Arquivo do mês: maio 2023

Máscaras e poses na contemporaneidade literária

Luana Rodrigues

Créditos da imagem: “Decomporsi per ritrovarsi”, 2023 – Laetitia Farellacci (self-portrait artist), www.diluceeombra.com

No post anterior comentei um pouco sobre a atuação de Natália Timerman nas redes sociais e uma performance própria à condição de autoria no presente. Neste texto quero, portanto, continuar utilizando a presença de Timerman, tanto dentro quanto fora das obras que produz.

Em A máquina performática: a literatura no campo experimental, Aguilar e Cámara vão se debruçar sobre dois termos, a “máscara” e a “pose”, para pensar o que  chamam de “dispositivos da modernidade literária”. Com base nas reflexões de Antonio Candido sobre as “máscaras” criadas pelos escritores românticos, os autores referem-se aos elementos de textualidade ou elementos discursivos, à assinatura textual que é construída como projeção da obra, que é pensada como uma performance que envolve, para além da criação textual, os gestos, as imagens, os trejeitos e toda corporeidade que marca a presença do autor na cena pública. A essa performance os autores chamam “pose”, com base na reflexão da crítica argentina Sylvia Molloy.

O exemplo comentado por Aguilar e Cámara é o do escritor Paulo Leminski. Segundo os críticos, o “caráter de poeta maldito e erudito ao mesmo tempo” foi alimentado pelo próprio Leminski através de suas produções, mas também, porque era uma figura bastante midiática, “fez um efetivo desenho de sua pose, que a canonização retrospectiva de sua obra continuou utilizando depois de sua morte”. Como exemplo a fixação de sua imagem representada pelo grande bigode, que em 2013 estampou a capa de uma das reedições de sua poesia completa publicada pela Companhia das Letras: “Esse bigode basto parece encarnar o signo de uma vida exuberante que combinou o excesso e a tragédia, mas também uma espécie de assinatura singular para uma produção singular”.

Mas como pensar esses “dispositivos”, hoje? Natália Timerman já tem uma assinatura autoral? Se consideramos que desde os anos 2000 há uma exigência cada vez maior da presença física do escritor nos espaços literários e também da sua presença virtual nas redes sociais, podemos arriscar que isso resulta em um impacto que torna mais complicadas as relações entre o que está fora e dentro do texto? Seria possível separar tão claramente os elementos textuais, a assinatura da obra, o que Candido e Aguilar e Cámara chamam de “máscara”, da “pose” de uma performance autoral que se constrói por meio da intensa presença dos autores junto à sua obra nos espaços públicos da cena literária contemporânea?

Minha pesquisa vem tentando refletir sobre o entrelaçamento desses dispositivos, a máscara e a pose. Um forte indício de que vale a pena aprofundar essa discussão diz respeito ao fato de que a “pose”, a atuação de Timerman em suas redes sociais, é também motivo de reflexão sobre como a convivência com o virtual impacta nossa subjetividade hoje na própria obra, já que muitos contos-crônicas e seu romance, Copo Vazio, propõem pensar a dinâmica das redes.

Mas não apenas isso. Se pensarmos que hoje a circulação da imagem do autor ganha quase tanto espaço quanto o comentário sobre sua obra, é interessante observar como Timerman vai criando uma identidade visual ou uma “pose”, segundo o uso que Aguilar e Cámara fazem do termo. Destaco em especial as fotografias registradas pela profissional Mariana Vieira (encontradas no catálogo do site dela) que se apresenta como “curator, visual explorer, creative strategist”. Em muitas fotos, a imagem de Timerman aparece borrada, a autora está de braços cruzados, ora olhando diretamente pra câmera, ora de olhos fechados. Essa ambivalência entre o esconder e o mostrar, entre a sessão de fotos para promoção da imagem e fotografias que driblam a transparência do “apenas” mostrar, está presente também no modo como a autora lida com a exposição de sua vida nos textos publicados, como já comentamos aqui no blog e me estimula a aprofundar a investigação sobre os intensos trânsitos entre o dentro e o fora do texto na construção de uma trajetória literária.

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Como analisar a autenticidade das autobiografias?

João Matos

Créditos da imagem:  Christian Boltanski, The reserve of Dead Swiss, 1990.

