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Ferrante e a de-formação do romance

Allana Emilia

Créditos da imagem: Untitled, William J O’Brien, 2019

Uma das questões já discutidas por mim em posts anteriores é a relação entre Ferrante e o Bildungsroman. Ao longo da investigação, associei a tetralogia à tradição do romance de formação alemão, ainda que, de acordo com a discussão teórica proposta por Franco Moretti, a obra da escritora italiana pareça se desviar da tradição do gênero.

A discussão proposta por Wilma Maas, em “O cânone mínimo” me fez revisitar essa reflexão. A teórica brasileira afirma que, em Bildungsromane femininos,  o resultado é um fracasso em relação ao que a tradição alemã considera um bom desfecho: a integração social e a coerência em relação ao meio social. Nos exemplos femininos mencionados pela autora, ou temos a frustração da personagem em relação a sua integração social ou uma reformulação de si avessa às expectativas sociais. Ou seja, segundo Maas, em romances de formação de autoria feminina, o desfecho harmônico tradicional entre sujeito e sociedade não seria possível, já que a formação feminina avança na direção de questões de afirmação da individualidade que interferem em sua formação e na relação que mantém como mulher com o mundo exterior, o que afeta diretamente sua auto-educação e seu processo de descoberta.

No caso das narrativas de Elena Ferrante, o foco na relação entre duas personagens principais parece estabelecer um desvio ainda mais radical em relação à forma tradicional alemã. Pensando na relação entre esse esfarelamento da forma e as obras da autora italiana, retomei  o conjunto de conferências escrito por Ferrante e publicadas em “As Margens e o Ditado”. Aí, Ferrante comenta sobre sua produção textual da seguinte forma:

“Desenvolvi uma narradora em primeira pessoa que, superanimada pelos empurrões casuais entre ela e o mundo, deformava a forma que havia trabalhosamente atribuído a si mesma e, a partir daquelas marcas e distorções e lesões, extraía outras possibilidades inesperadas; tudo isso enquanto avançava ao longo da linha de uma história cada vez menos controlada, talvez nem sequer uma história, talvez um emaranhado dentro do qual não apenas o eu narrador, mas a própria autora, uma pura fabricação da escrita, estavam enredados”

Vejo aí, nessa observação, uma chancela para pensar  a deformação da forma tradicional do Bildungsroman em Ferrante. No entanto, me valendo aqui de uma orientação de leitura oferecida diretamente pela autora, me vejo diante de outra questão que me interessa: ao falar e escrever sobre sua própria obra, Ferrante, apesar do anonimato em que se mantém, não interfere demais na forma como a crítica lê sua produção?

Escrever é dispor fragmentos, oscilar entre a ordem e a desordem

Allana Emilia

Créditos da imagem: frame de As praias de Agnès, filme de Agnès Varda (2008)

Na última releitura de As margens e o Ditado, percebi uma nova menção ao termo frantumaglia, que é muito utilizado tanto pela autora quanto por sua fortuna crítica. Ferrante comenta como o termo a assombrava toda vez que a mãe o utilizava para falar de si mesma, e como a associação dele com desordem causava a ela um imenso terror e mal-estar. Segundo Ferrante, por causa desse assombro, ela tenta transformar histórias em narrativas limpas, ordenadas, harmônicas, mas confessa que o que a leva a publicar é “uma energia que quer atrapalhar, desordenar, desiludir, errar, falir, sujar”.

Em frantumaglia ao comentar um trecho de O Inominável de Beckett, a autora afirma que a forma é a única coisa imprescindível na literatura, pois, para ela, a forma pressupõe limites seguros, tranquilidade frente a uma insegurança que se manifesta no eu que escreve. No entanto, ao comentar sua própria escrita, afirma associar-se “à tendência de usar estruturas tradicionalmente robustas, trabalhando-as com cuidado, enquanto esperava, paciente, começar a escrever com a verdade de que sou capaz, desequilibrando e deformando, abrindo espaço para mim mesma com todo o corpo”.

