Arquivo da categoria: Literatura e fotografia

“Se não escrevo as coisas, elas não encontram seu termo, são apenas vividas”

Samara Lima

Créditos da imagem: Françoise Janicot, L’Encoconnage, 1972.

Em “A dúvida cava seu sulco dentro de mim: e se o romance acabasse?”, uma coluna publicada em 2020 no jornal Le monde, Nathalie Azoulai problematiza a sua própria prática enquanto escritora ao comentar sobre as novas formas ficcionais e um certo cansaço do gênero romance por parte dos autores e leitores. Ao fazer isso, ela questiona o fato de “dizer a verdade sem recorrer à ficção”, ao mesmo tempo que enfatiza o paradoxo que existe em termos “não-romances que se leem como romances”.

A tensão entre ficção e relato autobiográfico parece bastante atual, mas o questionamento não é recente, pois, no início dos anos 2000, Annie Ernaux já estava definindo seu projeto literário através das seguintes características: “recusa da ficção e da autoficção”, a escrita “como busca da realidade” e a tentativa de inserir seu texto “entre a literatura, a história e a sociologia”. Neste sentido, as imagens fotográficas (reproduzidas materialmente ou descritas) desempenham um papel essencial em suas produções: com as fotografias retiradas de arquivos familiares, ela as questiona durante a história para atualizá-las e revelar a “realidade” em ação. De maneira controversa, são essas fotos que permitem a autora apreender a vida com precisão e objetividade .

O uso da fotografia por parte da escritora francesa em consonância com a sua recusa pela ficção me fez lembrar o livro O trabalho das imagens: conversações com Andrea Soto Calderón (2021), de Jacques Rancière, que eu já citei no post “O que eu vejo na foto quando olho para ela?”. Aí, o autor está menos preocupado em traçar uma definição ontológica sobre a imagem e mais interessado em entender o seu funcionamento, ou seja, o que uma imagem faz.

No decorrer da entrevista com Calderón, Rancière nos convida a enxergar a imagem não como um mero reflexo das coisas ou como algo que é fruto da intenção do autor, mas a compreendê-la como um dispositivo que busca criar uma contravisão, uma perturbação entre o dizível e o perceptível, a fim de construir novos sentidos e regimes de visibilidade.

Nesse mesmo livro, o autor associa a imagem visual, e seus modos de resistência, ao método da ficção. Segundo Rancière, a ficção não é o que se opõe à realidade cotidiana, tampouco resume-se a simples invenção de histórias ou a composição de personagens, como a literatura moderna buscou definir. Mas, sim, uma racionalidade e uma forma de construir relações e reorganizações do campo do visível.

Para ele, há um trabalho ficcional onde quer que seja necessário produzir sentido de realidade, e isso não significa dizer que tudo é relativo e que a realidade não existe mais. O fato é que a ficção, segundo o autor, não é mais privilégio do imaginário, ela é uma espécie de arquitetura que permite a criação de determinada aparência. O trabalho ficcional revolucionário, então, não é afirmar que essa realidade não é a realidade, mas racionalizar o que estava indexado no registro de um único real possível e mostrar que há várias maneiras de se construir o real.

Assim, tendo em vista a recusa da ficção por parte de Ernaux por acreditar que ela é sinônimo de invenção e mentira e seu desejo é inscrever seu texto numa verdade, será que não poderíamos tomar as proposições de Rancière para pensar seu trabalho também como uma produção ficcional que, ao fazer de suas experiências pessoais matéria literária, confere existência ao que foi vivido e explode a ficção dominante

“O que vejo na foto quando olho para ela?”

Samara Lima

Créditos da imagem: Saia da frente do meu sol (2023), de Felipe Charbel

Em O trabalho das imagens: conversações com Andrea Soto Calderón (2021), Jacques Rancière aponta que não devemos reduzir a imagem visual a uma semelhança  com o referente ou ao produto de uma ação intencional que meramente desfila seu sentido diante dos olhos de espectadores imponentes. Mas, sim, que devemos pensá-la como algo que resiste, cria deslocamentos por seu aspecto performático e que, muitas vezes, escapa da própria vontade daquele que gostaria de predeterminar seu efeito.

A leitura do livro me interessa justamente pela discussão da imagem fotográfica como uma operação ativa, um saber que foge à prescrição e à representação, que almeja atingir uma dimensão imaginativa e redefinir as noções de legibilidade e visibilidade, possibilitando outra forma de apreender o real. Enquanto a representação tende a imobilizar e fixar os sujeitos retratados em categorias que os definem e submetem, a figuração revela o quão difícil (até mesmo impossível) é reter os sujeitos e suas experiências em uma imagem ou obra.

