Arquivo do mês: novembro 2022

A guinada documental

Luciene Azevedo

Diego Rivera, Los Murales de la Industria de Detroit (1932-1933)

Como a ficção pode nos ajudar a imaginar futuros possíveis? A pergunta tem me inquietado em especial porque estou interessada em pensar as formas narrativas do presente que vem se caracterizando como o que tem sido chamado de uma guinada documental.

Tal Brasil, qual romance? de Flora Sussekind é o livro que mais agudamente expõe as voltas ao documental como uma característica estruturante da historiografia literária brasileira. Sussekind realça nessa recursividade três momentos importantes: nosso naturalismo do século XIX, o regionalismo modernista e, na década de 70, o surgimento do romance reportagem. A conclusão é ácida. Nesses momentos, a literatura afasta-se da ficção, veta a imaginação e se instala confortavelmente sob a égide de uma representação mimética da realidade, esquecendo o trabalho com a linguagem.

Essa posição entre literatura e documento, ainda que com mais nuances, também é reiterada por Silviano Santiago ao identificar na onda de publicações reconhecidas como romances-reportagem a “desficcionalização do texto literário”. Santiago não quer colocar em jogo o valor dessas obras, como o faz Flora,  mas  reconhece nessa produção “um laço menos afetivo com a literatura” .

O que me interessa observar é que os críticos relacionam o movimento que a literatura faz na direção de uma zona discursiva alheia a seu domínio (o jornalístico, o domínio do fato, o da história para registrar, documentar os abusos da ditadura) com um desleixo em relação ao investimento ficcional. Essa espécie de queixa ou lamento, reapareceu recentemente com o comentário, que também tem algo de alerta, de Lígia Diniz sobre a concessão do Nobel a Annie Ernaux, já que, na sua visão, o prêmio legitima um descaso generalizado com a ficção no presente.

É verdade que muitas obras hoje oferecem ao leitor uma linguagem crua, sem metáforas ou eufemismos, um discurso claro, que não impõe quase nenhum obstáculo à leitura fluida, no qual a fabulação é minimalista (uma espécie de fabulação que não está calcada na criação de personagens, em suas elucubrações interiores ou em suas peripécias), pois o que lemos suporta sem problema ser confrontado com sua situação real (como afirma Kamenszain comentando o livro de Analia Couceyro, El nervio ótico).

O surgimento de nomenclaturas paradoxais com as quais nos deparamos no presente (romance de não ficção, ficções reais, pós-ficção, literatura documental) são uma porta de entrada para uma interrogação sobre as formas peculiares como as ficções se embaraçam com e problematizam a própria ideia do que chamamos de realidade no presente.

Me parece que é um desafio repensar porque voltamos mais uma vez ao documento. Mas a grande questão é: será possível pensar a guinada documental sem reduzi-la a mais um momento de enquadramento positivista do real? Ou seja: a aliança da literatura com o documento no presente pode constituir ainda uma abertura imaginativa em relação ao real?  Como a guinada documental pode  nos ajudar a perceber melhor o modo como as verdades estão em disputa hoje?

“Ele não vale o risco”: a abordagem do relacionamento sorodiscordante no romance Fake, de Felipe Barenco

Ramon Amorim

Créditos da imagem: David Worjnarowicz, Sem título (série homens vendados 1), 1982

O romance Fake (2014), de Felipe Barenco, narra a transição para a vida adulta do personagem Téo e aborda sua entrada na faculdade, a relação com a família e o conturbado namoro com Davi, que se descobre vivendo com HIV pouco depois de os dois se conhecerem. Tendo o Rio de Janeiro como cenário, a narrativa aborda questões acerca do universo de jovens adultos que trafegam por universidades, shopping centers e bairros de classe média da capital fluminense.