Victor Xavier Zarour Zarzar, um estudioso da obra da autora italiana, toma o romance de Dickens, Grandes esperanças, como um modelo de romance de formação e a compara com a maneira como Ferrante rompe com o gênero ao “desestabilizar as estruturas narrativas do romance de formação”. Essa é uma chave de leitura utilizada por boa parte da fortuna crítica sobre a produção da italiana que costuma referir-se aos livros da tetralogia da autora como romances de (de)formação.

Quando Ferrante afirma deformar as estruturas e abrir espaço para si, podemos pensar que ela também pode se referir ao processo de autocrítica que exerce sobre sua obra ficcional, ao construir e orientar uma reflexão a partir de sua perspectiva sobre formas de ler seu próprio texto. No entanto, até que ponto essa intervenção – da autora como crítica de sua própria obra-  não constitui um fator de controle crítico que cerceia a especulação sobre seus livros é um questionamento que não pode ser perdido de vista.

Elena Ferrante, crítica

Allana Emilia

Créditos da imagem: Daniel Garcia, Siirena. Acrílico sobre tela, 2022.

Seguindo os rastros do post anterior,continuo a discutir a atuação de Elena Ferrante sobre a crítica de seus escritos ficcionais. Mas, dessa vez, quero partir do comentário sobre uma obra específica mencionada pela autora, que alterou o curso de sua escrita a partir de sua segunda leitura. Esse processo foi marcado pela (re)leitura de  Non credere di avere dei diritti (Não pense que você tem direitos), um volume coletivo publicado em 1987 pela Livraria Feminina de Milão, obra que se tornou muito importante para o feminismo italiano.

Nesse livro, a história de Emilia e Amalia se entrelaça porque, frequentando a  mesma escola, ambas mantêm uma relação mediada pela escrita. Amalia é falante e tem facilidade com a escrita, mas Emilia não consegue a proficiência da amiga, por isso Amalia presenteia-lhe com um texto no qual escreve a vida de amiga: «uma vez escrevi-lhe a história da sua vida real, porque já a sabia de cor”.

Em Tu che mi guardi, Tu che mi racconti (Você que olha para mim, você que me diz), Adriana Cavarero, filósofa italiana,  retoma a história das duas meninas para compará-las às narrativas épicas de Ulisses. Nos subúrbios milaneses, a trajetória de duas meninas se entrelaça: «a primeira escreve a história da segunda porque esta a conta continuamente e de forma desordenada, mostrando-lhe a sua obstinada vontade de narrar», diz Cavarero em seu livro.

É a própria Ferrante quem desata esses fios em inúmeras oportunidades, não deixando dúvida sobre a importância que a leitura de Cavarero teve para a composição de suas protagonistas, Lila e Lenu: “Para simplificar: eu conto a você a minha história para que você a narre para mim’. Entusiasmei-me. Era o que eu – de forma despretensiosa – estava tentando criar no meu esboço de romance interminável centrado em duas amigas que entrelaçavam, de maneira menos edificante que Emilia e Amalia, os relatos de suas vivências.”

Essa clareza na exposição de suas rotas de composição desvenda um outro movimento: a forte intervenção que Ferrante faz sobre sua fortuna crítica. Em alguns trabalhos, – a exemplo da tese de doutorado de Victor Zarour Zarzar e o livro Finding Ferrante, de Alessia Riccardi –  a menção a Cavarero e a seu livro torna-se central para a  análise da amizade entre Lenu e Lila e da intensa mediação que mantêm com a escrita, o saber, ao longo de suas vidas.

Em As Margens e o Ditado, um conjunto de conferências escritas por Ferrante, suas “influências” são reiteradas, mas agora também aparecem reafirmadas pela menção a obras que analisam seu trabalho e reforçam a importância da leitura de Cavarero para a composição da tetralogia. Esse reforço é interessante porque sugere, por parte de Ferrante, uma certa supervisão e julgamento dos procedimentos interpretativos sobre seus textos ficcionais. Se for assim, não é possível deixar de notar uma certa ambivalência em relação ao desprezo que atribui à revelação de sua identidade como autora, como reafirma em Frantumaglia, ao negar a importância da revelação de seu nome verdadeiro para a leitura de sua obra: “eu a escrevi; se o livro for de algum valor, isso deve ser suficiente”.

