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Escritores à procura de textos

Sérgio Santos

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Crédito da imagem: Alper Dostal, da série “Hot Art Exhibition – Guernica”. https://goo.gl/GJJhqb

O título deste post é inspirado na peça de Luigi Pirandello (1867-1936), Seis personagens à procura de um autor, encenada pela primeira vez na Itália em 1921. A peça conta a história de uma família que invade um ensaio exigindo que seu diretor os coloque em cena, pois não aceitavam que as histórias de suas vidas fossem representadas por meros atores. O que Pirandello buscava era confrontar, de forma metalinguística, vida e arte, realidade e ficção, tensionando o próprio fazer teatral.

Quase cem anos depois, são os autores que estão à procura de textos na internet, nos programas de rádio e em sessões do Congresso Nacional realizando uma apropriação para a literatura.

É assim que o poeta norte-americano Kenneth Goldsmith pensa a literatura hoje. Para ele, a “criação” artística é um gesto de apropriação de textos. Enquanto Pirandello tentava confrontar arte e vida usando do próprio artifício da ficção, artistas “não criativos” buscam confrontar a ideia de originalidade literária sob a justificativa de que o mundo já tem obras demais e que, portanto, cabe aos autores manejar o que já existe. Foi isso o que Goldsmith fez quando transcreveu toda a edição do jornal The New York Times do dia 1º. de setembro de 2000 e o transformou em seu livro não criativo, Day.

Mas será que ainda seria possível chamar essas obras de literárias?

Sessão (2017) de Roy David Frankel consiste na transcrição da sessão da Câmara dos Deputados que afastou a presidente Dilma Rousseff em 16 de abril de 2016. As falas foram colhidas das reproduções taquigráficas disponibilizadas na internet e estão dispostas na obra em um formato que lembra um poema. Vejamos um trecho:

Sem título

A transcrição não traz o nome do deputado que a pronunciou, e há no trecho acima uma forte intervenção de Frankel, “quebrando” a fala e realçando em destaque as palavras “Brasil” e “brasileiros”. Re-apropriada, re-contextualizada, a fala ganha outros significados.

Trânsito (2016) é um pequeno livrinho que consiste em uma experiência não criativa. Tomando por base outra produção de Kenneth Goldsmith, Traffic, na qual aparecem transcritas as 24 horas de boletins de trânsito transmitidos por uma rádio de Nova Iorque, Leonardo Gandolfi e Marília Garcia, apropriam-se do procedimento de Goldsmith para escrever Trânsito. O empreendimento é chamado pelos próprios autores de “dublagem”, pois na versão brasileira, aparecem transcritas de uma rádio da cidade de São Paulo três horas de boletins de trânsito: “16:35 E a Bandeirantes, como é que está? Quarenta minutos para subir a Bandeirantes. Imigrantes é um calvário, é o Clayton quem diz. Valeu, Clayton, muito obrigado, meu querido”.

Ler um texto como esse pode ser uma experiência de leitura entediante. E Goldsmith afirma que não está nem aí para isso. Segundo o autor, as obras não criativas não devem ser lidas, pois justificam sua existência conceitualmente: são obras conceituais para as quais importa muito mais o gesto de apropriação, de re-contextualização, as intervenções feitas sobre outro texto. Aliás, o próprio Goldsmith, em uma de suas falas, diz que “a melhor forma de se lidar com textos desconcertantes não é perguntar o que são, mas o que não são”.

Quem sabe a pergunta pelo avesso, o que não são obras como Trânsito ou Sessão, não nos indica alguma possibilidade de pensar os “frutos estranhos” do presente?

“A internet está destruindo a literatura. E isso é bom”

Por Sérgio Santos

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Fonte da imagem: https://twitter.com/RaminNasibov

Em uma de suas obras, Uncreative writing (“Escrita não–criativa”, 2011), o professor e performer Kenneth Goldsmith vê na internet possibilidades para a expansão da literatura a partir da utilização de toda a linguagem que ela produz, sobretudo a partir do ato de “copiar–e–colar”.  Para ele, toda reprodução feita na rede e fora dela é uma reescrita com potência de nova obra, e é isso que ele chama de escrita não–criativa.