Segundo Rancière, a fabulação de imagens está relacionada à ficção e uma das principais formas de reivindicação de uma visibilidade muito mais complexa do que está visível é procurar interrogá-las de maneira mais demorada, sempre explorando a tensão entre a realidade e a aparência. É dessa maneira que conseguimos perceber as fraturas e os intervalos necessários ao olhar e à interpretação.

O desafio de desarmar o olhar e fazer trabalhar o imaginário diante da imagem visual me fez lembrar o mais recente livro de Felipe Charbel, Saia da frente do meu sol. A obra é uma investigação sobre a história de vida de seu tio “esquisitão” e doente, Ricardo, que morou de favor no quartinho dos fundos do apartamento de sua família durante cinco anos. O autor lança mão de documentos, fotografias (de seu tio encontradas no armário de sua avó) e uma dose de ficção para tecer conjecturas sobre sua vida anterior ao passo em que escreve sobre si e sobre o “fracasso” que é narrar o outro.

A cada encontro com o acervo de fotos de Ricardo, o narrador indaga: O que vejo na foto quando olho para ela? ou, ainda, O que me interessa nessas fotos?. É a partir desse gesto conversacional que ele busca interagir com a imagem, nivelando-se a ela, a fim de observar o que a superfície apresenta (as pessoas retratadas na cena e como elas se relacionam entre si, suas poses e vestimentas, o ângulo e o ambiente em que se encontram) para especular e construir uma versão sobre quem seu tio pode ter sido. Um aspecto interessante é que o autor parece compreender que não é possível capturar completamente o que é expresso, pois diversos sentidos escapam ao espectador, consentindo, assim, com a ficção constitutiva da fotografia. E, nesse jogo de incertezas, as fotos presentes na obra ampliam ainda mais a obscuridade em torno de Ricardo e de sua vida enigmática.

Assim como os autores, eu gostaria de prezar a ambiguidade como uma propriedade da imagem fotográfica, interpelar o que vejo, mas também fabular junto com elas e a partir delas, no decorrer da minha pesquisa que proponho a ser desenvolvida no mestrado, em que almejo estudar a relação (e tensão) entre foto e narrativa nas obras L’usage de la photo e Os anos, de Annie Ernaux.

Um projeto e um olhar sobre Annie Ernaux e sua escrita “foto-sociobiográfica”

Samara Lima

Créditos da imagem: Sophie Calle. Foto: Jean-Baptiste Mondino

Em agosto deste ano, submeti o relatório final da minha última pesquisa no âmbito da iniciação científica, cujo título era “A literatura fora de si e a expansão dos campos das práticas artísticas contemporâneas”. Um dos investimentos teóricos da pesquisa consistia em refletir sobre a expansão das artes para estudar como a literatura está cada vez mais infiltrando-se em outros campos, inserindo em meio ao texto elementos “estranhos”, tornando possível identificar o que poderíamos chamar de uma “saída da literatura”. Para isso, selecionei a obra Os amantes, de Amitava Kumar, na tentativa de analisar como as fotos documentais estão presentes no enredo (auto)ficcional. Em outras palavras: se ainda estão inseridas no discurso da documentação ou se transcendem a noção da foto como ferramenta de confirmação do relato.

Desde então, tenho pensado em realizar uma pós-graduação no programa de Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia a fim de expandir minhas reflexões sobre a relação entre narrativa e imagem fotográfica nas produções do presente, em especial, nas obras L’usage de la photo (O uso da fotografia), co-escrito com o fotógrafo e ex-companheiro da autora Marc Marie, e Os anos da ganhadora do Nobel de Literatura em 2022, Annie Ernaux.

Em Depois da fotografia: uma literatura fora de si, Natalia Brizuela busca pensar o cruzamento entre a prática literária e as outras artes, como a imagem fotográfica. A autora aponta para o esfacelamento das fronteiras entre as diferentes linguagens e como os limites entre elas estão cada vez mais porosos, caracterizando-se como “um espaço e momento sempre de contágio”. A partir de análise de obras de autores latino-americanos como, por exemplo, Mario Bellatin, Nuno Ramos e Juan Rulfo, a crítica argentina analisa “alguns deslocamentos e metamorfoses nessa atividade da arte que chamamos literatura” e como a fotografia aparece em meio à escrita.