Elena Ferrante e As Margens da leitura/escrita

Allana Santana

Créditos da imagem: Francesca Woodman, Talking to Vince (1980) IN: https://artsandculture.google.com/asset/talking-to-vince-francesca-woodman/ZwGetftC6OXKpg

Ricardo Piglia, ao falar do escritor enquanto crítico, afirma que o processo de formação do escritor se dá a partir de uma relação particular com a leitura, com o uso de outros textos. E afirma que é a partir dessa posição que o autor, ao estabelecer essa rede de leituras, perlabora sua escrita. No caso de Elena Ferrante, essa rede de leituras aparece de forma bem definida. A autora italiana, em muitos de seus textos, faz questão de marcar autores, leituras e textos que provocam inflexões em seu processo de construção narrativa. É sobre essa relação entre leitura e escrita e a importância dela para a criação de uma assinatura autoral que gostaria de fazer um breve comentário.

Um exemplo interessante para essa reflexão é o poema de Emily Dickinson mencionado por ela em As Margens e o Ditado:

Na história, as bruxas foram enforcadas
Porém eu e a História
temos toda a bruxaria de que precisamos
todo dia entre nós

A relação que Ferrante estabelece com esse poema é, a princípio, semelhante ao do título do ensaio – Histórias, Eu – que sugere uma ligação intrínseca entre o lido, a subjetividade, a reflexão sobre acontecimentos que vão se acumulando ao longo da História e o processo de criação. É a partir dessa interação que a “bruxaria” acontece.

Esse mesmo poema aparece ao final do ensaio, com um comentário curioso:

“Algo mudou recentemente. Enquanto eu projetava A vida mentirosa dos adultos, pensei de novo na poesia de Dickinson que citei no início e percebi com grande atraso um momento importante naqueles versos. […]Não havia prestado atenção em como ‘eu e a História’ gerava um ‘nós’ e um espaço ‘em torno a nós’. […] O fio da narrativa, no tumulto da História, na multidão de personagens femininas com suas vicissitudes, para não correr o risco de se partir, agarrava-se ao eu e você.”

Aqui, Ferrante reconhece o desejo de discutir a condição feminina ao longo dos tempos, presente também na força do protagonismo de suas personagens, e sugere uma ligação para além do texto, da leitura ou da escrita: para além das histórias.

O que me interessa nessa relação entre o lido e o escrito é o fato de que ao comentar sua dieta de leituras e de afinidades eletivas, Ferrante convoca o olhar de sua recepção crítica para a análise do processo de formação de sua assinatura autoral. Nesse mesmo ensaio, Ferrante associa a Tetralogia Napolitana e A Vida Mentirosa dos Adultos à leitura de Dickinson, Elsa Morante e dos folhetins românticos. Esse ecletismo faz pensar não apenas na forma dos próprios romances, mas na maneira singular como se afirma como autora, atuando também fortemente como uma espécie de fonte de consulta para sua recepção crítica.

Frantumaglia, a crítica e Elena Ferrante

Allana Santana

Créditos da imagem:  Profane Self-Portrait, Luisa Prado

Em minha investigação inicial sobre a narrativa de Ferrante, percebi um procedimento bastante curioso: a maior parte da produção crítica que consultei parece recorrer aos termos utilizados na própria produção da autora italiana – como Frantumaglia e Smarginatura (desmarginação) – como elementos de compreensão do universo romanesco de Ferrante.

Em Frantumaglia, obra que reúne entrevistas e correspondências e outros textos  de não-ficção publicados por Ferrante, temos o seguinte trecho: “Minha intervenção acontecerá apenas através da escrita, mas a tendência é que eu limite até isso ao mínimo indispensável”. Além disso, ainda menciona o seguinte: “Acredito que, após terem sido escritos, os livros não precisam dos autores para nada”.

Essa movimentação da crítica na direção das pistas deixadas por Ferrante em seu texto não ficcional parece entrar em conflito com o que é expresso em Frantumaglia como um projeto da autora, cuja evidência maior é a insistência em manter-se no anonimato, valendo-se do pseudônimo.

Esse movimento feito pela recepção de Ferrante não deixa de evidenciar a importância da figura da autora, ainda que essa ausência se configure como um jogo de sombras, já que Ferrante se manifesta apenas por meio de sua produção escrita, ficcional ou não, rejeitando de forma assertiva chamar a atenção para sua atuação fora da cena da escrita, mas sugerindo, nessa mesma cena, a centralidade de termos como Smarginatura e Frantumaglia para seu projeto de criação.