Tradicionalmente, a autobiografia é entendida como um gênero narrativo que conta a vida de quem escreve, sempre escrito em primeira pessoa. Embora possa haver nas autobiografias algum grau de “invenção de si”, seja por vontade do autor de se inventar ou por falhas na memória, as regras do gênero dizem que devemos confiar na honestidade do autor. É o que defende o teórico francês Philippe Lejeune, que reconhece esses “deslizes”, mas recusa transformá-los em um fator que inscreva o texto no campo da ficção.

As autobiografias também são marcadas pela autoridade de quem escreve. Afinal, costuma-se acreditar que não há melhor pessoa para dar testemunho de sua vida senão o próprio autor. Mas o que significa a vida nessa modalidade de representação literária? Que procedimento para a elaboração textual do gênero autobiográfico é mais autêntico e mais fiel à reconstrução da vida que se conta?

O importante estudioso da autobiografia, Georges Gusdorf, afirma que a autobiografia “autêntica” exige um exame de consciência manifesto no relato por parte do narrador que pretende contar sua vida. Assim, diz Gusdorf, uma autobiografia não deve deixar de “se perguntar, se desmentir, se encontrar e se perder, em meio à busca de um sentido da vida que, mesmo não sendo alcançado, não é também abandonado”.

Gusdorf reconhece os deslizes não só como uma parte natural do processo de elaboração da autobiografia, mas como algo necessário para validar o exame de consciência: “a busca de si quer ser uma participação na constituição de si”. Nisso, o autor também critica a “ilusão biográfica”, pois afirma que contar uma vida não é apenas revisar informações, datas, documentos ou garantir a exatidão das memórias, tomando uma perspectiva de si inequívoca para assegurar ao leitor uma coerência inquestionável na exposição do que se passou.

É possível pensar as posições de Gusdorf em diálogo com outro nome fundamental da teoria da autobiografia, o belga Paul De Man. No texto “Autobiografia como Des-figuração”, De Man entende que toda autobiografia é des-figuração, pois ao tentar narrar sua própria vida, o autobiógrafo acaba criando uma outra figuração de si – é como se, no gesto de remover uma máscara para revelar uma “verdade”, se colocasse outra máscara no lugar.

Gusdorf parece concordar com De Man sobre o entendimento do que é uma autobiografia, pois não ignora que no relato de si autobiográfico existem várias camadas de vida, mas discorda das conclusões dele, já que acredita que as des-figurações constituem o gesto propiciador do que Gusdorf chama de “autenticidade” da autobiografia. Não deixa de ser curioso o fato de Gusdorf redimensionar o significado da autenticidade para instituí-la como traço fundamental à autobiografia.

“É preciso acercar o rosto à cinza”

Samara Lima

Créditos da imagem: Frances Kearney, Five people thinking the same thing, IV, 1998.

Em “Quando as imagens tocam o real”, Georges Didi-Huberman pontua a força sem precedentes com que a fotografia vêm se impondo no nosso universo, considerando os deslocamentos e as formas de reorganização técnica, como também sua capacidade de sobrevivência, ainda que ao longo do tempo tenha sofrido tantos dilaceramentos, reivindicações contraditórias e tantas […] manipulações imorais.

Didi-Huberman discute imagens que se referem a registros de diversas situações inimagináveis, como foi a experiência dos campos de concentração da Alemanha Nazista, sendo consideradas então atos de resistência e um objeto de memória contra a maquinaria da “des-imaginação”.

O filósofo comenta que os possíveis saberes que as imagens revelam partem de sua relação cruzada com muitos outros dados, com as palavras e os contextos, por exemplo. É nesse contato com o real que a imagem arde. Para o filósofo francês, importa realçar a relação lacunar que a imagem mantém com a realidade e que faz da imagem, sempre faltante, um material “ardente” e inexato, que deve ser pensado em um duplo regime: ao mesmo tempo como documento e como objeto de sonho, objeto de ciência e não saber.

Mas toda imagem arde?

Para Didi-Huberman, se uma imagem mantém-se no completo preenchimento de sentido e no clichê visual, não gera pensamento crítico. O que o filósofo chama de  imagem ardente preza as lacunas, o desconforto e busca encontrar as cinzas.  Neste sentido, o autor aponta a importância de saber olhar uma imagem, uma vez que vivenciar uma experiência de ardência é uma ação complexa, pois para senti-lo, é preciso atrever-se, é preciso acercar o rosto à cinza. E soprar suavemente para que a brasa, sob as cinzas, volte a emitir seu calor, seu resplendor, seu perigo.