Segundo a autora, o cruzamento entre as linguagens pode acontecer por meio da inclusão de fotos em obras literárias ou como paradigma de uma nova sintaxe e de uma nova literatura utilizando certas características do dispositivo fotográfico – como a indexicalidade, o corte, o ponto de vista, o pôr em cena, a dupla temporalidade (passado-presente/o que foi – o agora), o caráter documental, sua função mnemônica, o ser uma mensagem sem código.

Em L’usage de la photo, um projeto íntimo do casal que consistia em fotografar objetos e escrever depois de fazer amor, as diversas imagens da vida cotidiana são reproduzidas em meio à narrativa e parecem manter um diálogo com o texto. Já em Os anos, tendo como norte fotos e memórias deixadas por acontecimentos, a autora evoca o período pós-guerra até os anos 2000, na tentativa de reconstruir os valores e contradições de sua vida, de sua família e de sua sociedade. Aí, o enredo, a sintaxe e a forma parecem guiar-se pelas fotos, ainda que nenhuma imagem esteja materialmente no livro.

É pensando nessas questões que eu gostaria de estudar a relação entre foto e texto na produção de Annie Ernaux. Mas também em como o uso da imagem visual como suporte ou ponto de ancoragem da história parece corresponder ao desenvolvimento de um projeto estético bastante singular por parte da autora, o qual se baseia na recusa da ficção e na tentativa de desenvolver uma “autosociobiografia”.

Quando a arte encontra a vida

Samara Lima

Créditos da imagem: Nan one month after being battered, 1984.

Mario Perniola é um importante filósofo e crítico de arte. Em A arte expandida, o autor resgata teóricos como Rosalind Krauss e seu conceito de campo ampliado nas artes para observar como os limites das práticas artísticas na última década vão se tornando cada vez mais elásticos: “A bolha especulativa do que chamávamos de “mundo da arte”, e que surgiu no final dos anos 50 do século XX, estourou finalmente”.

De acordo com Perniola, existem dois momentos que marcam a história da produção artística no século XX. O primeiro está relacionado ao processo de democratização da arte impulsionado pelas ações da Saatchi Gallery, a famosa galeria de arte londrina. Já o segundo momento diz respeito à Bienal de Veneza de 2013, organizada por Massimiliano Gioni. Segundo Perniola, a Bienal é determinante para o que o autor chama de giro “fringe”, ou seja, uma guinada do interesse dos artistas na produção de obras que operavam “fora” da arte. O autor comenta como o evento estabeleceu um novo paradigma, modificando as definições de “arte” e “artista” e expandindo os limites que definiam o que era tido como arte.

Uma das questões privilegiadas pelo autor “tem a ver com a relação arte-vida”. A primeira consideração de Perniola é notar como a Bienal de Veneza concedeu abertura a tantas produções do presente em que a prática estética estava “totalmente identificada com a vida do artista”, podendo inclusive prescindir da obra. No entanto, no decorrer do texto, essa exploração da primeira pessoa na estética contemporânea parece ser vista pelo italiano como um reflexo do circuito midiático (e mercadológico) em que os artistas estão inseridos. É bem verdade que cada vez mais estamos diante de uma revalorização da figura do criador e do espaço autobiográfico. Porém, será que não poderíamos apostar em uma presença do “eu” que supera o mero espetáculo vulgar e que a circulação da primeira pessoa também pode evocar uma coletividade?

No meu post anterior, comentei que Nan Goldin é uma das fotógrafas que compõem o meu corpus investigativo. Boa parte de sua produção tem a ver com registros de sua própria vida e de seus amigos em um ambiente underground. Embora as motivações de seus trabalhos sejam pessoais e movidas por afetos, as situações retratadas são geralmente cruéis e comoventes.  A foto colorida que abre este post é um autorretrato da fotógrafa e a exibe olhando diretamente para a câmera. O sangue intenso no branco do seu olho parece refletir o tom do seu batom. Em contraposição aos danos físicos, ela exibe um olhar desafiador, um cabelo arrumado e está bem vestida. Essa fotografia marca o fim de um longo relacionamento abusivo. A presença da artista na imagem fotográfica não parece evidenciar um excesso de subjetividade ou um exercício de narcisismo e vaidade, mas os contornos dos piores momentos de sua vida e talvez de outras mulheres durante a década de 80.