Dentre os exercícios propostos por Goldsmith está a cópia de obras inteiras, baseada na operação de “apropriação” como a transcrição feita por ele de um exemplar inteiro do jornal The New York Times, ou mesmo quando Vanessa Place “copia” processos judiciais em que casos jurídicos peculiares ganham e reivindicam a condição de escrita não criativa. Na opinião do crítico, a apropriação implica em mudança, pois ao alterarmos a fonte ou o tipo de suporte em que a “cópia” se assenta, já mudamos “o enfoque do conteúdo para o contexto”, e isso é o que significa “ser um poeta na era digital”.  A frase que dá título a esse post é de um tuíte recente de Goldsmith e parece indicar que a destruição que a internet propõe à literatura está ligada mais a um renascimento (ou reapresentação) que a seu fim.

Mas, embora copiar e colar esteja tão presente em nosso dia–a–dia, e esteja se transformando também em prática literária, como se apropriar das obras sem levar em conta as regras que controlam os direitos de propriedade? Vejamos uns poucos exemplos de como a literatura tem lidado com essa situação.

Começo lembrando da obra O Aleph engordado (2009), do escritor argentino Pablo Katchadjian. Essa obra, como o nome sugere, engorda o célebre O Aleph de Jorge Luís Borges acrescentando parágrafos ao conto. Muitos encaram o empreendimento como “uma piada menor”, já que em sua obra, Borges utilizou citações apócrifas, histórias falsas, ficções inventadas, reescrita de textos clássicos e toda a sorte de efeitos intertextuais. No entanto, a viúva do bardo argentino, María Kodama, moveu uma ação contra Katchadjian sob a acusação de plágio e violação do texto original, e o autor acabou sendo condenado em primeira instância. Não contente, Kodama recorreu à chamada corte de cassação e só recentemente saiu a decisão final dando a vitória ao autor de O Aleph engordado, após longos e, acredito, custosos anos.

Podemos mencionar ainda o romance Felix culpa (2018, ainda inédito no Brasil) de Jeremy Gavron. Trata-se de uma trama detetivesca a partir de uma colagem de centenas de trechos de obras de cerca de oitenta escritores. Estão lá F. Scott Fitzgerald, Cormac MacCarthy, Raymond Chandler, Italo Calvino e George Orwell. Alguns críticos veem semelhanças entre Felix culpa e The clock, a obra de Christian Marclay com relógios sincronizados em tempo real. Por enquanto, não se sabe de processos judiciais à vista por conta dessa “apropriação”.

Ainda podemos lembrar o nome do artista Tim Youd, que viaja pelos Estados Unidos datilografando (leia–se, “apropriando-se” de) obras de vários escritores em uma máquina Remington portátil. Dentre as “obras” do autor estão Medo e delírio em Las Vegas de Hunter S. Thompson e Adeus às armas de Ernest Hemingway. Para “recriar copiando/datilografando” cada livro, Youd viaja até a cidade onde o escritor viveu.

Em obras como as de Goldsmith, Katchadjian, Gavron e Youd parece não estar em jogo a mera citação de obras e autores para demonstrar a aura de sua origem, mas uma tentativa de incorporar à literatura algo já tão corriqueiro na vida de todos, cujo propósito reside na percepção de que cada cópia seria um novo texto. Resta saber como e se as leis do copyright poderão frear essa expansão da literatura.

Narrativa (em meio) digital

Por Sergio Santos

narrativa em meio digital

Foto: Kitty Biscuits (ou Cat Illuminati)

Fonte da imagem: https://goo.gl/NbdcCZ

Um dos acontecimentos literários do ano passado nos Estados Unidos foi a publicação do conto Cat person, da estudante de literatura norte–americana, até então inédita, Kristen Roupenian. O conto, publicado em dezembro na revista The New Yorker, viralizou nas redes sociais e comunidades foram criadas para discutir os diversos temas abordados. A polêmica gerada o alçou à condição de publicação com maior audiência do ano no site da revista.

Cat person conta a história de Margot, de 20 anos, e Robert, 34, cuja atração sexual é instantânea ao se conhecerem no local de trabalho dela, um cinema de arte. Daí surgiram os diversos temas que fizeram o conto viralizar, como gordofobia (Margot se decepciona ao ver a barriga saliente de Robert) e a sexualidade feminina em época de pós–feminismo (mesmo decepcionada com o aspecto físico de Robert, ela decide ir para a cama com ele).