No post anterior, comentei que gostaria de estudar, na nova pesquisa que proponho ser desenvolvida no mestrado, a relação entre texto e foto nas obras L’usage de la photo e Os anos de Annie Ernaux. A escritora francesa utiliza em suas produções a imagem como objeto material e estrutura sintática como parte de um projeto estético que rejeita a ficção. Pensando na discussão proposta por Didi-Huberman, me interessa investigar de que maneira a autora francesa lida com a complexidade da inexatidão da fotografia em sua narrativa, mas também de que maneira faz arder o real, o lugar onde a cinza não esfriou e como a relação entre texto e imagem constrói sentidos sobre sua vida e sobre a sociedade francesa que também atuam contra a maquinaria da “des-imaginação”.

Cinema, literatura e HIV/aids

 Ramon Amorim

Créditos da imagem: Joe De Hoyos, Spitting Image, 1987 

Seja em séries, longas e curtas-metragens, documentais ou ficcionais, maneiras diversas de representar as questões relativas ao HIV/aids estão presentes nas telas. É possível localizar obras, a partir do ano de 1985, que já discutem a epidemia, como AIDS: Aconteceu comigo (1985), Filadélfia (1993), As horas (2002), Angels in America (2003), Cazuza – O tempo não para (2004) The Normal Heart (2014), Pose (2018), entre tantas outras.

Várias dessas realizações audiovisuais estabelecem uma relação direta com a literatura. Muitas são adaptações de textos literários, enquanto outras levam para a tela a vida de escritores ou personagens importantes das letras. Também há casos em que essa aproximação se dá de maneira indireta, na forma de alusões ao universo da literatura.

Duas obras recentes do cinema brasileiro chamam a atenção pela maneira como dialogam com a literatura: o documentário Carta para além dos muros (2019) e o drama em longa-metragem Os primeiros soldados (2022). No filme de 2019, dirigido e produzido por André Canto, a referência mais evidente diz respeito ao título, baseado no conjunto de crônicas que o escritor Caio Fernando Abreu publicou entre os meses de agosto e setembro de 1994 no jornal O Estado de S. Paulo. Além disso, um dos entrevistados do documentário é um homem identificado com o nome fictício de Caio, em referência ao autor gaúcho. Há também neste filme depoimentos de autores fundamentais à discussão sobre HIV/aids, como João Silvério Trevisan, Drauzio Varella, Jean-Claude Bernardet, entre outros.

Já em relação ao longa-metragem Os primeiros soldados, dirigido e escrito por Rodrigo de Oliveira, as referências ao universo literário não são tão evidentes quanto no  documentário de Canto. Aqui a aproximação entre cinema e literatura é construída a partir de exercício de especulações e aproximações. A começar pelo momento em que se passa a narrativa, o ano de 1983. Há aí uma “coincidência’, pois é o mesmo em que Caio Fernando Abreu lança a novela Pela noite, o primeiro texto literário a abordar a temática do HIV/aids.

É possível ainda observar formas e procedimentos comuns à literatura sobre HIV/aids no longa dirigido por Rodrigo de Oliveira. Narrar a si, de maneira autoficcional, ou de modo autobiográfico, como muitos escritores fizeram, principalmente nos primeiros anos da emergência da epidemia, é uma dessas estratégias de que o filme se vale.

Por fim, é preciso chamar a atenção ainda para o fato de que não se nomeia o vírus ou a doença, procedimento também comum nas produções literárias sobre o tema. Em Os primeiros soldados, embora os personagens com HIV façam registros minuciosos sobre sintomas, remédios, efeitos adversos, associados ao vírus e à doença, não há qualquer designação explícita ao HIV/aids, procedimento que está presente também em grande parte da obra de Caio Fernando Abreu e Bernardo Carvalho, por exemplo. 

Embora minha pesquisa não tenha como objetivo realizar um mapeamento exaustivo sobre as aproximações possíveis entre as produções literárias e cinematográficas que abordam a temática do HIV/aids, não deixa de ser curioso observar como em ambos os circuitos circulam representações semelhantes do vírus e da doença .