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Autoficção especular: o autor como personagem

Marília Costa

Créditos da imagem: Las Meninas. Diego Velásquez. 1656.

Nesta semana participei do XIII Seminário de Pesquisa Estudantil em Letras, no qual falei sobre a autoficção especular, um tipo de autoficção criado por Vincent Colonna e discutido em sua tese de doutorado, orientada por Gérard Genette. Em uma postagem anterior, Caroline Conceição comentou sobre as tipologias elaboradas por Colonna, apresentando a autoficção fantástica, biográfica e intrusiva. Hoje, gostaria de comentar a autoficção especular.

A autoficção especular é caracterizada por Colonna como a imagem do autor ou do livro dentro do próprio livro, remetendo à metáfora do espelho. O autor não vai assumir necessariamente o papel de protagonista da narrativa, pode aparecer apenas como uma sombra, um contorno, mas precisa aparecer de alguma forma. Assim, segundo Colonna, “A ficção literária se mostra então não como espaço de ilusão, mas como laboratório onde os mecanismos são desmontados e apresentados aos leitores”.

Para Colonna, a imagem do espelho para caracterizar este tipo de autoficção funciona como metáfora da escrita em ação, oferecendo ao leitor seu modo de constituição técnica e subjetiva. Se traçarmos um paralelo com o mundo das artes visuais, mais especificamente a pintura, temos a mesma postura refletora que funciona a partir do procedimento do “quadro dentro do quadro”, em que o artista representa a si mesmo em algum lugar na tela, na maioria das vezes segurando um pincel como se estivesse pintando o quadro que estamos admirando. Um exemplo repetidamente comentado pela crítica especializada dessa prática pictórica é a obra “Las meninas” (1656) do espanhol Diego Velásquez. No quadro, sob o pretexto de pintar a nobreza espanhola, Velásquez não só se autorrepresenta, como também cria uma operação de reversibilidade ao inserir na tela o reflexo do Rei Filipe e da Rainha Mariana no espelho posicionado no fundo do quadro. Entendemos, então, que os modelos estão fora da representação, mas aparecem especularmente dentro da tela.

Também poderíamos pensar esse movimento em relação à literatura, considerando a categoria de autoficção especular, tal como Colonna a descreve? Vamos pensar no romance Machado de Silviano Santiago. O mote do romance é uma espécie de leitura comentada, refletida, do quinto volume da correspondência de Machado de Assis, que reúne as cartas trocadas por Machado e seus interlocutores durante os quatro últimos anos de sua vida. O narrador personagem Silviano Santiago não apenas comenta episódios famosos envolvendo a vida de Machado, mas também tece comentários críticos sobre seus livros, como Esaú e Jacó e Memorial de Aires. O livro traz fotografias, recortes de jornais, charges, quadros e tem como cenário a cidade do Rio de Janeiro, envolta nas questões políticas e sociais do período.

À medida que o narrador personagem se apropria da correspondência de Machado de Assis, reelaborando-a a partir da sua imaginação, é que ocorre o que o narrador denomina de transfiguração e nós podemos pensar em uma operação especular, na qual Silviano, o autor, que também é personagem e narrador,  apodera-se da vida do Bruxo do Cosme Velho para reconstruí-la, misturando-a com a sua própria vida:

No troca-troca, consolo-me com o pouco que toca a mim, que já é excessivo. Sirvo de contrapeso ao filé-mignon Machado de Assis. As cartas agem como age o açougueiro quando economiza na balança a carne cara de primeira. Substitui um bom pedaço dela por carne de segunda, cheia de nervos. Lucra ele com o contrapeso; lucro eu sendo o contrapeso de Machado de Assis; lucrará algo o freguês?

O protagonista do romance é Machado de Assis, mas Silviano Santiago também aparece na narrativa exibindo-se em “troca-troca”, pois ora é Machado quem ocupa o primeiro plano, ora é o próprio narrador, homônimo do autor, que se projeta na imagem, na vida do grande escritor. Ou como afirma o próprio narrador: na condição de “açougueiro” das Letras, promete uma coisa e entrega outra, está vendendo carne de segunda (suas próprias reflexões que se transformam no “romance” que lemos) como carne de primeira (a vida que transborda das cartas de Machado de Assis).