Movida pelo interesse em investigar a temática do HIV/aids, uma das chaves de leitura desta narrativa passa pela discussão sobre relacionamentos sorodiscordantes (ou sorodiferentes), tendo em vista que é uma questão central na obra, assim como representa grande parte da hesitação do protagonista e dos seus amigos em relação ao namoro recente, tensionado pelo estado sorológico de Davi. Visto como potencialmente perigosa, a aproximação entre os dois personagens é considerada como um relacionamento de risco para Téo, que possui pouca experiência sexual e tem a sorologia negativa para HIV.

A questão do “relacionamento de risco” atravessa toda a narrativa e sua presença pode ser vista, entre outras formas, nos recorrentes conselhos dos amigos do protagonista sobre o perigo que o namoro representa para a saúde dele. O argumento, quase sempre, é construído sobre a ideia de que manter um relacionamento com alguém HIV positivo se configuraria como uma “prova de amor” e somente funcionaria se houvesse “amor de verdade”. Nesse sentido, a manutenção do namoro significa uma ameaça constante, desnecessária, sobretudo porque “O Davi não vale o risco”, como afirma um personagem.

Por essa ótica, manter um relacionamento com Davi, considerando sua sorologia, exigiria mais esforço e mais amor (o “verdadeiro”) do que em uma relação com outra pessoa, negativa para HIV. Isso leva a pensar em como os sujeitos “posithivos” são construídos socialmente como aqueles não merecedores de afeto. Enquanto isso, o sujeito “negativo” é visto como o que por amar muito consegue, com alguma dose de altruísmo, superar a presença do vírus para manter o vínculo afetivo, ou seja, um ser superior em relação a seus pares, como Téo parece se ver, apesar do seu discurso dizer algo diferente disso.

O problema desse tipo de construção é que ela coloca o sujeito com HIV na qualidade de inferior em relação aos que não convivem com o vírus, o que pode ser lido como uma forma de sorofobia. Essa prática não é exclusiva dos personagens e do narrador do romance de Barenco, ela surge de forma recorrente em diversas narrativas brasileiras. Pode-se dizer que esse tipo de representação é uma constante na literatura nacional, causando surpresa apenas quando não aparece nas produções literárias.

Essa face da sorofobia, que atravessa o romance (sendo produzida inclusive pelo protagonista e seus amigos, entre eles uma jovem médica) e quase toda a produção nacional, aparece de forma mais ou menos articulada a outras. Isso faz pensar em como a representação do HIV/aids ainda recorre aos mesmos mecanismos e construções presentes desde as primeiras narrativas sobre o tema, escritas há quase quatro décadas. O que, talvez, o romance de Felipe Barenco traga de mais original seja o fato de que o personagem com HIV acaba se revelando como o antagonista da obra. Na falta de outras imagens originais, essa seja a que mais acrescenta ao imaginário produzido sobre a temática.

Os meios técnicos e a literatura contemporânea

Luana Rodrigues

Créditos da imagem: “Instagram” – Richard Prince, 2014, Galeria Courtesy Gagosian. Fotografia de Robert McKeever.

Flora Sussekind em Cinematógrafo de letras aborda a relação entre a história literária brasileira e os meios técnicos que passaram a “enformar” a técnica de muitos autores:  “Não se trata mais de investigar apenas como a literatura representa a técnica, mas como, apropriando-se de procedimentos concernentes à fotografia, ao cinema, ao cartaz, transforma-se a própria técnica literária”. Na esteira de Sussekind, Ana Claudia Viegas em “Escritas contemporâneas: literatura, internet e a ‘invenção de si’”, pensando no advento dos computadores e na interação entre literatura e internet, investiga: “quais as marcas deixadas pelo computador na escrita das últimas gerações?” Podemos apostar que a internet, sobretudo as redes sociais neste novo século, implica numa mudança de comportamento, na forma de fazer política, nas maneiras de escrever e ler literatura, da mesma forma que, a partir da década de 50, uma geração inteira teve seu imaginário forjado pela televisão.

Sem que este post tenha a intenção de aprofundar essas transformações, como faz Sussekind ao analisar inúmeras obras surgidas entre o final do século XIX e o começo do século XX, meu interesse principal é pensar a internet como suporte, como vitrine de exposição dos autores e suas obras e como meio de interação com os leitores. Sobre isso, já falei um pouco em minha postagem anterior.