Outro ponto é que muitas fotografias de Goldin (principal modelo de suas fotos) podem se expandir para outros temas e pessoas retratadas, adquirindo um caráter metonímico e expondo, dentre tantas outras coisas, a vulnerabilidade e a violência sofridas por mulheres em relações igualmente abusivas. Dessa forma, mais do que concordar ou discordar de Perniola considerando sua crítica à espetacularização do sujeito, é interessante refletir sobre como a presença do “eu” na contemporaneidade pode ser vista não só como uma mudança dos modos de funcionamento do campo artístico, mas também como uma forma de compartilhamento de experiências pessoais em um contexto coletivo e político mais amplo.

Por uma fotografia expandida

Samara Lima

Créditos da imagem: Self-Portrait in Blue Bathroom, London, Nan Goldin

Em “A fotografia expandida no contexto da arte contemporânea: uma análise da obra Experiência de Cinema de Rosângela Rennó”, Patricia Alessandri, pensando as práticas fotográficas contemporâneas, afirma que “a fotografia expandiu seus limites, passando de registro fiel da realidade para a percepção de novos tempos e espaços, estabelecendo diálogo e incorporando em seu fazer outras manifestações artísticas”.

Tendo em vista esse contexto de esgarçamento das fronteiras entre as diferentes formas de expressão, a autora traz o conceito “fotografia expandida”. No início do texto, Alessandri comenta que essa denominação tem como base teórica a noção de expansão da linguagem formulada por Gene Youngblood, no livro Expanded Cinema (onde ele reflete sobre as “novas manifestações do cinema” em comparação com o que era produzido até então) e o estudo do artista Andréas Müller-Pohle, em seu texto Information Strategies, (em que ele busca compreender a prática fotográfica que está cada vez mais comprometida com os procedimentos de produção, circulação e manipulação da imagem).

Se a modernidade discutiu o estatuto artístico da fotografia, muitas vezes compreendida apenas como documento, a produção contemporânea vem aprofundando a exploração das possibilidades inventivas dela. O que o termo “fotografia expandida” almeja evidenciar, então, é uma nova forma de conceber a imagem. Essa possibilidade de invenção pode se dar por meio de intervenções nos diferentes estágios de produção da imagem como, por exemplo, o uso de filtros e a própria auto-encenação do fotógrafo. Mas também por meio do questionamento da crença no caráter autêntico da fotografia para aproximá-la do mundo da ficção. 

Foi pensando no hibridismo entre os diferentes meios artísticos e na ampliação de sua área de atuação como linguagem e representação que, há cerca de um ano, iniciei um projeto de iniciação científica intitulado “A literatura fora de si e o estatuto da imagem fotográfica na narrativa contemporânea”. Aí, eu estava interessada em investigar uma possível “saída da literatura” ao incorporar elementos não-ficcionais como, por exemplo, a fotografia, mas também uma “saída” da imagem fotográfica que, sendo considerada durante muito tempo um documento, cada vez imbrica-se com o texto literário.  Dessa forma, busquei explorar de que maneira as imagens aparecem nas narrativas do meu corpus ficcional e quais funções elas desempenham junto ao texto. 

O fato é que a pesquisa apontou uma pluralidade de modos de relação entre as narrativas e imagens fotográficas, o que colabora com o meu desejo de continuar a investigação em outro plano de iniciação científica. Agora, além de investigar a prática literária que desliza na direção de uma relação imbricada com a imagem, explorando a discussão teórica sobre a expansão dos limites das artes na contemporaneidade (em especial da fotografia), o meu plano de pesquisa quer discutir o próprio regime narrativo de muitas imagens hoje, principalmente nos trabalhos de Nan Goldin e Francesca Woodman.

Fotografias e narrativas

Samara Lima

Créditos da imagem: “As fantasias eletivas” de Carlos Henrique Schroeder

Como já comentei, minha pesquisa de iniciação científica busca investigar a presença de imagens fotográficas nas produções literárias contemporâneas. Durante minha investigação, percebi que seja abrigando múltiplas significações, embaralhando as noções de ficção e verdade, ou ainda sendo tratadas como mero registro documental, a presença de imagens em meio a narrativas ficcionais não deixa de nos causar certa perturbação, por mais comum que esse procedimento esteja se tornando.

