Arquivo do mês: outubro 2021

Um projeto, muitas perguntas

João Matos

Créditos da imagem: Liana Finck, instagram (@lianafinck)

Meu projeto de pesquisa nasce a partir de uma polêmica surgida com as discussões a respeito do conceito de “autoficção”. Aliás, o termo inventado por Doubrovsky para designar a obra literária associada à autobiografia já é polêmico por si só, tendo em vista a imprecisão teórica em torno dele e sua recepção negativa por muitos críticos literários. Apesar disso, não é possível negar a grande circulação do termo no presente e sua importância para a teoria literária.

Nas obras de autoficção, a figura do autor assume um papel central, não apenas pela exploração dos dados autobiográficos, mas também pela postura que alguns autores assumem no campo literário. Notei que muitos autores de romances premiados, como Tiago Ferro com seu livro O Pai da Menina Morta, rejeitam a associação de seus livros ao conceito de autoficção, mas por quê?

 Num primeiro momento, imaginei que poderia ser algum tipo de desinformação ou desconhecimento do termo por parte dos autores. Que inocência minha, não é? Tiago Ferro é jornalista, fundou a revista Peixe-elétrico e foi vencedor do Jabuti com seu primeiro romance. Presumir que um autor tão envolvido com o campo literário desconheça a noção de autoficção é uma hipótese que deve ser descartada porque não me dá abertura para explorar melhor as discussões no contexto em que esses autores e o termo se inserem.

Em entrevista a um canal de youtube, Ferro rejeita a associação de seu livro premiado ao termo de Doubrovsky alegando que sua obra tem um tipo de investimento formal “próprio”. Esse foi o ponto de partida de minha investigação: será que a autoficção implica menor investimento formal? E isso retiraria o valor da obra como literatura, reduzindo o livro a mero falar de si? Se as respostas forem positivas, podem explicar a recepção negativa da crítica literária à autoficção?

Ainda que não tenha as respostas, já sinto a necessidade de demarcar minha posição quanto às alegações de Ferro. Penso que o próprio conceito de autoficção já traz consigo uma espécie de empreendimento formal que decorre do tensionamento dos limites entre o pacto autobiográfico e o romanesco, próprio de todo relato que é considerado autoficcional.

Mas as perguntas não param por aí.  Será que ao aderir e reverenciar a autoficção e sua ambiguidade, a crítica literária não estaria reforçando uma rejeição às narrativas autobiográficas que sempre tensionaram os limites ficcionais? Será que essa resistência não é um mecanismo de conservação de um pacto que já foi quebrado, de um limite que já foi ultrapassado, de uma perspectiva do texto literário que vem se transformando no presente?

Essas questões são ainda muito embrionárias e que não querem defender ou fazer o mero elogio da autoficção. Apesar da minha simpatia pelo termo, o que mais me estimula investigá-lo é a tensão que cria em torno da divisão entre obras maiores e menores e seu potencial para ressignificar o que chamamos de literário.

Os convites da autoficção

Antonio Caetano

Créditos da imagem: “London in puddles”, série fotográfica de Gavin Hammond, presente em: https://www.mirror.co.uk/incoming/gallery/london-puddles-photography-series-gavin-866147

No artigo “El lector ante la autoficción”, as análises da teórica Maria José Alcaraz León partem do pressuposto de que ao leitor da autoficção seria impossível ler uma obra  alternando a perspectiva de leitura entre elementos fictícios e factuais. Para ela, a autoficção não deveria se esgotar na querela entre verdadeiro e falso, mas deve consistir em um convite para o leitor refletir sobre a ficção e a não ficção. E esse convite pode ser feito de formas muito distintas.

Ao nos depararmos com a diversidade de textos autoficcionais presentes na literatura contemporânea, talvez seja recomendável não cair na armadilha de começar a análise desses textos considerando as evidências empíricas, que dizem respeito à vida do autor, em jogo na obra. Talvez seja possível entender que a autoficção também convida o leitor para um encontro com a representação.

Mas como se daria a leitura de um texto autoficcional?  Se o jogo entre ficção e não ficção são elementos constitutivos do convite à leitura feito pelo texto autoficcional, rejeitá-lo significa perder uma boa parte do que está em jogo. Mas isso não significa priorizar a caça aos dados factuais explorados no texto, pois mesmo que o escrutínio do texto ou a leitura análitica dele abra mão desse procedimento, isso não significa ignorar ou menosprezar a costura da ficção com o não ficcional, rejeitando-a como uma característica fundadora da ambiguidade da narrativa ficcional.

O que me interessa no argumento desenvolvido por Maria León é que a crítica sugere que a dubiedade entre as identidades do autor e do narrador não precisa ser encarada como se a ficção e a não ficção se alternassem seguidamente durante a narrativa, levando o leitor a decidir a todo o momento se o que está lendo é ficção ou não. O mais importante é que a própria instabilidade é uma condição do texto reconhecido como autoficcional.