E os leitores irão lucrar algo com esse projeto literário? O narrador-personagem entrega aí o procedimento que foi utilizado para conceber essa criação artística que é o romance. Silviano Santiago, o autor, que é um elemento do lado de fora da ficção (é o signatário do livro) está espelhado do lado de dentro, provocando um fenômeno de duplicação, um reflexo do livro sobre ele mesmo e a demonstração do ato criativo que o fez nascer.

Um exercício biobibliográfico

Marília Costa

Leonilson- sob o peso dos meus amores 1990

Créditos da imagem: Leonilson – Sob o peso dos meus amores, 1990

Já há alguns posts venho comentando meu objeto de pesquisa, o romance Machado de Silviano Santiago. Hoje gostaria de falar um pouco sobre dois temas que sempre aparecem comentados criticamente quando se trata da narrativa. O caráter autoficcional e a dicção ensaística.

No romance Machado de Silviano Santiago, o narrador se apropria da dicção ensaística e da autoficção como dispositivo para tornar-se outro. Assim, faz de Machado de Assis ao mesmo tempo em que faz de si mesmo personagem de um romance, se auto representa sem compromisso com a verdade protegido pela etiqueta da ficção. “A força da autoficção é que ela não tem mais compromisso algum nem com a autobiografia estrito senso (que ela não promete), nem com a ficção igualmente estrito senso (com que rompe)”, conforme afirma Evando Nascimento.

 Nesse sentido, há o embaralhamento das fronteiras entre o real e o ficcional, o que dificulta a escolha do leitor entre o literal e o literário no momento de classificar a narrativa. O afastamento da verdade factual em paralelo à transgressão ao pacto ficcional é o ponto forte da autoficção, pois essa característica é responsável por fragmentar e desestruturar os gêneros literários, sem necessariamente pertencer a eles. A autoficção “participa sem pertencer nem ao real nem ao imaginário, transitando de um a outro, embaralhando as cartas e confundindo o leitor por meio dessas instâncias da letra.”, lemos novamente Nascimento afirmar.

Mesmo com a recusa de utilizar seu nome próprio na trama, não é possível deixar de reconhecer no narrador traços do autor. E embora sejam nítidas as relações entre vida e obra, podemos pensar que o que está em jogo no romance de Silviano Santiago não é seu caráter biográfico, mas sim a cultura brasileira como um todo. Nesse sentido, não haveria o investimento em uma biografia como mapeamento de uma vida privada (nem a do próprio Santiago, nem a de Machado), mas sim o que poderíamos chamar de uma biobibliografia, ou seja, uma narrativa de vidas tramadas por uma rede bibliográfica, construída a partir de referências da história intelectual do período, da história da cidade, uma vez que a história do Rio de Janeiro foi marcante para Machado de Assis, e, principalmente, pela tentativa de compor uma bibliografia de leituras do próprio Santiago, que leu, anotou e colocou na trama do romance as próprias leituras que fez das obras de Machado de Assis, as leituras de escritores contemporâneos ao autor, percorrendo ainda os indícios da biblioteca deixada por Machado de Assis.

É é aí então que podemos ver tal procedimento assumir a forma do ensaio, da dicção ensaística que passeia e elabora a memória da leitura da vida de Machado, de seu tempo e de sua obra.

O romance e sua preparação

Marília Costa

Em seu último seminário no Collège de France a que chamou de A preparação do romance, Roland Barthes reflete sobre o que seria o meio da vida e qual seria o meio da vida de um escritor. O sociólogo, escritor, crítico literário, semiólogo e filósofo francês, nessa época, com sessenta e três anos, tinha acabado de escrever o diário do luto pelo evento tristíssimo da morte da mãe, nesse mesmo momento, escreveu A câmera clara que tratava da fotografia como objeto de estudo e o primoroso Incidentes, no qual são narradas suas viagens para o Marrocos. Para Barthes, o meio da vida não é um ponto cronológico, o meio da vida é um ponto lógico em que alguma coisa já não é mais igual àquilo que vinha acontecendo antes.

Na palestra Durante muito tempo eu fui dormir cedo, anterior ao seminário preparação do romance e que serviu de base para o curso, Barthes foi convidado a falar sobre a temática do desejo de ser um escritor e acaba falando da sua experiência de leitura de Marcel Proust e de sua obra que durante muito tempo serviram a ele como modelos para o romance que gostaria de escrever.