Duas coisas me inquietam: a primeira diz respeito à autoridade conferida pela crítica à palavra da autora ao fazer dos termos sugeridos por ela, chaves de leituras centrais às obras ficcionais, acentuando assim um paradoxo, já que a própria Ferrante se desdobra por apagar os rastros de uma autoria “forte”,  negando-se a revelar seu nome verdadeiro. Isso também circunscreve o movimento crítico a um tipo de ouroboros interpretativo, constantemente alimentado a partir de novos textos e novas pistas produzidas pela própria intervenção de Ferrante.

Como seria possível, então, fugir a essa armadilha?

A outra inquietação, tem a ver com o fato de que um veio interpretativo forte da obra da autoria italiana está relacionado à discussão do tratamento do feminino em suas obras e de que boa parte de sua recepção crítica é feita também por mulheres. Entretanto, podemos afiirmar que, pelo menos no âmbito americano, o movimento inicial para a legitimação de sua carreira como autora se deve à publicação de um texto crítico pelo americano James Wood, chamado Women on the Verge. Mas a própria Ferrante questiona esse modo de leitura em um texto escrito para sua coluna no The Guardian: “a minha escrita é boa, ou é boa para uma mulher?” Essa também me parece uma questão interessante a ser discutida pela fortuna crítica.

Embora a pesquisa de mestrado esteja só começando, perceber como se dão as relações entre a crítica e a autoria está se tornando uma questão interessante para pensar a produção de Elena Ferrante.

Elena Ferrante, a narrativa e suas personagens

Allana Emília

Créditos da imagem: Arpad Szenes, Le couple (1933)

Na reta final da iniciação científica, participei de dois cursos on-line cujas ementas contemplavam uma discussão sobre a produção da escritora italiana Elena Ferrante. A participação foi muito positiva: é sempre revigorante encontrar espaços para discutir o que nos interessa, em especial com pessoas que também se dedicam ao mesmo objeto de estudo. Muitas das discussões me auxiliaram a pensar determinados aspectos da escrita de Ferrante, o que colabora para o meu desejo de continuar a investigação sobre a autora no mestrado.

 Em “Leituras sobre Elena Ferrante”, curso organizado por Fabiane Secches e pela Revista Deriva, muitas das leituras coincidiram com aspectos que eu havia investigado. Foi revigorante perceber o afeto dos participantes no investimento de leitura e comentário da obra, o que justifica a tão falada “Febre Ferrante” que se seguiu ao lançamento dos livros da tetralogia. Muitos dos comentários feitos por Secches e por Camila Dias, que também participou da discussão, exploraram a repercussão que a obra de Ferrante teve mundo afora.

Temas recorrentes na discussão sobre a obra apareciam comentados a partir de impressões de leitura, mas também calcados na pesquisa acadêmica, o que pode ser tomado como evidência do impacto que as obras de Ferrante tiveram tanto na academia quanto no público mais amplo. A relação de amor e ódio entre Lila e Lenu, uma dinâmica complexa da exposição narrativa, a visão não idealizada sobre as relações entre mãe e filha foram alguns dos tópicos que dominaram as conversas.

Já em “Encontros entre Autobiografia e Ficção”, um curso promovido pelo Espaço Cult ministrado por Natalia Timerman, cujo projeto de tese de doutorado explora as narrativas de Ferrante, a relação especular entre Lila e Lenu foi um dos pontos que mais me interessaram porque um dos resultados de minha pesquisa de iniciação científica foi a investigação sobre a maneira como a trajetória das duas personagens tem reflexos na forma da construção narrativa.

