Sujeito Oculto: leitura e apropriação

Figura 1

Por Débora Molina

Sujeito Oculto. Cristiane Costa

Ed. Aeroplano, 2014.

Lançado no final de 2014, Sujeito Oculto, livro de estreia de Cristiane Costa na ficção, é produto de roubo. Explico. Boa parte do livro é construído com citações: Clarice Lispector, Machado de Assis, Flaubert, horóscopos de jornais e uma carta comercial de uma seguradora.

Costa desestabiliza o leitor que busca uma conclusão confortável para a trama. Dividido em três capítulos, o livro começa com o relato de Marcelo, que; após detectar cupins na estante de livros de sua mulher, recém-falecida, abre a esmo um exemplar e se recorda da mania compulsiva de Alice, sua esposa, por anotar e marcar, quando percebe que a epigrafe tinha sido destacada. Mas por que a marcação daquele trecho? A pergunta é o mote para a investigação sobre a identidade da mulher:

No chão, vários livros com anotações que eu não queria ler. Nas mãos, um caderno com frases feitas que relutei o máximo que pude em abrir. Temia ver na letra dela o que diziam aqueles olhos tristes, ouvir sua voz me dizer, com palavras roubadas de outros, coisas que nunca teve coragem de me contar. (COSTA, p 14, 2014)

No segundo capítulo, deparamo-nos com uma estranha reviravolta, pois há 25 páginas com palavras tarjadas com tinta preta das quais só resta o título: O amor é sempre inédito.

O choque com a impossibilidade da leitura potencializa-se no terceiro capítulo, pois só então entendemos que Sujeito Oculto é na verdade um livro que fala de um livro, ou seria, um livro dentro de um livro? O terceiro capitulo assume a forma de um ensaio de crítica literária e somos informados pelo novo narrador, o crítico Julio Paz, de que a narrativa que lemos no primeiro capítulo foi escrita por Catarina Guerra, mas seu segundo capítulo havia sido censurado devido a uma acusação de plágio, o que exigiu a retirada da obra de circulação.

A leitura e a cópia, no texto de Cristiane Costa, são assuntos de pauta: lemos os trechos grifados e copiados de livros por Alice (que, na verdade, é personagem do livro de Catarina), através da exposição crítica do ensaio de Julio Paz, no terceiro capítulo. Como os leitores não podem ler a continuação do romance que foi censurado e se deparam apenas com a rasura das palavras ao longo de 25 páginas, essa narrativa só pode ser “criada” a partir da leitura Julio Paz, que conta com informação privilegiada da própria autora (e-mails trocados entre o crítico e a autora são reproduzidos).

Mas o aspecto mais interessante parece ser a discussão sobre o plágio. Alguns trechos trazidos para a narrativa são de fato “roubados” de livros como se o procedimento quisesse nos dizer que há sempre livros dentro de livros e leitores lendo leitores, uma espécie de boneca russa que se permite modificar a cada nova abertura.

Assim, o livro não apenas investe na reprodução de trechos de obras (lidas por Alice, personagem da autora ficcional Catarina Guerra? Ou por Cristiane Costa, autora da ficção sobre o plágio?) como também capricha no design gráfico incorporando diversos tipos de fonte, trechos em itálico ou sublinhados, páginas reproduzidas de uma agenda:

Sim, ela deixou algumas pistas, não sei se verdadeiras ou falsas. E é isso que me mata. Veja a parte sublinhada aqui neste livro que encontrei ontem:

Figura 2

(COSTA, p 64 e 65, 2014)

Ao reproduzir os textos sem explicitar as fontes, Costa iguala a condição do leitor a do personagem, pois Marcelo quer ler nas marcações encontradas nas leituras da mulher pistas sobre sua identidade e o leitor pode colocar no Google o trecho em destaque para descobrir a “verdadeira” autoria de Rebecca West por trás das letras. Mas a própria narrativa encarrega-se de dissuadir a procura pela originalidade: “Sim, ela deixou algumas pistas, não sei se verdadeiras ou falsas.”, afirma Marcelo após encontrar a passagem grifada.

O mote de Sujeito Oculto é a pergunta sobre a criatividade. Na narrativa de Catarina Guerra, a compulsão de Alice por anotar trechos lidos é analisada por Marcelo, o marido do primeiro capítulo, como uma evidência da incapacidade da personagem de criar algo próprio, o que é apresentado por ele como a explicação pelo fracasso da carreira literária da mulher. A escolha de Catarina Guerra pelo procedimento da apropriação, reproduzindo trechos inteiros de outras obras, é responsável pela acusação de plágio do livro escrito. Também a criatividade da crítica está sendo problematizada, já que o ensaio de Julio Paz que compõe o terceiro capítulo é uma emulação satírica de uma dicção analítica que se rende fácil ao biografismo. E por mais que Paz afirme que não se trata disso recai nele “desavergonhadamente”:

 A hipótese que lanço aqui é a de que a autora realizou um hábil bordado para dizer com todas as letras o que nunca teve a audácia de afirmar publicamente: a mãe se matou e o pai era o grande culpado. (COSTA, p 111, 2014).

 Colocando em xeque a criatividade, Cristiane Costa escreve um livro criativo apelando para o procedimento do recorte e cole. O conjunto da obra nos revela um sistema de autoria que parece brincar com os textos, e que ganha bastante efeito com os recursos gráficos e a metaficção crítica. O que poderia ser considerado “fraude autoral”, pois utiliza-se do texto de outros, transforma-se numa potência narrativa que não só desestabiliza o leitor que fica refém de uma narrativa oculta, como faz refletir sobre o processo de criação autoral, sobre o risco do investimento em novas possibilidades de fazer literatura.

+ uma dica: O corte e cole parece mais comum na música. Veja aqui o clipe da música “Bacharellote” da autora Islandesa Björk. https://www.youtube.com/watch?v=x5nNfbTS6N4 .Vale a pena conferir