Hoje, gostaria de comentar As fantasias eletivas, um romance escrito por Carlos Henrique Schroeder e publicado no ano de 2018. Aí, acompanhamos a história de Renê, um recepcionista de hotel incomodado com as visitas de Copi, uma travesti argentina. O personagem é uma espécie de homenagem ao famoso escritor argentino Raul Damonte Botana, mais conhecido como Copi, que faleceu em decorrência de complicações relacionadas à AIDS. 

A relação entre os dois personagens começa com uma briga e se consolida em uma inesperada amizade. Da mesma forma que Renê, pouco a pouco, o leitor vai desvendando a trajetória de Copi: o gosto pela leitura, sua tristeza interior, o curso de jornalismo em Buenos Aires, as tentativas de seguir o caminho da escrita e sua paixão pela fotografia. 

Em um dado momento da narrativa, acompanhamos as reflexões de Copi sobre a fotografia, sobre a relação das imagens com a literatura. Copi revela a Renê uma sequência de fotos, acompanhadas de “pequenos textos”. As fotos, reproduzidas no livro, mostram objetos simples: um relógio, um espelho, uma placa de trânsito, tiradas com uma Polaroid. Essas imagens retratam o ordinário do cotidiano e a solidão dos objetos, mas também a própria solidão e condição de outsider de Copi. Mas que relação pode haver entre a reprodução das fotos e o universo ficcional elaborado pelo romance?

Para Copi, as fotografias são instantes capturados da realidade e funcionam como “uma espécie de segunda memória.” É curioso notar que essa percepção é facilmente comparada com o comentário de Joan Fontcuberta, em A caixa de Pandora, acerca da fotografia analógica. Entre tantas outras coisas, o autor comenta que, durante muito tempo, “a fotografia esteve tautologicamente ligada à memória”, preenchendo arquivos, coleções, álbuns familiares, a fim de servir como documento e autenticação da experiência.

É bem verdade que a visão da fotografia como atestação da existência de uma realidade está cada vez mais sendo contestada na contemporaneidade, mas é esse pensamento que parece impregnar não apenas as reflexões que Copi faz sobre a fotografia, mas também o modo de funcionamento das imagens junto à narrativa de Schroeder. 

A imagem que abre este post faz parte da série de fotos tiradas por Copi e me parece um exemplo emblemático para pensar a relação entre texto e imagem neste romance. A foto é acompanhada por este texto: 

Os telefones públicos, os populares orelhões, amargam a exclusão completa, imposta pela popularização dos celulares. Pesquisas indicam que 78% dos orelhões consomem entorpecentes. Eles tornam-se um grave problema social, pois é provável que mais da metade deles caia na indigência. Em todos os cantos do país é possível vê-los, sempre sozinhos, cabisbaixos e tristes, à espera de um milagre.

O caráter documental da imagem fica mais evidente quando a personagem afirma mais à frente que seus textos “são baseados em fotografias”. O fato é que as imagens tiradas de sua Polaroid não parecem atuar como potências imaginativas, mas sim como meros artifícios para “entender um pouco mais os processos literários” nos quais Copi diz estar interessado. 

O texto dá vida ao orelhão, conferindo a ele tristeza e abandono em função da massificação dos celulares. Entretanto, quando questionamos o efeito da presença da foto em meio à narrativa, é evidente que a imagem não parece instaurar dúvidas, expor as contradições da representação ou oferecer formas de expansão do texto, já que opera por reduplicação: observamos a imagem de um orelhão e em seguida lemos uma menção direta ao telefone público. Aqui, é o texto que “amplia” e acondiciona a imagem (documental) à narrativa, pois o texto emoldura a foto destacando a “solidão e o abandono” do orelhão, que por sua vez funciona como metáfora da condição de Copi, tal como retratado pela narrativa.

Sobre a fotografia transversa

Samara Lima

Créditos da imagem: Duane Michals, The spirit leaves the body, 1968

Em seu livro Fotografia & Poesia (afinidades eletivas) (2017), o crítico e poeta Adolfo Montejo Navas, dentre tantas outras coisas, comenta que cada vez mais a fotografia contemporânea vem assumindo uma nova relação com o real, cujo foco encontra-se em articular um maior espaço para o imaginário em detrimento do estatuto de verdade. Pensando nessa nova maneira de entender a imagem visual, Navas traz um conceito bastante interessante: fotografia transversa.

O conceito está pautado na ideia de que as imagens do presente buscam romper com os limites impostos que predominam em boa parte da teoria da fotografia. Já comentei que a imagem fotográfica, desde o seu surgimento, foi compreeendida como captura da realidade, servindo ao uso documental, à informação e à memória e valorizada por seu status de autenticidade.