Enquanto Lenu parece percorrer o caminho mais tradicional de ascensão social e financeira, Lila segue um caminho próprio, desestabilizando a ordem que Lenu, a narradora, quer dar às duas vidas que conta. Um episódio pode ser tomado como disparador dessa espécie de paralelismo de trajetórias ao mesmo tempo tão próximas e tão distantes: a compra e leitura do romance Mulherzinhas, em que as meninas passam a enxergar o estudo e a escrita literária como uma saída para a vida no bairro:

“Quem nos ouvia achava que a riqueza estivesse escondida em algum canto do bairro, dentro de arcas que, ao serem abertas, chegavam a reluzir, só à espera de que as descobríssemos. Depois, não sei por que, as coisas mudaram e começamos a associar o estudo ao dinheiro. Pensávamos que estudar muito nos levaria a escrever livros, e que os livros nos tornariam ricas” (FERRANTE, 2015, p.63)

O impacto que a leitura da obra de Louisa May Alcott causa nas meninas reverbera por toda a narrativa, influenciando as escolhas das personagens e os eventos que se desdobram à medida  que acompanhamos a transformação de ambas. Lenu segue na escola, torna-se escritora reconhecida. Já Lila acaba por escrever um livro infantil não muito tempo depois da leitura de Mulherzinhas, mas não apenas não segue com os estudos, como assume o casamento com Stefano e também os negócios do marido, para depois, mais tarde, abandonar tudo, sem nunca, de fato, se afastar do bairro. Assim, é a habilidade de Ferrante em manejar a trama que permite a criação de um mundo que contém e afirma ambas as formas: a organização vigilante de Lenu, a escritora, e a fratura, o enigma que Lila representa, o “fantasma exigente” da história.

Se a obra assume um tom reflexivo e o explora ao lado de recursos mais populares como a utilização dos ganchos, a grandiloquência e a dramaticidade de muitos episódios, isso pode ser associado ao fato de que assumindo o papel de narradora, Lenu se dá conta do pouco que sabe sobre Lila e, então, a partir daí, seu objetivo de “dar ordem ao caos”, como observa Olivia Santovetti, resulta para os leitores uma experiência emocionante de leitura.

Quem é a “Amiga genial”?

Allana Santana

Créditos da imagem: Hans Breder, Body/Sculptures, 1969-1973


Em meu último post, me arrisquei a comentar algumas transformações na forma do bildungsroman, a partir de uma leitura de A amiga Genial. Agora, gostaria de explorar melhor a relação entre as duas personagens principais da quadrilogia de Elena Ferrante, Lila e Lenu.

No prólogo de A amiga Genial, Lenu narra o sumiço de Lila, que é o evento propulsor da narrativa:

“Estava extrapolando o conceito de vestígio. Queria não só desaparecer, mas também apagar toda a vida que deixara para trás. Fiquei muito irritada. Vamos ver quem ganha dessa vez, disse a mim mesma. Liguei o computador e comecei a escrever cada detalhe de nossa história, tudo o que me ficou na memória”.

Assim, a trama da tetralogia, do ponto de vista de Lenu, é a história da amizade das duas, bem como a narração das experiências vividas por ambas ao longo de toda uma vida. Lenu busca dar uma ordem a essas vidas, mas como a presença de Lila é fundamental, mas vestigial, escorregadia, a escrita de Lenu falha em capturar Lila, ao mesmo tempo em que não desiste de tentar realizar essa captura.

Desde o princípio, a diferença de personalidade das narradoras afeta a trama também. A presença de Lila está associada a situações de impulsividade, a fortes emoções, o que contrasta com a ordem que Lenu quer dar à narrativa.

Um exemplo: durante a adolescência das meninas, Lenu é abordada pelo filho do farmacêutico e outro garoto, que apostam que os seios de Lenu não são verdadeiros, desconfiando que ela usa enchimento. Para tentar convencê-la, o garoto propõe dividir com ela as vinte liras que ganharia, caso Lenu aceitasse o desafio. Após uma breve dúvida, recebe o dinheiro de antemão e revela os seios para os dois em um local mais afastado. Após recontar esse evento, a narradora associa seu comportamento à influência de Lila em sua vida, que atua sobre ela como um “fantasma exigente”:

“E se estivesse com Lila? Eu a teria puxado por um braço e sussurrado em seu ouvido: vamos embora; e depois, como sempre, eu acabaria ficando, só porque ela, como sempre, teria decidido ficar. Ao contrário, em sua ausência, após uma breve hesitação, me pus em seu lugar. Ou melhor, abri um espaço para ela em mim”.