Tendo escolhido Natália Timerman para analisar esse modo de presença dos autores nas redes, é possível afirmar que os leitores de Timerman podem acompanhar o processo de construção do livro que está sendo escrito, um pouco da vida pessoal da autora (ou ao menos o que ela seleciona para exposição), suas relações com outros autores e como vai forjando e fortalecendo afinidades apoiada na própria dinâmica das redes. Mas também me interessa investigar se é possível identificar uma mudança nos procedimentos de escrita, tal como faz Sussekind, analisando, por exemplo, as narrativas de Lima Barreto e sua relação com a linguagem do jornal. Inicialmente, posso afirmar que as redes sociais também migram para a obra da autora e estão no centro da reflexão que propõe sobre o comportamento dos personagens.

Em Copo Vazio, por meio da brevíssima relação entre Mirella e Pedro iniciada no Tinder e finalizada abruptamente por um sumiço, virtual e real de Pedro, podemos observar marcas da fluidez dos relacionamentos contemporâneos, Timerman questiona a percepção de visibilidade total oferecida pela internet e captura o fugidio e o efêmero desse nosso tempo através desses dois personagens que vão sendo construídos a partir do modo como se relacionam com os mecanismos da internet: “Todos os dias, quase todas as horas, Mirela entra na página de Pedro no Facebook atrás de atualizações, de notícias da existência dele. Será que está bem? Será que está vivo?”

Assim, podemos dizer que também a trama é construída com base em uma rotina a que os usuários dessas redes estão sujeitos:  “Entra de novo na página de Pedro no Facebook. Online!, ele está online. Escreve? Melhor não. Já não está mais online. Ainda bem que não escreveu. Da próxima vez, alguns minutos depois, lá está a bolinha verde: diante de alguma tela está Pedro, assim como ela, logo ali. Antes que se pergunte se deve ou não, escreve por mensagem: Pe, tentando muito falar com você. Ele visualiza e não responde”.

Timerman explora as redes sociais como tema de construção da sua obra e expõe comportamentos e efeitos do virtual em nossa subjetividade e em nossos afetos. Me parece, então, que a autora realiza com eficácia a representação da lógica das redes, mas seria possível afirmar que “transforma-se a própria técnica literária”? Essa interrogação também faz parte de minha pesquisa.

Curadoria e literatura

Luciene Azevedo

Créditos da imagem: Monalisa indígena, Denilson Baniwa

Há não muito tempo atrás, Christy Walpole, uma estudiosa canadense interessada no gênero ensaio, chamava a atenção para a proliferação de estudos sobre essa forma de escrita. Na opinião de Walpole, a instabilidade de sua forma, a dificuldade de sua nomeação, a indecidibilidade a respeito de seu lugar (arte ou ciência?) constituem características do ensaio que se ajustam e respondem bem às demandas de nosso tempo. Mas é a tradição que se inaugura com Montaigne, o caráter tateante do pensamento que afasta certezas, que a crítica afirma ser o mais valioso artifício para o enfrentamento de tempos tão dogmáticos, referindo-se em especial ao discurso político americano dos últimos anos.

Assim, como resposta ao que chama de dogmatismo da paisagem política e social, Walpole propõe a “ensaificação de tudo”, que caracteriza como “um convite para manter a elasticidade do pensamento e aceitar a ambivalência inerente ao mundo”.

A proposta de Walpole também pode ser utilizada para pensar a noção de curadoria, já que seu uso tem se tornado cada vez mais difuso. Alguns teóricos têm atribuído esse impulso curatorial à insidiosa presença da internet em nossas vidas, à proliferação de dados e informações a que estamos sujeitos cotidianamente. Daí a importância que a seleção, uma operação básica do curador, tem para o contemporâneo. Uma evidência disso é o modo como os próprios algoritmos assumem o papel de curadores cibernéticos de nossas escolhas e gostos, organizando nossas playlists ou nossos feeds de notícias.

