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Ausência e trabalhos de luto

Antonio Caetano

Créditos da imagem: My Brilliant Friend: Season 2 Episode 3 “Chapter 11: Erasure”

“Vamos ver quem ganha dessa vez, disse a mim mesma. Liguei o computador e comecei a escrever cada detalhe de nossa história, tudo o que me ficou na memória”. É dessa forma que se inicia o romance A amiga genial, de Elena Ferrante. Com este primeiro livro, que compõe a tetralogia napolitana, acompanhamos os relatos autobiográficos da narradora que, já idosa, vê no desaparecimento voluntário de sua amiga de infância a oportunidade de antagonizá-la, pois determinada a narrar a história de suas vidas, pretendia “impedir” seu desaparecimento.

Em seu artigo Escrita, vestígio e ausência em A amiga genial de Elena Ferrante, Tatianne Dantas, através de uma abordagem psicanalítica, relaciona o ato e a decisão de escrever da personagem Elena “Lenu” Greco com o sentimento de perda após o desaparecimento de sua amiga Rafaella “Lila” Cerullo. Na opinião de Dantas, o romance traz “à tona o real de um encontro faltoso que se revelou a partir do trauma do desaparecimento”.

A escrita, desse modo, representaria o caminho através do qual é possível rearranjar a realidade, fazer com que o passado e o que se perdeu possam, de certa forma, serem presentificados. Essa leitura que associa experiência traumática e narrativa chama minha atenção, pois estou interessado em investigar textos autoficcionais em que os processos de escrita de si estão relacionados a um trabalho de luto. Roland Barthes em seu Diário de luto, afirma que, “O ‘Trabalho’ pelo qual (dizem) saímos das grandes crises (amor, luto) não deve ser liquidado apressadamente; para mim, ele só se realiza na e pela escrita”.

Mesmo que a tetralogia não possa ser considerada autoficcional, há um modo de ler os livros que nos faz pensar na relação entre luto e narrativa. Em A amiga genial, a narrativa se constrói por meio lembranças da narradora, da leitura que fez de textos de Lila confiados a ela, das informações passadas por terceiros. Poderíamos afirmar, então, que o que lemos na tetralogia é mais a “ausência presente” de Lila na vida de Lenu no momento da escrita, e menos a narração da vida delas no passado.

Ler a narrativa de Ferrante e pensar na afirmativa de Barthes me leva a considerar que o trabalho de luto está intimamente associado com a relação de um indivíduo com a ausência, não com a morte propriamente, já que a “ausência”  dialoga  de maneira mais evidente com aquele que ficou, com o enlutado, não com quem se foi, como geralmente ocorre na associação do luto com a morte de um ente querido. Trata-se, então, da reação à morte e à ausência.

Há várias maneiras de viver o luto, claro. Tampouco é nova a relação entre escrita e trauma ou escrita e luto. No entanto, me interessa mais pensar na autoficção como uma estratégia que pode se constituir não apenas como um trabalho de luto, mas que pode oferecer também ao leitor a oportunidade de acompanhar na narrativa o processo de reconfiguração de uma subjetividade, de um modo de ser e estar no mundo depois da perda de um ente querido, por exemplo.

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