Mas talvez o episódio mais caracteristico da maneira como a “formação” da personalidade de ambas se embaralha, se entrelaça seja o momento em que as amigas decidem se aventurar pela primeira vez fora dos limites do bairro, a partir da ideia de Lila. A presença de Lila parece inspirar coragem em Lenu, que afirma que “sozinha, eu jamais teria coragem de encarar”. Mas, quando estão prestes a sair do túnel que representa os limites do bairro, Lila decide voltar, enquanto Lenu quer continuar andando: “Notei que várias vezes ela se virava para trás, e eu também comecei a me virar. Sua mão começou a suar. […] Por que Lila olhava para trás? Por que tinha parado de falar? O que estava dando errado?”. Após a empreitada ter dado errado, a narradora parece refletir sobre esse comportamento. A atitude de Lila parece contrariar a imagem que Lenu tinha da amiga e que vinha sendo construída pela trama para o leitor. Assim, o inusitado da atitude de Lila é uma porta para o estranhamento que altera os planos iniciais de Lenu, que ao tentar capturar a existência de Lila, se depara com uma figura fugidia:

“Verificara-se uma curiosa inversão de comportamento: eu, apesar da chuva, teria continuado o caminho, me sentia longe de tudo e de todos, e a distância – o descobrira pela primeira vez – apagava dentro de mim qualquer vínculo, qualquer preocupação; Lila bruscamente se arrependera do próprio plano, tinha renunciado ao mar, quisera voltar aos limites do bairro. Eu não conseguia entender.”

A isso me referi acima quando associei a construção das personagens à construção da própria trama narrativa. O fato de que Lenu não consegue “explicar” Lila tem impacto direto na forma de organização da narrativa. A fortuna crítica da obra não se cansa de chamar a atenção para a smarginatura, tão cara para a escrita de Ferrante. Poderíamos entender que o que sai das margens diz respeito não apenas ao desejo inicial de Lenu de fazer de Lila mais do que vestígio, retirando-a da condição de fantasma, mas também de “escrever cada detalhe de nossa história, tudo o que me ficou na memória”. É inegável que acompanhamos a infância, a adolescência e a vida madura de ambas ao longo da quadrilogia, mas também é inegável que em meio a essa (pretensa) linearidade nos envolvemos nos dilemas, nas digressões, nas angústias de Lenu que se entremeiam aos episódios.

O leitor também experimenta essa ambivalência. Acompanhamos com avidez os acontecimentos, mas a narrativa faz questão de nos propor uma desmarginação. É isso o que acontece, por exemplo, quando acreditamos, durante a leitura da maior parte da obra, que A amiga genial do título é  Lila. Entretanto, quase no final do livro, é Lila quem se refere a Lenu como sendo sua amiga genial.

Elena Ferrante e o Bildungsroman

Allana Santana

Créditos da imagem: The Year’s Midnight, Rafael Lozano-Hemmer, 2010.

Na tentativa de se aproximar do objeto que estuda, a crítica recorre a diferentes estratégias de leitura. É o que tento fazer ao me arriscar a comentar a produção da autora italiana Elena Ferrante. No meu caso, estou passeando pela já gigantesca produção crítica sobre a autora e sua obra e pela profusão de termos empregados pelas mais diversas abordagens.

Alguns teóricos aproximam a escrita de Ferrante ao melodrama e aos folhetins tentando entender a utilização de artifícios como as peripécias e os cliffhangers utilizados na composição narrativa dos livros da tetralogia. Outros, comentam a serialização narrativa e o flerte com as séries de TV. Mas não é incomum encontrarmos leituras que nomeiam o empreendimento narrativo de Ferrante como uma forma de Bildungsroman, associando as características do romance de formação à trajetória de Elena e Lila, já que acompanhamos a formação moral, intelectual e afetiva das duas personagens à medida que a narrativa avança.

Em seu clássico O Bildungsroman como forma simbólica, Franco Moretti afirma existirem duas linhas de romance de formação que se orientam a partir de dois princípios: o de classificação e o de transformação. No primeiro, temos os romances de formação que apresentam um desfecho marcado, claro e estável; e, no segundo, o final é o momento mais pobre de sentido, o que indica uma “impossibilidade” de formar um sentido fechado para a narrativa.

