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Há muitos recortes no país da literatura

João Daniel Oliveira1

Créditos da imagem: Vista de Delft, de Veermer

Como se sabe, quando ingressamos na pós-graduação, apresentamos um anteprojeto que dificilmente segue incólume ao longo do percurso. Trata-se de um recorte de interesses para o pesquisador, o qual, esponjoso e camaleônico, mostra-se apto a abrir mão de alguns caminhos e se enveredar por outros após entrar em contato com colegas de temas distintos, com sucessivas reuniões de grupos de pesquisa ou de orientação, com referências novas a cada disciplina. O pesquisador vai picotando suas ideias, fazendo colagens e promovendo abandonos, chegando ao ponto de realizar uma cisão quase umbilical. Isso aconteceu comigo quando fui apresentado a Argonautas, de Maggie Nelson, que, não por acaso, é em si um livro de recortes.

A autora informa, na seção de agradecimentos, que apresentou trechos do livro em diferentes formas: como parte de uma palestra, como livreto de instalação, em revistas e em antologias. Os estudiosos de literatura costumam considerar o período pós-moderno como um continuum “recortado” por excelência: fragmentado, líquido, desconstruído, rizomático etc. Há o mosaico enciclopédico de Pynchon; há, após a morte do autor, seu retorno simbiótico em distintas escritas do eu; há inventividades formais “recortadas” em jogos de amarelinhas e diários de anos ruins; há a autoteoria de Preciado e da própria Nelson. São, portanto, inúmeros recortes pós-modernos.

Mas Grande Sertão já é “recortado”. As linhas de Clarice também. A sintaxe de Carolina Maria, idem. E o fluxo de Woolf; e o Bloomsday; e as trocas de perspectiva de Enquanto agonizo; e o enjambement de Mallarmé. A verborragia de Whitman é tamanha que parece recortada. Há um recorte de verossimilhança em Madame Bovary. Paródias e pastiches não seriam recortes? Cervantes recortou os romances de cavalaria? O romance, dividido em capítulos, não é um compilado de recortes? Balzac não quis fazer um recorte da vida burguesa? A própria polissemia do termo “recorte” não é um recorte? E os ensaios de Montaigne? Recortes. O gênero ensaio já não seria um gênero recortado por excelência? Aforismos? Recortes. As mil e uma noites? Recortes de várias histórias. Homero? Um cara que recortou uma saga em dois grandes grupos, os quais, por sua vez, foram desmembrados em diversos… recortes. Pode-se dizer, assim, que não é possível haver literatura sem recortes? Que a literatura é recorte? Que a mímesis, enquanto recorte da realidade, não consegue capturar sua essência, como acusa Platão, e, portanto, já nasceu fragmentária? Que Argonautas não seria, portanto, um parente distante, mas consideravelmente próximo da Ilíada e da Odisseia? Que os argonautas são, inclusive, figuras da mitologia grega, o que atesta a flagrante contiguidade de um livro de 2015 com uma tragédia euridipiana de mais de 400 anos antes de Cristo?

Mas há uma singularidade neste Argonautas que não me parece discernível nas demais obras citadas. Há uma aparente falta de planejamento que torna este livro, na minha opinião, bastante orgânico. O seu grupamento de temas abordados – teoria queer, casamento, maternidade, literatura, machismo, teoria, crianças, política, economia, ficção, sexualidade, dentre outros – não jorra e nem vem a conta-gotas. Não é coerente nem incoerente. Não segue uma linha e nem é confuso (nem linear, nem circular). Simplesmente é. A sua classificação sistemática é uma missão impossível. A sua ficha catalográfica, que não utiliza “ficção” ou “romance”, também não põe “literatura”. Os índices são “família”, “estudos de gênero”, “teoria queer” e “memórias”. Dentro da ficha em si, a listagem de assuntos é: “1. famílias”, “2. identidade de gênero”, “3. minorias sexuais – famílias” (de novo), “4. Nelson, Maggie, 1973 – Família” (de novo!) e “5. Teoria Queer”. Ao mesmo tempo, sabemos intimamente e intuitivamente que estamos diante de um texto literário. Como isso é possível? Qual é o truque?

Acho que ainda não li algum livro tão “recortado” quanto este. Em todas as páginas. Até mesmo na mancha gráfica. Até mesmo na ficha catalográfica. Até mesmo na capa da edição brasileira, na qual há, precisamente, um corte que simboliza – spoiler alert – um recorte de identidade de gênero.

1 João Daniel Oliveira é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura da UFBA. É mestre e especialista em Estudos Literários pela UEFS, instituição na qual também se graduou em Letras Vernáculas. É professor do ensino básico, escritor e membro do Conselho Municipal de Cultura de Feira de Santana, representando a cadeira de literatura.