Mas a relação de Margot e Robert se dá, sobretudo, por mensagens eletrônicas. E é para isso que quero chamar a atenção.

Numa entrevista dada ao jornal The New York Times, Roupenian diz que “não queria que seu conto fosse um tédio ao colocar transcrições de conversas eletrônicas”. Cat person, ao privilegiar em sua narrativa algo que se aproximasse de um texto que pode ser facilmente encontrado no Facebook, ou em qualquer chat, parece trazer para a literatura uma certa peculiaridade quanto à forma como esses diálogos, originados na rede, podem aparecer nas obras de ficção.

O tédio a que Roupenian se refere, talvez parta de uma certa dinâmica pertencente ao meio digital que ainda soaria “estranho” ao texto narrativo literário. A grande questão então é encontrar um modo de representação para o modo de comunicação próprio aos ambientes digitais que envolvem não só a sobreposição e interrupções dos turnos de fala, típicos dos bate–papos na rede, mas também as falhas da internet, como sinal caindo ou bugs, tal como podemos ler em Estação atocha (2015), de Ben Lerner, em que há um diálogo, via chat, em meio a falhas de uma rede de internet cujo sinal é ruim (comentada aqui por Luciene Azevedo). São frases sobrepostas, em delay e com chiados. Tudo parece uma mimese cujo propósito é “aproximar” mais o leitor de um ecossistema muito conhecido seu, a partir de suas particularidades.

Carol Bensimon, ao comentar o texto de Roupenian em seu blog, diz que há perigo quando a literatura passa a acompanhar o que está acontecendo up to date no mundo. Segundo ela, isso faria com que a literatura entregasse sua potência ao “conteúdo”, e não “aos atributos literários do texto”. A autora de Sinuca embaixo d’água afirma que quando o conto de Roupenian se aproxima de um “textão do Facebook”, na verdade, está invocando no leitor o mesmo tipo de recepção dessa rede social – um leitor que toma partido, que discute conteúdos, não formas. Embora soe um tanto conservadora, Bensimon aponta para uma antiga disputa entre forma e conteúdo, que reaparece quando discutimos mudanças na forma da representação literária, que é o que parece estar em jogo na incorporação de alguns recursos próprios ao mundo digital na narrativa de ficção.

Literatura (em meio) digital

Por Sérgio Santos

Fonte da imagem: https://goo.gl/p97jvD

O mundo digital possui uma vasta nomenclatura. São termos que surgem a cada dia, como “gadgets”, “widgets”, “wearables”, “templates” etc., sem falar em nomes de unidades de medidas, como “tera” e “nano”, que fazem com que um leigo consiga entender suas dimensões de grandeza, mas que, cognitivamente, muito provavelmente não conseguirá quantificá–los com precisão.

Quando a arte é feita em meio digital, usa-se o termo genérico “arte digital” para designar a arte produzida naquela linguagem. Quando a literatura é digital faz-se o mesmo. Assim, essa literatura é aquela “nascida no meio digital, um objeto digital de primeira geração criado pelo uso de um computador e (geralmente) lido em uma tela de computador”, segundo a pesquisadora em literatura eletrônica Katherine Hayles. A literatura digital é própria das mídias digitais, pois utiliza ferramentas das novas tecnologias como animações, multimídia, hipertexto,(aqui, um exemplo: http://pontos.wreading-digits.com .

Muitos livros impressos, antes de chegarem às livrarias, passam por um processo de digitalização através do uso de vários mecanismos típicos da Rede, mas Hayles defende que a literatura que não é produzida exclusivamente na e para a Rede deve ser chamada de “literatura digitalizada” ou “literatura em meio digital”.

A bibliografia teórica produzida sobre o tema vem crescendo. Embora seja interessante pensar obras produzidas na e para a rede, também pode ser instigante pensar as obras que apenas circulam na rede, fazendo da internet um suporte de publicação ou circulação da obra e do nome do autor. Será possível que essas obras produzidas “em meio digital”, segundo a nomenclatura de Hayles, podem mostrar transformações motivadas pela presença dos mecanismos próprios à rede em nosso cotidiano?

Há uma longa tradição na teoria literária de se pensar a literatura com relação às demais artes. Seria possível ler a literatura “em meio digital” a partir dos estudos que consideram as obras de arte digital, ou seja, aquelas produzidas na e para a rede?

