Arquivo da categoria: Livro-objeto

“Meu, é um livro. Meu, é só um livro.”

Capa_Inquérito Policial_Lísias

Por Nivana Silva

Contrariando o título-citação do post e, mais uma vez, levando às últimas consequências a fronteira entre o real e a ficção, além de desordenar qualquer expectativa que o leitor tenha previamente, Ricardo Lísias divulgou no primeiro semestre deste ano seu mais novo empreendimento Inquérito Policial: Família Tobias através do booktrailer disponível no site da editora Lote 42 e em sua página no facebook. Longe de ser só um livro, trata-se de um projeto pós-polêmica Delegado Tobias, ou seja, uma resposta bastante criativa e sagaz aos desdobramentos jurídicos que a série de e-books trouxe para a vida (real) de Lísias.

Para quem não se recorda, após a publicação do quinto livro da série que entrelaçava o assassinato de Ricardo Lísias, a chantagem feita por seu homônimo e a investigação encabeçada pelo agente Paulo Tobias – não esqueçamos também das colagens, documentos e até comentários dos leitores nas redes sociais que compunham a obra – o Ministério Público Federal de São Paulo abriu um inquérito contra o autor, alegando “falsificação de documentos”. O processo foi arquivado e, buscando dar uma continuidade ficcional ao verdadeiro inquérito, o escritor paulistano nos presenteia com mais uma experiência literária inventiva e que coloca sob rasura qualquer tentativa de harmonização entre a suposta verdade e a ficção.

A começar pela própria performance do autor-personagem no booktrailer, ouvimos, de alguma forma, o desabafo do Lísias acusado na vida real “É um texto de ficção […]. Meu, é literatura policial, eu inventei tudo, não é verdade!”. Todavia, ao final do vídeo – embalado por uma trilha sonora próxima a de um crime thriller – nos deparamos, ao que parece, com o protagonista fictício denunciante da Editora Lote 42, que pega do chão o inquérito/livro. Esse, por sua vez, traz pistas, provas, textos jurídicos, a árvore genealógica da família Tobias, em suma, um legítimo dossiê, organizado, inclusive, como uma pasta reunindo documentos de uma investigação. Nesse cenário interessante, contornado por uma linha difusa, as vozes do autor imprimem uma assinatura e levam o leitor a montar a verdadeira história da família Tobias e do processo impetrado por Lísias contra a Lote 42.

Outro ponto de destaque relacionado ao alcance de Inquérito Policial: Família Tobias e às consequências do imbróglio, nada literário, é a peça intitulada “Vou com meu advogado depor sobre o Delegado Tobias”, na qual o autor de um livro é chamado a prestar esclarecimentos por falsificação de documentos, ou, leia-se, Ricardo Lísias é intimado pela justiça para depor a respeito de falaciosos textos jurídicos forjados por ele em uma obra literária (a qual, no processo real, passou despercebida, segundo o próprio afirma). Além do protagonista-autor-personagem-vítima no elenco, atuam também Eduardo Climachauska e Clayton Mariano, sob direção de Alexandre dal Farra e Janaina Leite.

Diante desse livro-objeto (“livro como objeto maleável”, conforme bem colocou Elizângela em seu último post sobre Laura Castro), esbarramos com a engenhosidade transbordante de um escritor de literatura contemporânea que, cada vez mais, firma seu nome próprio no seu campo de atuação e vai nos mostrando como se faz um autor. Parece-me que o mais instigante e desconcertante em Inquérito Policial: Família Tobias é a zona limítrofe onde termina a realidade e começa a ficção, ou onde a cena literária é tão vicejante a ponto de pedir prosseguimento na vida real, ou onde, simplesmente, não sabemos onde termina, tampouco onde começa nada disso. A impressão é que não há lugar de partida, nem zona de parada, afinal de contas, “é só um livro […]. Só na literatura é verdade”. Até que passemos para a próxima página e comece uma nova história.