Considerando a narrativa de Ferrante, é comum que alguns críticos afirmem que a lógica narrativa da tetralogia se equilibra em uma ambiguidade, pois ao mesmo tempo que acompanhamos Lenù, a narradora, na tentativa de dar forma à Lila, ao “escrever cada detalhe de nossa história, tudo o que me ficou na memória” (A amiga genial, p.17), também vamos percebendo um movimento narrativo que apesar de parecer ordenar eventos vai delineando uma esgarçamento, uma impossibilidade de capturar a imagem da amiga, do relacionamento entre ambas, da “realidade” da vida que viveram. Essa ambiguidade que se revela no movimento de construção narrativa pode representar as tentativas de entender ou ordenar a própria subjetividade, que no caso das duas amigas se constrói em paralelo.

Entretanto, será possível pensar que a tetralogia se associe de fato à tradição do Bildungsroman? Se comparamos as análises dos exemplos clássicos considerados por Moretti, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, O vermelho e o negro, entre outros, percebemos que as heroínas de Ferrante podem integrar a galeria dos exemplos do gênero. No entanto, é possível perceber também algumas diferenças. Talvez a mais explícita esteja no fato de que acompanhamos os anos de formação de duas personagens femininas (ao contrário do centralidade que os personagens masculinos ocupam na forma clássica do gênero), mas também poderíamos comentar a imersão da narrativa na pobreza de uma Nápoles que marca suas personagens, o que não deixa de representar um deslocamento em relação à predominância na forma clássica do “romance de artista”, no qual a narrativa, quase sempre, representa personagens de um outro universo social.

Ainda como uma conclusão parcial, arriscaria a dizer que se é possível pensar na tetralogia de Ferrante como um romance de formação, essa possibilidade implica também avaliar as transformações sofridas pela própria forma do gênero, já que acompanhamos duas trajetórias a de Lenù e a de Lila. Um veio narrativo, o de Lenu que tenta construir o “romance de formação” de Lila, atua para tentar ordenar, dar uma lógica ao vivido e recontado na obra, mas simultaneamente, também acompanhamos uma desorganização (não é à toa que a noção de smarginatura é tão comentada pelos críticos) que realça um certo desconsolo de Lenù ao perceber que a tentativa de dar forma à vida a partir de palavras é falha. E talvez seja a presença dessa convivência ambígua dos dois veios narrativos na construção da trama romanesca que faz com que a obra esteja, ao mesmo tempo, tão perto e tão longe do romance de formação.

Ausência e trabalhos de luto

Antonio Caetano

Créditos da imagem: My Brilliant Friend: Season 2 Episode 3 “Chapter 11: Erasure”

“Vamos ver quem ganha dessa vez, disse a mim mesma. Liguei o computador e comecei a escrever cada detalhe de nossa história, tudo o que me ficou na memória”. É dessa forma que se inicia o romance A amiga genial, de Elena Ferrante. Com este primeiro livro, que compõe a tetralogia napolitana, acompanhamos os relatos autobiográficos da narradora que, já idosa, vê no desaparecimento voluntário de sua amiga de infância a oportunidade de antagonizá-la, pois determinada a narrar a história de suas vidas, pretendia “impedir” seu desaparecimento.

Em seu artigo Escrita, vestígio e ausência em A amiga genial de Elena Ferrante, Tatianne Dantas, através de uma abordagem psicanalítica, relaciona o ato e a decisão de escrever da personagem Elena “Lenu” Greco com o sentimento de perda após o desaparecimento de sua amiga Rafaella “Lila” Cerullo. Na opinião de Dantas, o romance traz “à tona o real de um encontro faltoso que se revelou a partir do trauma do desaparecimento”.

A escrita, desse modo, representaria o caminho através do qual é possível rearranjar a realidade, fazer com que o passado e o que se perdeu possam, de certa forma, serem presentificados. Essa leitura que associa experiência traumática e narrativa chama minha atenção, pois estou interessado em investigar textos autoficcionais em que os processos de escrita de si estão relacionados a um trabalho de luto. Roland Barthes em seu Diário de luto, afirma que, “O ‘Trabalho’ pelo qual (dizem) saímos das grandes crises (amor, luto) não deve ser liquidado apressadamente; para mim, ele só se realiza na e pela escrita”.

