Arquivo do mês: maio 2021

A presença do HIV/AIDS no romance A estrangeira, de Claudia Durastanti

Ramon Amorim

Créditos da imagem: Roger Ballen, Wounded, 2011.

“vê-lo reduzido a uma criatura de cartilagens e tendões foi o suficiente para que entendesse, ainda criança, que era aquela doença: uma impostura, um sortilégio que desvirtua o sangue”. (Claudia Durastanti, 2019)

A estrangeira é um romance italiano (a tradução para o português é da poeta Francesca Cricelli) escrito por Claudia Durastanti e publicado no ano de 2019, sendo um dos finalistas do prêmio Strega, o mais importante da literatura de língua italiana. A obra tensiona os limites entre memória e ficção, como muitas outras obras da contemporaneidade, ao propor esse jogo entre acontecimentos da vida da autora e a produção de certa ficcionalidade.

Filha de pais com deficiência auditiva, a narradora/protagonista (re)constrói trechos da sua vida e da vida dos membros da própria família a partir das memórias e das histórias que a cercam. Assim, a narrativa é carregada de temas espinhosos, a começar pela deficiência dos pais (e a estigmatização oriunda dela), a precarização financeira, os relacionamentos abusivos e, talvez o mais importante, a eterna sensação de estrangeira experimentada pela personagem.

Entre os vários assuntos que aparecem de forma colateral durante a narrativa, a presença do HIV/AIDS chama a atenção. A principal ocorrência do tema está ligada ao adoecimento do tio da narradora. A doença que acreditam ser um “câncer de pele”, por causa de um dos sintomas (o sarcoma de Kaposi), depois de exames de sangue e consultas médicas é diagnosticada como AIDS. Esta representação, ainda que lateral, aponta para um caminho diverso, se comparada com outras produções que abordam o tema. O primeiro ponto a se considerar é que o tio da protagonista, um sujeito heterossexual, “provavelmente era homofóbico”. O acometimento da doença em um personagem normativo, que difere dos estereótipos construídos sobre o tema causa uma espécie de perplexidade na narradora e aponta para um distanciamento entre o que ela vivia e a representação social a qual tinha acesso: “As informações que tínhamos sobre a aids, todas questionáveis, não batiam com as que tínhamos a respeito da vida do nosso tio Arturo”.

Outro aspecto importante a se destacar é o fato de que a confirmação da sorologia do personagem o fez ser vítima do estigma relacionado ao HIV/AIDS. Para a narradora “a doença o fez perder sua popularidade”, visto que as pessoas pararam de frequentar a casa do tio, assim como indicavam que ela deveria tomar cuidado com os objetos usados por ele e evitar qualquer aproximação física: “diziam para lavar bem os garfos e não tocar nos pentes e barbeadores do banheiro”.

Ainda que a representação do personagem com HIV/AIDS no romance se aproxime muito de outras comuns na produção literária mundial, visto que a deterioração corporal é uma imagem recorrente e a origem da infecção está relacionada a uma mulher que “teria sido prostituta e usuária de heroína”, a obra tem desdobramentos pouco vistos nas produções que abordam o tema. O fato de a doença estar presente em um membro de uma família tradicional de imigrantes italianos vivendo nos EUA, o fato dele ser um sujeito que tem um trabalho que exige força física (diferentemente dos escritores, jornalistas e redatores tão comuns em outras produções sobre o tema) e de estar tão longe do universo da homocultura são diferenciais de A estrangeira, principalmente porque apontam para uma representação mais diversa.

A abordagem do tema do HIV/AIDS na produção de Claudia Durastanti, mesmo que de forma discreta, é atual e importante pois tensiona e coloca em discussão a representação literária da doença em contraste com a sua representação social. O romance acaba por indicar que o que se crê sobre o HIV/AIDS não necessariamente corresponde aos resultados da experiência com o vírus (e/ou a doença).

Kehinde e Luísa Mahin: A reelaboração de um mito

Lílian Miranda

Créditos da imagem: Dalton Paula, Luiza Mahin, 2020, oil and gold leaf on canvas in two parts.

