosidade”, o termo é de Gasparini, é o espaço de manobra próprio para a interrogação teórica.