Essa reflexão me interessa para pensar a narrativa sob a qual me debruço para produzir minha dissertação de mestrado. Tiago Ferro publica seu primeiro romance, O pai da menina morta, que teve como motivação de escrita a morte de sua filha. O narrador, que é também escritor, perdeu uma filha sob as mesmas circunstâncias relatadas por Ferro em um artigo publicado para a revista Piauí. Tal similaridade une indiscutivelmente esses dois sujeitos.

Nesse romance, que identifico como uma obra autoficcional (diferentemente do próprio Tiago Ferro), acredito que o tipo de convite realizado no texto está intimamente relacionado com o luto e o trabalho de luto experimentados pelo narrador devido à morte da filha. No entanto, me interessa menos identificar e comprovar o que aconteceu ou não, quais os elementos “baseados” na vida e na experiência traumática vivida por Ferro, do que entender a escrita como uma forma de representação dessa experiência, que é pessoal, sem dúvida, mas é também matéria para a ficção, pois, na minha leitura, o luto é o elemento chave da ponte que é possível construir entre a ficção e a realidade, aí, nessa narrativa.

Nesse sentido, a autoficção em O pai da menina morta é um convite para a reformulação de uma experiência traumática, não necessariamente presa aos fatos ou a dados empíricos – a morte da filha do autor Tiago Ferro.  Por serem íntimas, as verdades do luto não precisam possuir laços com os fatos, pois se tratam das expressões de um afeto, e será no texto que essa verdade poderá ser mobilizada. Será no texto, nas estratégias exercidas na escrita, nas presenças e ausências, e nos rastros observados no texto que essas relações de união e afastamento se entrelaçarão de forma mais imbricada, complexa, e rica em possibilidades interpretativas.

By heart e a “situação” teatro

Marília Costa

Créditos da imagem: By heart (2013), Tiago Rodrigues, Mostra de Espetáculos

Meu projeto de pesquisa atual tem me levado a conhecer melhor a cena teatral contemporânea e a analisar os mecanismos formais de uma produção dramatúrgica que privilegia as relações da ficção com a vida. Hoje, farei um breve comentário sobre o espetáculo By heart (2013) do dramaturgo, ator, produtor e encenador português Tiago Rodrigues, encenado em 2020 na MiTsp – 7ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo. Na apresentação, há a mobilização da memória, do afeto, da literatura, da resistência em sentido político e do público como recurso cênico.

O título By heart remete à morfologia, “em português, decorar é sinónimo de aprender de cor. E desde que eu comecei a trabalhar como actor, sempre preferi usar o termo “aprender de cor”. “Cor”, forma arcaica da palavra ‘coração’” (RODRIGUES, 2013). E é justamente esse movimento que o ator propõe à plateia ao solicitar que dez voluntários ocupem as cadeiras distribuídas no palco: essas pessoas deverão decorar durante o espetáculo o soneto 30 de Shakespeare.

No decorrer da peça, Tiago Rodrigues comenta sobre a relação com a avó Cândida, com quem compartilhava o amor pela literatura, que agora afetada por um problema de visão precisava escolher um único livro para decorar. Também comenta sobre Nadejda Mandelstam, que para preservar os poemas escritos pelo marido Ossip Mandelstam e censurados pelo regime de Stalin, precisou decorá-los e transmiti-los oralmente às pessoas até que fosse seguro publicá-los novamente.

By heart é um espetáculo bastante celebrado pela crítica especializada e pelo público em geral, tanto pela temática como pelas questões formais, principalmente no campo teatral francês. Em By heart, o modo como os signos teatrais são desenvolvidos possibilita a fluidez dos limites entre o teatro e outras práticas artísticas que almejam uma experiência real como, por exemplo, a arte performática, o que dá origem ao teatro pós-dramático, tal como caracterizado por Hans Thies Lehman: “uma tentativa de conceitualizar a arte no sentido de propor não uma representação, mas uma experiência do real”.

O espectador vai ao teatro para assistir a um espetáculo, ao chegar no local é convidado a subir ao palco e realizar uma performance junto com o ator: decorar, recitar e comer um poema. Nesse sentido, podemos dizer que o público é colocado em uma “situação” teatro, nos termos de Hans-Thies Lehmann, teórico do teatro pós-dramático. Percebemos nesse deslocamento performativo que o público deixa o lugar de testemunha e passa a ocupar o lugar de parceiro participante no teatro que tem o poder de interferir no desfecho da comunicação, o que possibilita um novo estilo de encenação pautado na experiência do real e não apenas na representação.

Ao ser colocado em situação teatral o espectador vivencia um experimento e uma experiência única. Desse modo, o teatro deixa de ser “obra oferecida como produto coisificado para assumir-se como ato e momento de uma comunicação que não só reconheça o caráter momentâneo da “situação” teatro – portanto sua efemeridade tradicionalmente considerada como deficiência em comparação com a obra durável –, mas também o afirme como fator indispensável da prática de uma intensidade comunicativa”, como defende Lehman. Logo, a experiência subjetiva dos próprios participantes que são colocados em “situação” teatral vai além da apreciação, pois o público atua como uma espécie de procedimento que faz o teatro acontecer. Cada apresentação será única levando ao extremo a máxima de que no teatro nenhuma apresentação é igual a outra.