Nesse contexto contemporâneo de dissolução das fronteiras entre as diferentes linguagens, em que cada vez mais as artes tensionam a especificidade de seu meio, seria interessante pensar em um deslocamento da fotografia para fora de um certo modo de compreensão de seu funcionamento. Segundo Navas, a fotografia transversa é pensada a partir de um trânsito entre o que está dentro e fora da imagem fotográfica e procura formas de hibridização artística em favor de uma visualidade mais viva, mais contaminada. A aposta do crítico sugere que as imagens do presente distanciam-se da esfera representacional, a fim de apostar em outras intenções estéticas e contextualizações que proporcionem outras funções simbólicas.

No decorrer do livro, o autor se debruça sobre fotografias que nomeia como plásticas, aquelas construídas não só a partir da exploração de truques técnicos que visam tornar a foto difusa, mas principalmente por meio de intervenções de outras práticas artísticas, como a pintura. Ainda que as imagens fotográficas reproduzidas no meu corpus ficcional não sofram tais intervenções, acredito que a reflexão proposta pelo autor possibilita diversas maneiras de lidar com a maioria das imagens presentes nas obras ficcionais contemporâneas.

Como vimos nos posts anteriores, as fotos de infância de Isabela Figueiredo e da cidade de Lourenço Marques buscam jogar com a ideia da imagem como prova e superar a mera confirmação do pacto autobiográfico. O fato é que elas são utilizadas como artifício de uma prática ficcional. Gostaríamos de apostar, então, que a transversalidade da foto está na relação e tensão que ela mantém com o texto literário ou com o próprio lugar em que se insere em meio à narrativa. Ao embaralhar as noções de ficção e realidade e não compactuar com o dizível, a fotografia questiona seu caráter de registro indiscutível e permite significações múltiplas, abrigando experiências que, muitas vezes, estão além da própria imagem.

“sou ‘eu’ que não coincido jamais com minha imagem”

Samara Lima

Créditos da imagem: “Caderno de memórias coloniais” de Isabela Figueiredo

No meu post anterior, comentei que Cadernos de memórias coloniais é escrito em primeira pessoa e tem cunho memorialista. Na obra, somos apresentados à trajetória de infância da narradora-personagem em Moçambique. As recordações mesclam-se com comentários das contingências históricas e sociais. Da mesma forma, o livro se debruça sobre a construção da identidade de Figueiredo, a partir do contato (problemático) com a família, com seu grupo social e a diferença, com os seus questionamentos internos e com o próprio território africano. Ainda que tenha crescido em um ambiente que considerava o negro como um sujeito “abaixo de tudo”, é a partir da relação com o Outro que a narradora busca formar a sua identidade. É certo que é uma identidade maleável, ora construída em oposição ao pai e aos seus pares, ora pela convivência com práticas e discursos racistas. Na narrativa, os discursos são diferenciados a partir da distinção entre “preto” (quando o posicionamento é semelhante ao do pai etc) e “negro” quando a narradora assume seu ponto de vista crítico.

O que a questão da identidade tem a ver com a série de fotos que nos apresentam à Figueiredo criança? Na imagem acima, podemos visualizar a narradora, criança, bem vestida, em um momento de lazer, em algum parque de diversão, olhando fixamente para a câmera. Do mesmo modo, a foto nos impele a observar o menino ao fundo, com uma perna apoiada na outra, atrás das grades, também mirando a objetiva. Nos deparamos com essa foto, que ocupa o centro de uma página inteira, depois de lermos este trecho:

“Quem, numa manhã qualquer, olhou sem filtro, sem defesa ou ataque, os olhos dos negros, enquanto furavam as paredes cruas dos prédios dos brancos, não esquece esse silêncio, esse frio fervente de ódio e miséria suja, dependência e submissão, sobrevivência e conspurcação.

Não havia olhos inocentes.”

Curiosamente, é o olhar da menina que contrasta com o olhar do garoto. Diante da imagem, nos perguntarmos se são realmente “os olhos dos negros” que aparentam olhar sem filtro e furar as paredes. Afinal de contas, é o olhar de Figueiredo com um misto de desprezo e ódio que parece escapar à página, inquietando o leitor e contradizendo o relato. É interessante perceber como o olhar infantil (que contradiz o trecho que lemos) da narradora na foto e o discurso (adulto) do relato embaralham-se. Em entrevista à Rita Veleda Oliveira, a autora afirma que “o caderno é uma narrativa dúplice. Há uma criança que se exprime, mas também há uma mulher adulta: são duas pessoas.”