Mesmo que a tetralogia não possa ser considerada autoficcional, há um modo de ler os livros que nos faz pensar na relação entre luto e narrativa. Em A amiga genial, a narrativa se constrói por meio lembranças da narradora, da leitura que fez de textos de Lila confiados a ela, das informações passadas por terceiros. Poderíamos afirmar, então, que o que lemos na tetralogia é mais a “ausência presente” de Lila na vida de Lenu no momento da escrita, e menos a narração da vida delas no passado.

Ler a narrativa de Ferrante e pensar na afirmativa de Barthes me leva a considerar que o trabalho de luto está intimamente associado com a relação de um indivíduo com a ausência, não com a morte propriamente, já que a “ausência”  dialoga  de maneira mais evidente com aquele que ficou, com o enlutado, não com quem se foi, como geralmente ocorre na associação do luto com a morte de um ente querido. Trata-se, então, da reação à morte e à ausência.

Há várias maneiras de viver o luto, claro. Tampouco é nova a relação entre escrita e trauma ou escrita e luto. No entanto, me interessa mais pensar na autoficção como uma estratégia que pode se constituir não apenas como um trabalho de luto, mas que pode oferecer também ao leitor a oportunidade de acompanhar na narrativa o processo de reconfiguração de uma subjetividade, de um modo de ser e estar no mundo depois da perda de um ente querido, por exemplo.

Elena Ferrante e a escrita sobre a mulher

Por Allana Emilia

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Créditos da Imagem: Divisor (1968 – releitura feita em 1990), Lygia Pape

Conceição Evaristo, em um texto seu, afirma que “escrever pressupõe um dinamismo próprio do sujeito da escrita, proporcionando-lhe a sua auto-inscrição no interior do mundo”. É pensando nessa fala que direciono meu olhar para uma escritora que vem suscitando muitos questionamentos para mim: Elena Ferrante.

Em suas obras (e os estudos relacionados a ela marcam esse ponto com muita clareza), a autora retrata o feminino de uma maneira original: Ao mesmo tempo em que escreve sobre o fim de um casamento em Dias de Abandono, Ferrante parece suscitar questões sobre a maneira como a mulher é vista pela sociedade. Nesse livro, a personagem principal, pouco após ser abandonada pelo marido, se recorda de uma situação similar que aconteceu com uma vizinha de sua mãe, em sua infância. Esta senhora, ao ser também abandonada, gradualmente perde sua identidade e passa a ser conhecida como “a pobrezinha”. A partir daí a protagonista parece dividida entre a rendição ao sofrimento (similar ao que acontece com sua vizinha) e a continuidade da vida: manter a casa em ordem, cuidar dos filhos, voltar a escrever.

Esse questionamento aparece também quando a autora retrata a luta de suas personagens para equilibrar a maternidade e a carreira. Esse aspecto é bem marcado em História de quem foge e de quem fica, o terceiro livro da série napolitana, quando Elena (a personagem principal) tem que cuidar das filhas e aos poucos abandona a escrita. Depois de um tempo, ela começa a se questionar se realmente deve abdicar da escrita para cuidar das filhas e, então, vai tentando equilibrar os dois lados dessa vivência. Somado a isso ainda temos o lado sexual das personagens, sua relação com o passado e sua imersão no contexto histórico-social no qual vivem.

Em um texto de sua coluna no The Guardian, Ferrante afirma que as mulheres vivem num mundo construído para preencher as necessidades dos homens, e, nessa condição, frequentemente são sufocadas pelos próprios anseios, podendo até odiar a si mesmas e a outras mulheres, posição que afirma entender, mas defende que deve ser evitada na busca pela autonomia feminina.

Assim, acredito que ao trazer de maneira tão crua o que se passa com suas personagens, Ferrante permite uma inserção feminina diferente do que percebe no cotidiano, trazendo o potencial de um relato feminino que contemple esse universo sem cair no lugar comum, dando voz a demandas que, mesmo com todos os avanços feministas, ainda não são supridas em sua totalidade. Com essa escrita, Elena Ferrante traz novas maneiras de inserir a mulher na sociedade, fazendo isso através da literatura.