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A autoficção: uma questão política?

Nilo Caciel

Quando se discute a presença massiva de textos autoficcionais na literatura contemporânea, e também a quase onipresença do ‘‘eu’’ em outras artes e esferas sociais, é comum que haja posicionamentos que veem a autoficção apenas como uma plataforma para a expressão do narcisismo e do individualismo. Sobre isto, Leonor Arfuch diz em seu texto Antibiografias:

‘‘É um árduo caminho o que leva, nas últimas décadas, a essa reconfiguração da subjetividade que pode traduzir-se – com uma acentuação negativa – em um declive da vida e da cultura públicas […] na crescente indistinção entre o público e o privado e a radical abertura da intimidade, na ênfase narcisística, no individualismo e na competição feroz, no mito da realização pessoal como objetivo máximo – senão o único – da vida.’’

Mas não será também possível ler na diversidade de obras que se inscrevem no registro autoficcional atualmente uma voz em primeira pessoa interessada em seu entorno, numa alteridade que também pode ser ouvida por meio da primeira pessoa que narra? Se for assim, não poderíamos pensar, então, que essas narrativas vão de encontro ao tal narcisismo apontado pelos críticos mais ferrenhos da autoficção?

Um bom exemplo seria A Ocupação de Julián Fuks. Neste trabalho, Fuks aborda a ocupação do antigo Hotel Cambridge no centro de São Paulo pelo MSTC (Movimento Sem Teto do Centro) ao mesmo tempo em que fala de seus próprios dilemas, como a doença de seu pai e sua relação conjugal. Vencedora do Prêmio José Saramago de Literatura 2017, a obra chama atenção pela forma como articula a história de alguns dos ocupantes do edifício com a história individual do autor. Assim, a narrativa é atravessada por questões políticas e pessoais. Tematizando a falta de moradia urbana e o drama dos ocupantes, o autor, que realizou um residência artística na ocupação, se faz presente ao mesmo tempo em que coloca uma coletividade no centro da sua narrativa. A narrativa parece indicar como um fenômeno como a autoficção pode ganhar contornos amplos e variados no presente.

E em outras artes, será possível ver também uma dramatização da exposição do eu narrador em tensão com a alteridade? O filme Roma do diretor mexicano Alfonso Cuarón, lançado em 2018, fez grande sucesso. O diretor em entrevistas afirma que o filme dramatiza sua infância na Cidade do México dos anos 70, mas o que se destaca é o fato de uma babá, uma mulher indígena, ter sido posta no centro da narrativa. Testemunhamos a forma como ela transita por uma casa de classe média alta e o que acontece em seu dia a dia, a partir do seu ponto de vista. O filme foi aclamado pela forma nuançada pela qual mostrou a dinâmica em que as classes sociais convivem naquele país. Além disso, a obra inspirou numerosos debates sobre as complexidades das relações raciais na sociedade mexicana.

Esta descentralização da figura do autor em um texto autoficcional já tinha sido apontada por uma das classificações feitas por Vincent Colonna, um dos pioneiros na investigação teórica do termo. Entre as categorias descritas pelo crítico, há o que ele chama de “autoficção especular” na qual ‘‘o autor não está mais necessariamente no centro do livro; ele pode ser apenas uma silhueta; o importante é que se coloque em algum canto da obra, que reflete então sua presença como se fosse um espelho.’’

Embora Colonna esteja se referindo especificamente a obras cujas narrativas mostram os bastidores da escrita, como um desdobramento processual da escrita, ao mencionar Las meninas, o famoso quadro de Velázquez, pode também contribuir para tornar mais claro o que estou tentando dizer aqui, pois embora nem a obra de Fuks ou o filme de Cuarón se encaixem perfeitamente na descrição da categoria tal como definida por Colonna, podemos pensar que nem sempre quando o autor está presente e se aproxima de seu narrador-personagem é certo que a narrativa possa ser recebida como narcísica ou individualista.

Os exemplos mencionados mostram que é possível também pensar que o texto que é metáfora de um “espelho que reflete a presença do autor” pode também refletir seu entorno, uma alteridade que pode ser vista e ouvida e o texto então pode ir além da egolatria e repensar sua condição política.