Um elemento que instiga essa possibilidade diz respeito à participação do leitor na leitura de obras digitais. Dereck de Kerckhove, um pesquisador do tema, afirma que enquanto o livro impresso sai das páginas para dentro do leitor, na literatura digital o leitor faz o caminho inverso, ele “salta” para a tela. Esse novos leitores passam por um processo chamado “e–letramento”, que, como o nome sugere, é um letramento eletrônico que os capacita como usuários das ferramentas necessárias para a navegação pelos hyperlinks, o que altera sua forma de ler a literatura “em meio digital”, defende Kerchkhove.

Assim, percebe-se que as mudanças na produção e na recepção de obras digitais apontam para novas formas de ler a literatura, seja ou não aquela produzida na e para a rede, e talvez, em virtude disso, precisemos de novos pressupostos teóricos para compreendê-la.

Quem é Elena Ferrante?

Por Sérgio Santos

lygia clark

Créditos da imagem: Lygia Clark com a máscara Abismo. Foto Assoc. Cultural o Mundo de Lygia Clark, 1986. 

Retomando o post de Fernanda Vasconcelos sobre a escritora Elena Ferrante, gostaria de lançar ainda alguma luz de candeeiro sobre a questão da identidade da autora de A amiga genial e Dias de abandono. Como quem acompanha um folhetim, ou como quem se interessa pelos caminhos que a figura do escritor pode seguir,  o leitor entra em um jogo dentro e fora do texto.

Fernanda observa muito bem a “exímia capacidade” que a escritora  tem “de construir seus personagens” e também o fato de uma delas se chamar Elena, na “Série Napolitana”. À proporção que foram sendo lançados os livros da escritora no Brasil, vimos que o nome “Elena” aparece também em outro de seus livros, A filha perdida. Ela é a criança que tem sua boneca furtada por Leda, a narradora que assiste ao sofrimento da pequena Lenù com a ausência de seu brinquedo predileto. Elena passa dias e noites chorando em A filha perdida. Elena é estuprada “deliberadamente” e segue a vida, em História do novo sobrenome. Elena é o elo de Leda com aquela família observada de forma tão minuciosa, em A filha perdida. O macrocosmo de Elena são as famílias na Nápoles da série narrativa. Elena é Anita Raja. Não, Elena Ferrante é mais uma “jogada de marketing”. Sim, Elena exerce o direito inalienável de não aparecer etc. et ceteras.

Sabemos que dentro do mundo veloz, as inferências acerca desse jogo ferrante ou serão desveladas ou sobrepujadas por um outro acontecimento de vária ordem. No entanto, a proposta de imbricar de forma tão contundente os espelhos autor/autoria/personagens/pseudônimo/investigação coaduna-se à perspectiva de Vasconcelos de que “Ferrante dá mais uma volta no parafuso da intrincada engrenagem da produção contemporânea e colabora para as discussões sobre a condição do autor no cenário literário contemporâneo”. Discutamos brevemente, pois.

As fusões do caso Ferrante citadas acima (autor/autoria/personagens etc.) seriam muito semelhantes às experimentadas pelo indivíduo contemporâneo no que tange às imbricações quanto ao espaço fronteiriço entre as ficções e as realidades.

Se na série há a forma do Bildungsroman (Bild tem, também, o sentido de imagem) que aposta numa espécie de suspensão da moral em que as maldades, as disputas, as invejas e as cumplicidades das duas amigas malogram o maniqueísmo, a “volta no parafuso” aperta (ou folga)  uma “vertigem de nomes, artifício que embaralha realidade e fantasia” mas que nos permitiria entender “porque as escritoras em questão procuram obstinadamente um ponto onde verdade e mentira possam se encontrar – e, talvez, se apagar mutuamente”, como comenta Eliane Robert Moraes sobre Ferrante, Lenù e Anita Raja.

As histórias de e acerca de Elena Ferrante, a escolha desse  pseudônimo para ser a “autora” da quadrilogia ensejam quase um roman à clef, pois o nome na capa sugere uma identificação entre autor e personagem, mas no entanto, não dispensa a certeza da ficção pactuada entre autor e leitor. Assim, a atribuição de autoria tensiona a recepção da obra, não a pacifica.