João Fonseca

Mulheres empilhadas, Patrícia Melo.
Ed. Leya, 2019
Logo nos primeiros parágrafos do último romance publicado por Patrícia Melo, o leitor acompanha de perto a história, contada em primeira pessoa, de uma advogada paulistana que foi agredida pelo namorado numa confraternização com colegas de trabalho. A partir da leitura da violência ficcionalizada que relata o assassinato de personagens da narrativa, também ficamos conhecendo os nomes e as circunstâncias da morte de outras doze vítimas reais de feminicídio que são lembradas pelo livro de Patrícia Melo.
A narradora conta que, depois de um ano de namoro, seu namorado revela sua face mais cruel, então ela conhece o “verdadeiro Amir”. Assim, o leitor vai acompanhando uma espécie de retrospectiva que começa com uma primeira impressão de um Amir culto e dócil, delicado e divertido: “O início era borbulhante, cheio de gargalhadas”, até o momento em que Amir, durante uma festa de trabalho, bêbado e enciumado, dá um tapa na narradora:
“Só o que consegui fazer, enquanto tentava me defender e me livrar de seus braços, foi dar uma risada. Só isso. E aquele meu sorriso tenso, meio atrofiado, fez com que seus olhos ganhassem um brilho selvagem, como o de certos cães antes do ataque. Paf. Até então, nunca tinha levado um tapa na minha vida. No rosto. – Vadia – me disse ele antes de deixar o banheiro.”
Esse episódio inicial abre muitas perspectivas para a narrativa. Não só a narradora-personagem faz uma espécie de análise sobre seu auto-engano, já que ficamos sabendo que Amir já tinha dados mostras de um machismo que poderia culminar na violência física, mas também porque vamos conhecendo aos poucos o passado da narradora, um antigo trauma familiar, e também sua percepção sobre o que um tapa representa numa sociedade que banaliza o assassinato de mulheres, pois a narradora sabe o roteiro que vai de uma primeira agressão até a morte de muitas mulheres vítimas de violência:
“Bebe e comunica: ‘Vai morrer.’ Mas antes, ele espanca a infeliz. Às vezes, sem beber. Queima a mulher, com cigarro. Estupra a mulher. Arranca uns bifes do corpo dela. Joga a moça escada abaixo, quebra seus braços, suas pernas, sempre avisando. ‘Vai morrer!’ No mercado de trabalho, isso tem nome: aviso prévio. No abate de mulheres, trata-se da fase seguinte a de Amir.”
São essas questões que a levam a se decidir pelo rompimento com Amir e a embarcar em uma viagem a trabalho para o Acre, onde acompanhará durante alguns meses o julgamento dos mais diversos casos de feminicídio acontecidos na região. Durante esse período, a narradora destrincha os julgamentos registrados por ela, explicitando a negligência do estado e da justiça no combate e punição dos crimes de violência contra as mulheres. A narradora aos poucos vai estreitando laços com a promotora de justiça do tribunal, Carla, e a partir disso, abre-se para o leitor um cenário que mostra o desprezo da sociedade em relação às mulheres pretas, pobres e indígenas.
Carla entra na narrativa como a personagem que cativará a simpatia e admiração do leitor assim como da narradora, por representar uma mulher livre e avessa aos padrões impostos pelo machismo, e sobretudo uma mulher muito forte que luta por outras mulheres vulneráveis à violência. Seu cargo como promotora de justiça também funcionará para inserir uma certa carga ‘técnica’ ao romance, explicando ao leitor de forma sutil como o sistema penal brasileiro também atua como uma engrenagem que contribui para a normalização do assassinato de mulheres em larga escala.
Em meio a uma dicção realista e muito violenta, um estilo próprio à autora, surgem também capítulos inteiros nos quais acompanhamos uma espécie de dimensão onírica paralela, já que participando de rituais indígenas e ingerindo uma beberagem alucinógena, no mundo dos sonhos da narradora, espíritos da selva e deusas das crenças indígenas se unem a ela para caçar e matar homens assassinos de mulheres e vingar cada uma das vítimas.
Temos, então, três núcleos textuais –o jornalístico, em que podemos conhecer algo das vítimas reais do feminicídio- a narração realista, que aproxima a história da protagonista a de milhares de mulheres vítimas de violência, e o onírico, no qual as mulheres são vingadas. Estes três núcleos são responsáveis por manter um equilíbrio difícil entre o verdadeiro e o verossímil, pois a autora usa a realidade das estatísticas do Brasil atual para cativar seu leitor e fazer com que ele se sinta na vida real, e logo depois ela o apunhala com o ‘diferente’ que a arte proporciona, chocando o leitor pela forma crua que a violência contra mulheres é mostrada, e imaginando uma solução ficcional que não seja apenas desalento.
A narrativa trabalha sobre mortes e dá ao leitor a sensação do empilhamento, caracterizado pelo descaso e pelas atrocidades cometidas contra as mulheres. Nesse sentido, a falta de nome da narradora é simbólica: sua história é uma mescla das histórias de vítimas reais com a elaboração ficcional da narrativa da protagonista, que apesar de todo o medo e sofrimento, não desiste de reagir e lutar por justiça.