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Como analisar a autenticidade das autobiografias?

João Matos

Créditos da imagem:  Christian Boltanski, The reserve of Dead Swiss, 1990.

Tradicionalmente, a autobiografia é entendida como um gênero narrativo que conta a vida de quem escreve, sempre escrito em primeira pessoa. Embora possa haver nas autobiografias algum grau de “invenção de si”, seja por vontade do autor de se inventar ou por falhas na memória, as regras do gênero dizem que devemos confiar na honestidade do autor. É o que defende o teórico francês Philippe Lejeune, que reconhece esses “deslizes”, mas recusa transformá-los em um fator que inscreva o texto no campo da ficção.

As autobiografias também são marcadas pela autoridade de quem escreve. Afinal, costuma-se acreditar que não há melhor pessoa para dar testemunho de sua vida senão o próprio autor. Mas o que significa a vida nessa modalidade de representação literária? Que procedimento para a elaboração textual do gênero autobiográfico é mais autêntico e mais fiel à reconstrução da vida que se conta?

O importante estudioso da autobiografia, Georges Gusdorf, afirma que a autobiografia “autêntica” exige um exame de consciência manifesto no relato por parte do narrador que pretende contar sua vida. Assim, diz Gusdorf, uma autobiografia não deve deixar de “se perguntar, se desmentir, se encontrar e se perder, em meio à busca de um sentido da vida que, mesmo não sendo alcançado, não é também abandonado”.

Gusdorf reconhece os deslizes não só como uma parte natural do processo de elaboração da autobiografia, mas como algo necessário para validar o exame de consciência: “a busca de si quer ser uma participação na constituição de si”. Nisso, o autor também critica a “ilusão biográfica”, pois afirma que contar uma vida não é apenas revisar informações, datas, documentos ou garantir a exatidão das memórias, tomando uma perspectiva de si inequívoca para assegurar ao leitor uma coerência inquestionável na exposição do que se passou.

É possível pensar as posições de Gusdorf em diálogo com outro nome fundamental da teoria da autobiografia, o belga Paul De Man. No texto “Autobiografia como Des-figuração”, De Man entende que toda autobiografia é des-figuração, pois ao tentar narrar sua própria vida, o autobiógrafo acaba criando uma outra figuração de si – é como se, no gesto de remover uma máscara para revelar uma “verdade”, se colocasse outra máscara no lugar.

Gusdorf parece concordar com De Man sobre o entendimento do que é uma autobiografia, pois não ignora que no relato de si autobiográfico existem várias camadas de vida, mas discorda das conclusões dele, já que acredita que as des-figurações constituem o gesto propiciador do que Gusdorf chama de “autenticidade” da autobiografia. Não deixa de ser curioso o fato de Gusdorf redimensionar o significado da autenticidade para instituí-la como traço fundamental à autobiografia.