Quando Proust escreve Em busca do tempo perdido põe em xeque um modo de ler romances, pois a maneira como trata o tempo, a memória e sua própria biografia na obra faz vacilar a classificação do que apresenta aos leitores: tratava-se de ficção, de memórias, de um romance sobre a escrita de um romance? É essa busca por escrever um romance não romance que parece atiçar o desejo de Barthes de escrever seu próprio romance.

Barthes afirma que, embora correndo o risco de parecer arrogante, ao se comparar com Proust, deseja se desvencilhar de um entrave que afinal parece superado por Marcel: escrever um romance. Em A preparação do romance Barthes planeja o curso como uma preparação para escrever um romance, mas ao final do seminário precisa capitular: o romance não foi escrito. Mas as aulas do curso revelam um percurso de preparação para a obra não escrita: visitas à vida dos escritores e suas idiossincrasias (Flaubert escrevia deitado), reflexões sobre a forma (“a obra já não pode ser mais do que aquilo que tenho a dizer a seu respeito”).

Se Barthes não escreveu seu romance, talvez seja possível dizer que muitas obras escritas hoje entregam ao leitor o próprio processo de preparação da obra. O romance Machado de Silviano Santiago é um bom exemplo, já que o autor lança mão dos muitos anos nos quais se debruçou sobre a produção machadiana, como crítico e como professor, para arriscar-se na fronteira da biografia, do ensaio e do romance recorrendo a anotações de estudo, ampla pesquisa em documentos da época, e a hipóteses de leitura sobre as narrativas machadianas que vão constituindo uma narrativa que é ao mesmo tempo preparação e obra pronta, um romance que não se parece muito às formas do gêneros com as quais estamos acostumados.

Machado: a convulsão como forma de resistência

Marília Costa

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Créditos da Imagem:  Stephen Gill, Untitled (Matt), from the series ‘Talking to Ants’, 2009-2012

No romance Machado de Silviano Santiago, publicado em 2016, o narrador-personagem tece a narrativa de modo que a epilepsia de Machado de Assis é a engrenagem que movimenta a escrita. Segundo a voz narrativa, a doença é uma força motriz diretamente relacionada à força artística do grande escritor, que “não se contenta com as meias medidas em arte. Estabelece metas cada vez mais inalcançáveis que restabelecem no homem o estímulo indispensável para que o trabalho artístico seja levado a cabo de modo a não deixar coração insatisfeito entre os futuros espectadores”, lemos no romance. Assim, a doença, que poderia ser entendida como uma maldição, ressalta e define não só a personalidade do escritor, mas é um divisor de águas de todo seu processo criativo.

Carlos Laet, um dos personagens do romance, ao refletir sobre o mal que acomete o fundador da Academia Brasileira de Letras, reforça o mote da doença como uma espécie de metáfora para a criação artística: “A beleza artística é uma forma arrogante e salutar da doença que devasta o ser humano. O corpo enfermo sobre-excede a si pelo objeto que ele modela de modo insano e torna sublime”.

Sílvio Romero foi um dos primeiros leitores de Machado de Assis no século XIX e um dos principais críticos da produção literária do proeminente escritor brasileiro, e por muitos anos dedicou-se a explicar sua repulsa às obras machadianas e a engrandecer a suposta extraordinariedade de Tobias Barreto, valendo-se do biografismo para caracterizar a epilepsia de Machado como uma falha no sistema nervoso que afetava a produção literária do autor, o que, na versão do crítico, justificava o caráter digressivo, as pausas, os capítulos curtos do estilo do bruxo do Cosme Velho, associados por Romero a soluços, espasmos que aludiam às crises convulsivas como sintomas da doença.

Antonio Negri, no livro Os rastros da multidão, traça um panorama sobre os modos de resistência na sociedade pós-moderna e constrói o conceito de monstruosidade – tudo aquilo que é instável, singular, incompreensível, que perturbe a ordem é ameaçador, portanto, monstruoso.

Podemos estabelecer uma relação entre a noção de monstruosidade em Negri e a doença de Machado compreendida como uma resistência. Silviano Santiago chama as crises epiléticas de Machado de “mortes passageiras”, penso que tais episódios abrigam a propensão natural do autor de Dom Casmurro para a desconstrução social e literária que ele empreendia ainda nos últimos anos de vida, devido a insatisfação com o suposto progresso alavancado pelos republicanos no Rio de Janeiro.

