Samara Lima

Em agosto deste ano, submeti o relatório final da minha última pesquisa no âmbito da iniciação científica, cujo título era “A literatura fora de si e a expansão dos campos das práticas artísticas contemporâneas”. Um dos investimentos teóricos da pesquisa consistia em refletir sobre a expansão das artes para estudar como a literatura está cada vez mais infiltrando-se em outros campos, inserindo em meio ao texto elementos “estranhos”, tornando possível identificar o que poderíamos chamar de uma “saída da literatura”. Para isso, selecionei a obra Os amantes, de Amitava Kumar, na tentativa de analisar como as fotos documentais estão presentes no enredo (auto)ficcional. Em outras palavras: se ainda estão inseridas no discurso da documentação ou se transcendem a noção da foto como ferramenta de confirmação do relato.
Desde então, tenho pensado em realizar uma pós-graduação no programa de Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia a fim de expandir minhas reflexões sobre a relação entre narrativa e imagem fotográfica nas produções do presente, em especial, nas obras L’usage de la photo (O uso da fotografia), co-escrito com o fotógrafo e ex-companheiro da autora Marc Marie, e Os anos da ganhadora do Nobel de Literatura em 2022, Annie Ernaux.
Em Depois da fotografia: uma literatura fora de si, Natalia Brizuela busca pensar o cruzamento entre a prática literária e as outras artes, como a imagem fotográfica. A autora aponta para o esfacelamento das fronteiras entre as diferentes linguagens e como os limites entre elas estão cada vez mais porosos, caracterizando-se como “um espaço e momento sempre de contágio”. A partir de análise de obras de autores latino-americanos como, por exemplo, Mario Bellatin, Nuno Ramos e Juan Rulfo, a crítica argentina analisa “alguns deslocamentos e metamorfoses nessa atividade da arte que chamamos literatura” e como a fotografia aparece em meio à escrita.
Segundo a autora, o cruzamento entre as linguagens pode acontecer por meio da inclusão de fotos em obras literárias ou como paradigma de uma nova sintaxe e de uma nova literatura utilizando certas características do dispositivo fotográfico – como a indexicalidade, o corte, o ponto de vista, o pôr em cena, a dupla temporalidade (passado-presente/o que foi – o agora), o caráter documental, sua função mnemônica, o ser uma mensagem sem código.
Em L’usage de la photo, um projeto íntimo do casal que consistia em fotografar objetos e escrever depois de fazer amor, as diversas imagens da vida cotidiana são reproduzidas em meio à narrativa e parecem manter um diálogo com o texto. Já em Os anos, tendo como norte fotos e memórias deixadas por acontecimentos, a autora evoca o período pós-guerra até os anos 2000, na tentativa de reconstruir os valores e contradições de sua vida, de sua família e de sua sociedade. Aí, o enredo, a sintaxe e a forma parecem guiar-se pelas fotos, ainda que nenhuma imagem esteja materialmente no livro.
É pensando nessas questões que eu gostaria de estudar a relação entre foto e texto na produção de Annie Ernaux. Mas também em como o uso da imagem visual como suporte ou ponto de ancoragem da história parece corresponder ao desenvolvimento de um projeto estético bastante singular por parte da autora, o qual se baseia na recusa da ficção e na tentativa de desenvolver uma “autosociobiografia”.