Como já mencionei em alguns posts anteriormente, a escritora Ana Maria Gonçalves constrói a narrativa de Um defeito de cor transitando entre ficção e fatos históricos. O livro conta a história de Kehinde e sua trajetória enquanto negra africana nascida no Benin e traficada para o Brasil ainda criança. A narrativa em primeira pessoa é feita pela personagem já idosa numa viagem de retorno ao Brasil em busca de seu filho Luís, que foi vendido pelo pai na infância.

A personagem Kehinde é uma das representações ficcionais de Luísa Mahin, figura histórica. O livro de Gonçalves compõe uma história completa e detalhada acerca da vida de Kehinde, apesar de a história oficial contar com pouquíssimos registros historiográficos sobre a vida de Mahin. O que se sabe, no geral, é que a ex-escravizada participou ativamente do levante dos Malês em 1835 e que poderia ser a mãe do poeta Luís Gama.

Uma questão que me inquietou durante a leitura foi perceber que  a tematização desse evento (o levante dos malês) pelo romance de Gonçalves não deu à atuação de Kehinde grande protagonismo narrativo. Embora nós, leitores, possamos observar as movimentações dos Malês através do ponto de vista dessa personagem, fica evidente que ela não atua como líder e foge à imagem desenhada pelo imaginário comum, também apresentada em outras produções ficcionais, como em Malês, a insurreição das senzalas de Pedro Calmon que inclusive, atribui a ela o título de Rainha Africana.

A opção de Ana Gonçalves por construir a história dessa forma faz com que a representação de Mahin por meio de Kehinde ganhe outras nuances, explore outras dimensões de sua subjetividade, preenchendo uma lacuna da própria historiografia. Como aponta Aline Najara em “Entre o popular e a historiografia, uma imagem controversa: O caso Luiza Mahin”:

“Luiza Mahin é uma personagem presente em segmentos da memória brasileira, lembrada como símbolo de luta feminina e referência na resistência ao escravismo. A análise de representações e a percepção de distintas (re)construções discursivas acerca desta personagem em narrativas literárias e/ou historiográficas é o ponto de partida para compreender os mecanismos que permitiram a sua idealização e o que tais representações revelam sobre o contexto no qual foram (re)elaboradas.” (NAJARA, 2009)

No caso de Um defeito de cor, a autora (re)elabora um outro ponto de vista que narra, além da vida de Kehinde, uma parte da história do Brasil ao explorar diversos aspectos e particularidades da construção da nossa nacionalidade, por meio de seu trabalho de curadoria de documentos e arquivos, como aponta a bibliografia que a autora elenca no final do livro.

“O que estava em jogo não era apenas a participação dos pretos na revolta, mas também a defesa do país contra os pretos sem pátria  que queriam tomá-lo à força, a defesa do Deus do Brasil contra os feiticeiros da África”. Assim narra Kehinde numa passagem em que explica detalhadamente as deliberações judiciais às quais os suspeitos de terem participado da revolta dos malês estariam sujeitos diante do tribunal brasileiro, pois, ainda que fossem inocentes ou tivessem sido acusados arbitrariamente, deixariam o tribunal com algum tipo de pena, e quase sempre a maior possível. A personagem ainda reflete com indignação que na verdade esses movimentos de “tomar um país à força” eram realizados pelos brancos há muitos anos e completa: “Eles nos tiravam do nosso país e das nossas propriedades, faziam nossos batismos na religião deles, mudavam nossos nomes e diziam que precisávamos honrar outros deuses.”

Ao pisar em solo brasileiro ainda na infância, Kehinde foge ao batismo e demonstra grande expertise em recusar um nome cristão, utilizando-o somente quando necessário visto que para os brancos ela jamais poderia ser chamada de Kehinde ou manter quaisquer elementos que a ligassem à sua origem africana. Porém no seu regresso a Uidá ela assume a identidade de Luísa, seu nome brasileiro, que ela considera bonito, e cresce financeiramente através do comércio que consegue expandir a partir dos contatos que estabeleceu no Brasil e no Benin.