Por fim, a qualidade convulsiva revelada pela narrativa talvez seja a maneira que Silviano Santiago escolheu para fazer menção ao modo como Machado de Assis escreveu, indo e voltando, com muitas digressões, mas numa tentativa de se aproximar e também homenagear o mestre, falando dele mesmo, Silviano Santiago, e do modo anômalo como construiu o romance. No romance Machado, Silviano Santiago parece tentar dar uma outra volta ao parafuso da crítica biográfica, reapropriando-se da relação entre vida e obra para reinventá-la.

Pensando assim, talvez seja possível considerar Machado, o livro de Silviano Santiago, como um romance de resistência, resistência do nome de Machado e de sua magnífica obra, da própria crítica e da ficção, pois, ao reelaborar as relações entre vida e obra, Santiago resiste ao tão alardeado fim do romance e compondo uma forma híbrida faz a literatura resistir.

O autor, o crítico, a ficção e o ensaio

Marília Costa

Yoko Ono2c “Sky TV for Hokkaido” (photo de Yoshihiro Hagiwara)

Créditos da Imagem: Yoko Ono – “Sky Tv for Hokkaido” – Yoshihiro Hagiwara

Durante muito tempo, o autor de literatura e o crítico literário assumiram papéis diferentes no campo literário brasileiro. Em linhas gerais, ao autor cabia o papel de tecer a obra e ao crítico a tarefa de comentar, analisar e teorizar sobre as narrativas. Alguns desses indivíduos realizavam as duas atividades em paralelo, porém em espaços distintos. O autor publicava seus textos em livros denominados como romances, contos ou poesias. O crítico transitava pelos jornais, revistas, blogs, livros teóricos, artigos e demais textos acadêmicos. Desse modo, não era muito comum que a ficção e o discurso teórico dividissem o mesmo espaço em uma obra literária.

Na contemporaneidade há indícios de um rompimento das fronteiras que separavam ficção e crítica literária. Eneida Maria de Souza, em seu texto “Notas sobre a crítica biográfica”, salienta que os limites entre as principais áreas de estudo da literatura não estão bem definidos pelas teorias contemporâneas. Desse modo, a literatura deixa de ser objeto de análise e passa a ser também espaço para analisar e teorizar sobre si mesma, “o próprio sujeito teórico se inscreve como ator no discurso e personagem de uma narrativa em construção”, afirma Souza. A crítica biográfica encontra-se delimitada entre a teoria e a ficção, o documental e o literário.

No século XXI deparamo-nos com escritores em cujas obras podemos identificar o hibridismo entre a crítica literária e a ficção, como é o caso de Ricardo Lísias, Cristovão Tezza, Silviano Santiago, entre outros. É possível ainda arriscar que o procedimento crítico no registro literário aparece a partir do uso da dicção ensaística e do recurso autobiográfico e autoficcional.

No romance Machado de Silviano Santiago, publicado em 2016, o narrador se apropria da dicção ensaística para tornar-se outro: “Transfiguro-me. Sou o outro sendo eu. Sou o tomo V da correspondência de Machado de Assis: 1905-1908”. Ao mesmo tempo, podemos notar uma aproximação entre narrador e personagem, principalmente em comentários críticos sobre o campo literário do final do século XIX e início do século XX, que lembram um ensaio, quando por exemplo tematiza-se a forma como Machado de Assis se concebe, se desenvolve, se aprimora e se estabelece como um dos maiores escritores brasileiros.

Em Machado de Santiago podemos perceber uma característica comentada pelo crítico argentino Reinaldo Laddaga em seu livro Estética de Laboratório e também presente em outras obras da literatura contemporânea. Ao resgatar o caminho que o conduziu a escrever o livro, Santiago forja a si mesmo e ao processo de escrita (aí emerge o que identificamos como uma dicção ensaística) aproximando-se do que Laddaga chama de uma “visita ao estúdio” de produção do autor e que torna possível aos leitores “formar uma ideia da pessoa e do pensamento do autor”. Embora saibamos que se trata de mais um artifício, pois, como o próprio Laddaga aponta “um artista se expõe enquanto realiza uma operação em si mesmo. O que mostra não é tanto ‘a vida (ou sua vida) como ela é’, mas uma fase da vida (ou da sua vida) que se desenvolve em condições controladas.” Desse modo, não deixa de ser interessante pensar que a dicção ensaística presente no romance Machado pode ser pensada como um artifício para reinventar a literatura.