Nesse jogo de olhares, é como se o olhar maduro da narradora e, em última instância, o olhar da autora, buscasse em retrospectiva compreender as imagens da sua infância: quem é esse “eu” anterior? É Figueiredo, “filha do branco”, que não se separa das condutas racistas do colonizador? Ou a “negrinha loira” que questiona as regras e a partir da negação da figura do pai busca uma socialização com o negro? Ou, ainda, as duas coisas, já que “não havia olhos inocentes”? Dessa forma, poderíamos pensar que a imagem não parece atuar como uma mera confirmação do pacto autobiográfico (entre narrador, personagem e autor), mas sim como um duplo que evidencia “um corpo infantil que é e não é do autor” abrindo-se, assim, à distância entre o sujeito da narração e sujeito da experiência, permitindo, então, um ensaio crítico e distanciado sobre questões de sua própria vida.

“A fotografia é um instrumento perfeito para duvidar”

Samara Lima

Créditos da imagem: “Caderno de memórias coloniais” de Isabela Figueiredo

Em outro post, comentei sobre como a fotografia, desde o seu surgimento, esteve atrelada ao uso documental devido à pretensa ideia de que tal reprodução constituía uma representação objetiva e fidedigna da realidade. Por outro lado, também assinalei que cada vez mais a prática fotográfica e a teoria da fotografia, através de diversos usos e experiências conceituais, vêm almejando outras relações e significações para a imagem.

Nesse sentido, talvez seja interessante resgatar a discussão de Adolfo Montejo Navas, em seu livro Fotografia e poesia (afinidades eletivas). Aí, o autor reflete sobre como as fotografias contemporâneas saltam “a cerca do seu território” e se abrem para “outros meios, contextos, e outro discurso além do meramente fotográfico”. É pensando nessa questão que ele propõe a noção de fotografia transversa. O conceito está baseado na ideia de que as imagens atuais transitam por vias que não são as mesmas que predominam em boa parte da teoria sobre a fotografia. Durante muito tempo, uma foto foi tomada como mero registro, mas, segundo Navas é possível que, explorada junto dos textos, as fotos possam “abrigar experiências perceptivas que podem estar além da planaridade”.

A presença da fotografia nas narrativas não é novidade, mas é certo que ela não aparecia com tanta frequência, devido ao alto custo de impressão e também pela predominância da concepção de que a literatura era um objeto autônomo, separado das outras esferas artísticas. É importante ressaltar que nesses casos a imagem ainda estava presa ao seu caráter documental, tendo os seus significados guiados pelo texto e servindo como mero acessório. A grande diferença da presença de imagens nas produções contemporâneas é que a foto é vista como uma possibilidade de expansão do relato. Considerando essas provocações, gostaria de comentar brevemente umas das fotografias presentes no livro Cadernos de memórias coloniais de Isabela Figueiredo e seu modo de relação com o que é narrado.

A narrativa é escrita em primeira pessoa e abarca as memórias de infância da narradora-personagem-autora Isabela Figueiredo, durante o período de colonização e descolonização portuguesa em Moçambique. Aqui, o corpo da personagem e o seu relato se entrelaçam com a própria experiência do país. Por isso, entre as nove fotografias presentes na edição brasileira do romance, é interessante perceber que a foto que abre o texto é justamente o plano da cidade de Lourenço Marques, cidade natal de Figueiredo. À primeira vista, a imagem nos leva a pensar que ela atua segundo uma mera necessidade documental, de uma atestação da existência de uma realidade. Mas, no decorrer da narrativa, nos deparamos com uma tensão constante entre o que é tido como documento e o relato que reconstrói a memória.

Se prestarmos bastante atenção na imagem da cidade, que introduz este post, é possível perceber uma propaganda na lateral de um dos prédios: “Beba Fanta”. Essa propaganda que facilmente passaria despercebida me chamou atenção e já digo o porquê. Em outro momento do livro, a narradora comenta sobre um passeio na companhia do pai “a caminho de Lourenço Marques”. Nesse passeio, repentinamente, a narradora descobre que aprendera a ler e intuitivamente passa a decodificar as propagandas que atravessam o seu caminho: “sem explicação, li alto, e de uma só vez, a publicidade pintada nas laterais dos prédios, ‘Singer, a sua máquina de costura; beba Coca-Cola; pilhas Tudor; com Luz cabe sempre mais um; cerveja 2M, tudo o que a gente quer’.”

