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Autoficção e performance em Los diarios de Emilio Renzi

Carla Carolina Moura Barreto

Créditos da imagem:  Foto: Jorge Silva/Reuters. Ilustração: Zé Otávio

“[…] me asombro, como si yo fuera otro (y es lo que soy)”
(Ricardo Piglia, em Los diarios de Emilio Renzi)

Ricardo Piglia, um dos maiores escritores argentinos do século XX, registrou sua vida cotidiana em trezentos e vinte e sete cadernos ao longo de cinquenta anos. O escritor os manteve guardados até 2012, quando decide desarquivá-los e dar início a um trabalho de releitura, seleção e reescritura, transcrevendo e organizando seus cadernos, a fim de publicá-los. Assim, os diários do escritor se convertem em uma série intitulada Los diarios de Emilio Renzi, dividida em três volumes– Años de formación (2015), Los años felices (2016) e Un día en la vida (2017) – que trazem em seu interior memórias íntimas e marcas de uma vida atravessada pela obsessão pela leitura e escrita. Os diários, que podem ser lidos como romance de formação, são construídos a partir de fragmentos, recortes, colagens, metalinguagem e duplos (Piglia/Renzi, realidade/ficção, memória/História), mostrando-se híbridos e complexos.

Piglia publica os diários sob a assinatura do assíduo personagem de suas obras, Emilio Renzi, tido pela crítica como seu alter ego, uma vez que o nome do personagem consta no nome completo do autor: “Ricardo Emilio Piglia Renzi”. Além disso, alguns biografemas da vida de Renzi apontam para a persona extratextual de Ricardo Piglia. Com isso, temos o famoso duplo Piglia/Renzi, visível já nas capas dos livros, escritos por um e assinados por outro. Vemos essa cisão eu/outro com mais nitidez na construção do texto de Piglia, que transita entre primeira e terceira pessoa verbal para falar sobre si, resultando em um distanciamento. O autor, que emprega aspas e citação para dar voz a quem escreve o diário, se afasta do texto, descrevendo-se como outro, apresentando-se como um “biógrafo de si mesmo”, o que torna o texto paradoxal. Com isso, Piglia se distancia da autoria e da responsabilidade do conteúdo dos relatos que apresenta, no entanto, não se desvincula completamente, uma vez que ele coloca em cena seu duplo.

Esse jogo textual ambíguo criado por Piglia, que mais se configura como uma espécie de “mascaramento”, confunde o leitor desprevenido que espera ler a história de um “eu” real e aponta para uma performance do autor, que encena um “eu” e se insinua como uma sombra real no texto. Piglia atua em seus diários, como em uma mise en scène. Ele escreve a partir do reflexo que vê em seu espelho, de modo a eleger o que vai ou não inscrever do real que o cerca, algo próprio da escritura performática do diário, segundo o professor e crítico Seligmann-Silva.

Assim, Piglia constrói uma narrativa autoficcional. Ele afasta-se da experiência para refletir sobre ela e atribuir-lhe novos significados, recriando-a e recriando-se como ficção. Desse modo, essas duas personalidades fragmentadas criadas no texto, Piglia/Renzi, se imbricam, se confundem e nos confundem. Com isso, Piglia joga um jogo performático, de afirmação e negação, que afasta o compromisso com a “verdade” e conspira contra a possibilidade de transmitir a realidade, colocando em cena, de maneira mais evidente, o caráter ficcional da obra. Além disso, em Los diarios de Emilio Renzi, Piglia nos apresenta os mecanismos de construção da memória; problematiza a figura do autor; nos mostra a ficção como estratégia de lidar com a realidade; além de nos revelar os bastidores da criação de algumas de suas obras. Assim, ele escreve, também, para manter ativas as lembranças; para que seu testemunho pessoal perdure; para lembrar e ser lembrado, de modo a escrever para si e para outros, “arremessando-se no vazio para que algum leitor o segure no ar”.

Carla Barreto é doutoranda em Teoria e História Literária no Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).