Essa transição representa uma série de acontecimentos e reviravoltas que a personagem narra ao longo do livro, mas, além disso, representa também o compromisso da autora em narrar uma história verossímil e humanizada que embora simbolize resistência e atribua à personagem características heróicas, não se resume a mitificar sua figura.

Pra que serve a literatura?

Nilo Caciel

Créditos da imagem: Paulo Nazareth, Pão e circo (2012)

Detransition, Baby, romance de estreia da escritora americana Torrey Peters acompanha a vida de três mulheres em Nova York, duas trans e uma cis, cujas vidas se conectam em virtude de uma gravidez inesperada. Reese é uma mulher trans que sempre sonhou ser mãe. Ames, ex de Reese, é uma mulher trans que passou pelo processo de destransição e passa a viver como homem novamente. Após engravidar Katrina, sua chefe, depois de um envolvimento casual, Ames entra em conflito com o peso da ideia de se tornar pai e propõe a Resse que os 3 criem a criança juntos. O lançamento da obra em janeiro deste ano foi seguido de uma recepção altamente favorável por parte da crítica especializada. Veículos como The New Yorker e The New York Times, bastiões do gosto literário americano, foram alguns dos que acolheram bem a estreia de Torrey, seja pelo estilo da escritora, seja pela forma irreverente com a qual ele tratou seu tema. Além disso, uma adaptação televisiva já foi anunciada.

Contudo, a circulação do livro não aconteceu sem polêmicas. Em março, Detransition, baby foi anunciado como um dos indicados ao prestigioso prêmio britânico de literatura feminina The Women’s prize for fiction. A presença de Peters, que é uma mulher trans, na lista do prêmio causou revolta em alguns setores do meio literário anglófono. Algumas dessas pessoas concentraram seus ataques na escritora, referindo-se a ela no masculino e publicando ofensas transfóbicas nas redes sociais. É sabido que este tipo de reação on-line é previsível e não meritória de atenção especial. Por isso, gostaria de comentar outro aspecto das detratações: os ataques à obra.

Uma carta aberta atacando a indicação de Peters se refere ao livro como misógino e “um trabalho de pornô sissy impregnado de ódio por mulheres”. Acredito que este argumento se baseia unicamente no fato de as personagens do livro não terem sido construídas com o intuito de serem lidas como uma afirmação positiva das questões de gênero. Em muitos momentos, elas mostram manter certos comportamentos e ideais problemáticos sobre a representação do feminino nos dias atuais. Reese, por exemplo, em um trecho declara pensar que “mulheridade é iluminada pela violência masculina”. Em outra parte, no começo do romance, ela cogita transar sem camisinha com um homem casado soropositivo com quem tem um caso. Ela faz uma analogia do risco de ser infectada e se tornar portadora do vírus com o risco que as mulheres héteros correm de engravidar quando fazem sexo desprotegido. Como fica claro, Torrey não parece ter nenhuma intenção de construir uma história didática, cujas personagens são exemplos a ser seguidos.  Crispin Long fez um comentário a respeito em sua crítica no The New Yorker:

recusando evitar partes dolorosas da vida trans, Peters oferece uma lucidez que seria impossível se seu único objetivo fosse inspirar simpatia. Ela é inovadoramente desinteressada em convencer o público da coragem e nobreza das pessoas trans, e as deixa ser tão disfuncionais como todo mundo.

      Concordo com Long quando afirma que se a autora tivesse se preocupado em inspirar simpatia, o resultado final da obra seria muito menos rico. Acredito que o que está em jogo nesse questionamento é a própria definição de literatura e seu propósito. Testemunhamos na atualidade, uma ascensão poderosa da ideia de arte como mero instrumento para conscientização política, o que muitas vezes significa pouca tolerância com as ambiguidades (éticas, políticas etc), que acabam silenciadas por uma cartilha ideológica muito restrita. As reações à Detransition, baby demonstram bem esta mentalidade.  Vejo este movimento como empobrecedor da própria ideia de literatura, mas também da leitura, já que o leitor parece reduzido ao papel de mero receptor de lições relativas a questões sociológicas. Ou como declarou Bernardo de Carvalho em seu recente artigo para a Folha de São Paulo:

Fazer a literatura corresponder à representação de um modelo moral serve de ilusão paliativa, é o correlato natural e desesperado da nossa impotência diante da indecência da realidade, diante do mal. Mas também é desistir da charada que não conseguimos resolver. É jogar a toalha antes mesmo do início da partida.