Mas o que significa pensar a curadoria como uma prática literária? E como seria possível pensar o autor no papel de curador e do quê, exatamente?

É evidente que a mais básica operação realizada pelo curador é a seleção, a escolha, o recorte que faz de determinado trabalho de um artista para a montagem de uma exposição. Embora as operações mais evidentes em jogo na curadoria das práticas literárias sejam o gesto de seleção e recontextualização do material com o qual trabalha o autor curador, é possível pensá-la como um procedimento de elaboração narrativa e poética que tem consequências mais amplas e afeta nossa ideia moderna de arte e, por tabela, de literatura, colocando em xeque muitos elementos importantes para as artes e para a literatura hoje: a questão da criatividade, da originalidade autoral, a valorização da obra inacabada, a importância do processo sobre o produto acabado e do leitor para a elaboração do sentido.

Além de pensar no processo curatorial do qual se vale Ana Maria Gonçalves para elaboração de Um defeito de Cor, tal como analisa Lílian Miranda, poderíamos mencionar outras obras publicadas nos últimos anos em que é possível identificar o autor operando como um curador. Lendo Kafkianas, obra póstuma de Elvira Vigna, o que o leitor tem diante de si são contos? Anotações de leitura? Aí, a curadoria revela-se por meio dos procedimentos de seleção, cópia e comentário que sugerem uma conversa com o universo kafkiano, um processo que é ao mesmo tempo um misto de recontagem das narrativas do autor tcheco e um modo de expor a construção do processo de leitura que redimensiona as fronteiras entre o ficcional, o analítico e o comentário autoral de Vigna.

E em Sessão de Roy Frankel? Como opera a curadoria? O “poema” é um “recorte e cole”, uma seleção e montagem feita pelo autor a partir das notas taquigrafadas da sessão da câmara dos deputados que votou o impeachment da presidenta Dilma Roussef em 2016. A obra revela a potencialidade das mínimas intervenções feitas à transcrição dos votos dos deputados durante a sessão. Caracterizados como uma prática curatorial, os cortes (e outros recursos poéticos como a manipulação gráfica das palavras) potencializam sentidos, evidenciam o clima de polarização de opiniões, acentuando a hibridez entre o discurso político e a ficção.

Os cortes estratégicos expandem os sentidos das falas e exploram a ambivalência das posições, evocam tudo o que o discurso não diz explicitamente

E nesta tarde ensolarada, 
neste domingo, 
dia 17 de abril de 2016, 
vamos fazer a história, 
decidir o 
que 
queremos   
para o futuro deste       
                                          País

Em meio à gravidade da situação e das consequências que teve para o país (sentidas ainda hoje sob a presidência do atual mandatário), a declaração, destacada de seu contexto original, ganha ares cômicos, edulcorados, pelo registro da “tarde ensolarada”. Aqui, a mera recontextualização realça a farsa que estava sendo encenada. Mas também chama a atenção o corte estratégico em “decidir o/ que/ queremos” que gera uma ambiguidade só possível de ser lida após a intervenção formal, já que o discurso afirma uma vontade, uma decisão, um querer, mas o corte sugere uma hesitação, uma espécie de gagueira, que sugere todo o intrincado conjunto de elementos em jogo na escolha pela decisão de cassar o mandato da presidenta eleita. O exercício curatorial de Frankel promove intervenções que parecem mínimas, mas cujos efeitos são perturbadores porque revelam toda uma dimensão latente ao histrionismo do momento político.  Essa dissociação entre o dito e o não dito é feita de maneira quase silenciosa, mas produz um efeito poderoso no leitor e põe a descoberto o caráter farsesco do processo.

A apropriação (da narrativa canônica de Kafka, como o faz Vigna, ou do registro dos votos de uma sessão do Congresso Nacional, no caso de Frankel), procedimento básico da lógica curatorial, retoma os sentidos instituídos de cada um desses materiais para escavar, escrutinar novas possibilidades de indagação sobre eles, especulando sobre as opacidades que contêm.