A partir do momento em que lemos o relato “Beba Coca”, mas nos deparamos com a propaganda “Beba Fanta” na fotografia, é instigante notar que há um jogo com a ideia da imagem como prova, pois o leitor não encontra evidências entre a descrição e a imagem. Sem pretensão de instaurar-se como documento, a fotografia nos instiga à dúvida. Da mesma forma, os aspectos autobiográficos também são postos sob suspeita, mostrando que é um
livro de memórias “que ficciona para dizer a verdade” e que, principalmente, reconhece que a memória é falha.

O processo de costura da materialidade do relato, que sugere uma relação intrínseca entre texto e imagem, exige um considerável esforço especulativo por parte do leitor. Mas, uma vez que deixamos pra trás a ideia da imagem como mera confirmação para encará-la como “um instrumento perfeito para duvidar”, como afirmou Navas, percebemos que a foto realça e reforça o jogo entre a ficção e realidade.

“O que as imagens realmente querem?”

Samara Lima

Créditos da imagem: Your gaze hits the side of my face, de Barbara Kruger.

Em tempos de tecnologias e mídias sociais, não é raro encontrarmos textos teóricos que discutem a recorrente presença da imagem fotográfica em nosso cotidiano. W. J. Mitchell, em seu texto “O que as imagens realmente querem?”, comenta como os estudos contemporâneos em cultura visual frequentemente apontam como vivemos em uma sociedade do espetáculo e como as imagens vêm se tornando “agentes de dano e manipulação ideológica”. De modo específico, o que me chama atenção é como o autor propõe uma leitura das imagens para além da visão de seu poder social de gerenciar vidas.

Pois bem. Antes de qualquer coisa, o autor traz a questão do desejo. Mitchell aborda de que forma o desejo esteve, por muito tempo, associado ao autor (qual foi o seu desejo ao produzir determinada imagem) e ao consumidor (como a imagem foi recepcionada e alterou as percepções do sujeito em um determinado momento histórico). É pensando nisso que a sua proposta é “deslocar o desejo para as próprias imagens e perguntar o que elas querem”.

Na tentativa de buscar uma resposta, o teórico aposta no gesto conversacional com a fotografia. A sua proposta é interagir com a imagem e nivelar-se a ela, na tentativa de observar o que a superfície apresenta. É certo que esse gesto implica uma “personificação ambígua de objetos inanimados”, que só é possível devido a ascensão dos estudos culturais e da guinada subjetiva aplicada aos grupos sociais minoritários, em que temos perguntas como “O que quer o negro?” levantada por Franz Fanon (1967). Pensando a relação entre a imagem e os grupos marginalizados, Mitchell desloca a pergunta para as imagens que, durante muito tempo, também esteve afastada da ideia de que abarcava vida.

Nesse sentido, assim como os grupos minoritários que, cada vez mais, buscam “articular seu próprio desejo”, o que as imagens querem é poder para serem “consideradas como individualidades complexas ocupando posições de sujeito e identidades múltiplas” e, principalmente, serem escutadas.

Dentre tantas outras imagens, o teórico traz a fotocolagem Your gaze hits the side of my face (O seu olhar atinge a lateral do meu rosto), de Barbara Kruger, que introduz este texto.

É curioso notar que ao mesmo tempo em que estamos diante de uma imagem em que é possível o reconhecimento de um determinado padrão estético clássico, a frase reforça que não conseguimos capturar completamente o que é expresso. Dessa forma, Mitchell acredita que é preciso entrar em contato com outras instâncias da imagem para que consigamos adentrá-las minimamente. É preciso levar em conta que essas instâncias não excluem a “interpretação dos signos”, o que ele pretende alcançar é um “sutil deslocamento”.

Assim, a primeira chave para acessá-la é “consentir com a ficção constitutiva das imagens como ‘seres humanos’”. Ou seja, compreender a imagem como algo que tenha vida própria e que seja agente de uma atividade. O segundo deslocamento é não considerar as imagens como sujeito soberano e nem como algo fadado à condição de “mera imagem”.

Diante do crescente número de ficções contemporâneas que recorrem ao trânsito entre literatura e outras artes, como a fotografia, gostaria de aproveitar a leitura de W. J. Mitchell e interrogar as imagens presentes nas narrativas do meu corpus ficcional a fim de escutar e revelar a potência de seus desejos.