“sou ‘eu’ que não coincido jamais com minha imagem”

Samara Lima

Créditos da imagem: “Caderno de memórias coloniais” de Isabela Figueiredo

No meu post anterior, comentei que Cadernos de memórias coloniais é escrito em primeira pessoa e tem cunho memorialista. Na obra, somos apresentados à trajetória de infância da narradora-personagem em Moçambique. As recordações mesclam-se com comentários das contingências históricas e sociais. Da mesma forma, o livro se debruça sobre a construção da identidade de Figueiredo, a partir do contato (problemático) com a família, com seu grupo social e a diferença, com os seus questionamentos internos e com o próprio território africano. Ainda que tenha crescido em um ambiente que considerava o negro como um sujeito “abaixo de tudo”, é a partir da relação com o Outro que a narradora busca formar a sua identidade. É certo que é uma identidade maleável, ora construída em oposição ao pai e aos seus pares, ora pela convivência com práticas e discursos racistas. Na narrativa, os discursos são diferenciados a partir da distinção entre “preto” (quando o posicionamento é semelhante ao do pai etc) e “negro” quando a narradora assume seu ponto de vista crítico.

O que a questão da identidade tem a ver com a série de fotos que nos apresentam à Figueiredo criança? Na imagem acima, podemos visualizar a narradora, criança, bem vestida, em um momento de lazer, em algum parque de diversão, olhando fixamente para a câmera. Do mesmo modo, a foto nos impele a observar o menino ao fundo, com uma perna apoiada na outra, atrás das grades, também mirando a objetiva. Nos deparamos com essa foto, que ocupa o centro de uma página inteira, depois de lermos este trecho:

“Quem, numa manhã qualquer, olhou sem filtro, sem defesa ou ataque, os olhos dos negros, enquanto furavam as paredes cruas dos prédios dos brancos, não esquece esse silêncio, esse frio fervente de ódio e miséria suja, dependência e submissão, sobrevivência e conspurcação.

Não havia olhos inocentes.”

Curiosamente, é o olhar da menina que contrasta com o olhar do garoto. Diante da imagem, nos perguntarmos se são realmente “os olhos dos negros” que aparentam olhar sem filtro e furar as paredes. Afinal de contas, é o olhar de Figueiredo com um misto de desprezo e ódio que parece escapar à página, inquietando o leitor e contradizendo o relato. É interessante perceber como o olhar infantil (que contradiz o trecho que lemos) da narradora na foto e o discurso (adulto) do relato embaralham-se. Em entrevista à Rita Veleda Oliveira, a autora afirma que “o caderno é uma narrativa dúplice. Há uma criança que se exprime, mas também há uma mulher adulta: são duas pessoas.”

Nesse jogo de olhares, é como se o olhar maduro da narradora e, em última instância, o olhar da autora, buscasse em retrospectiva compreender as imagens da sua infância: quem é esse “eu” anterior? É Figueiredo, “filha do branco”, que não se separa das condutas racistas do colonizador? Ou a “negrinha loira” que questiona as regras e a partir da negação da figura do pai busca uma socialização com o negro? Ou, ainda, as duas coisas, já que “não havia olhos inocentes”? Dessa forma, poderíamos pensar que a imagem não parece atuar como uma mera confirmação do pacto autobiográfico (entre narrador, personagem e autor), mas sim como um duplo que evidencia “um corpo infantil que é e não é do autor” abrindo-se, assim, à distância entre o sujeito da narração e sujeito da experiência, permitindo, então, um ensaio crítico e distanciado sobre questões de sua própria vida.