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 HIV/aids em O corpo recusado de Luiz Cecilio

 Ramon Amorim

Créditos da imagem: Andrew McPhail, Face (Detail from Performance), 2010

Tem sido comum a produção de relatos biográficos, por homens que se declaram como gays ou bissexuais, em que a abordagem da temática do HIV e da aids ganha centralidade. No livro O corpo recusado, escrito por Luiz Cecilio, é possível depreender a existência de um percurso paralelo entre a vivência do narrador e a história da epidemia que emerge no início da década de 1980.

Chama a atenção a posição privilegiada do narrador diante da epidemia e dos acontecimentos que surgem a partir dela. Como médico sanitarista e homem que vai se descobrindo como gay de dentro de um casamento homossexual, ele vislumbra a crise de saúde pública oriunda da aids ao mesmo tempo em que consolida a consciência da sua orientação sexual e busca formas de assumir isso publicamente.

Para a narrativa, essa posição possibilita um olhar singular diante do que acontece. Como homem que mantém práticas sexuais com outro homem, o medo da infecção torna-se uma constante: “As minhas primeiras paixões masculinas foram atravessadas por grandes dramas. O contexto era o da explosão da epidemia de AIDS e de tudo o que ela trouxe de preconceito.”

Esse medo da infecção diante de um contexto em que não havia tratamento efetivo para lidar com o HIV fica delineado no texto. A presença do vírus e da aids é verificada, principalmente, pela recorrência de mortes de pessoas próximas ao narrador, sobretudo homens jovens que praticavam sexo com outros homens. Essas mortes estão relacionadas a doenças oportunistas, assim como a suicídios causados pela vergonha de ter seu diagnóstico tornado público em um momento em que a doença era associada aos homens gays.

Diante da morte de quatro homens com quem o narrador teve algum tipo de aproximação afetiva/sexual, ele se vê diante do que chama de um cerco que se fecha sobre ele, culminando com a confirmação da sua infecção. Daí vêm os medos: de morrer ainda jovem, de ter sua condição sorológica exposta, da incerteza da eficácia dos tratamentos, ainda em fase experimental, das mortes de pessoas próximas e tudo aquilo que foi observado diversas vezes, em distintos canais midiáticos, por exemplo, durante as duas últimas décadas do século passado, principalmente.

Acompanhamos, assim, durante a leitura, o percurso do narrador que, diferentemente de tantos outros, sobreviveu ao período mais brutal da epidemia e conseguiu acessar os tratamentos mais consolidados para lidar com o vírus, o que possibilita hoje manter relacionamentos sorodiferentes (ou sorodiscordantes) e permanecer indetectável. Pode, na condição de médico e de paciente, observar a consolidação de formas de profilaxia disponíveis no sistema de saúde e o arrefecimento de parte do estigma que acomete as pessoas que tornam pública sua condição sorológica.

Por último, e não menos importante, é preciso observar que o relato é feito por um homem que chegou à velhice, já que ser portador de HIV e alcançar a condição de idoso não era uma possibilidade no início da epidemia. Produções como essa tornam-se possíveis sobretudo pelo avanço biomédico e farmacológico relatado no livro e se tornam excepcionais, pois relatos de sujeitos nessa faixa etária convivendo com o vírus são produtos relativamente recentes e raros no campo da produção de representação da doença e do vírus.

HIV/aids: os desafios na abordagem da epidemia hoje

Ramon Amorim

Créditos da imagem: Pepe Espaliú (1955–1993), 1992, Carrying (performance)

O ano de 2023 marca as quatro décadas da confirmação oficial do primeiro caso de HIV/aids no Brasil. Em 2023, a novela “Pela noite”, que faz parte do livro Triângulo das águas, escrito por Caio Fernando Abreu, também faz quarenta anos da sua publicação. Se em 1983 a crise da aids ainda se configurava como um medo mais ou menos distante, como indicado pelos personagens do texto ficcional do autor gaúcho, de lá para cá o que se viu foi a agudização da crise de saúde pública, muitas mortes, a associação de grupos sociais marginalizados ao vírus e à doença, entre outros tantos desdobramentos. Mas também acompanhamos a consolidação de formas mais eficazes de tratamento, a ampliação das formas de proteção, além da camisinha, e de controle da infecção, a descoberta de que o vírus pode ficar indetectável e, portanto, o portador não mais o transmite. O que parece ter mudado muito pouco, porém, é o estigma que acompanha os sujeitos positivos.

Vários desafios se colocam em relação ao manejo do HIV e da aids. Do ponto de vista biomédico, talvez a cura (o que significaria a erradicação do vírus do organismo infectado) seja o principal objetivo, ainda que não o único, a ser buscado. Já no campo social, o caráter educativo em relação à doença e ao vírus deve ampliar a circulação de informações seguras sobre as formas de prevenção e tratamento e se concentrar em desfazer o estigma associado aos sujeitos positivos, quase sempre homens, segundo o imaginário social.

A produção literária também enfrenta desafios. O maior deles talvez esteja relacionado à construção de imagens sobre o vírus e a doença ainda amparadas no contexto de emergência da epidemia, ou seja, nos primeiros anos da década de 1980. Assim, ainda é comum a representação que aproxima HIV/aids e morte, relacionando também doença e vírus a grupos sociais já marginalizados, principalmente àqueles que fazem parte da comunidade LGBTQIAPN+. Os sujeitos heterossexuais, sobretudo os homens, ao contrário do que mostram as estatísticas, não aparecem representados na condição de doentes ou portadores do vírus, no entanto, segundo o boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, entre os anos de 1994 e 1998, eles lideraram com folga os números de novas infecções.

Considerando ainda informações divulgadas em 2022 no relatório da UNAIDS, um programa conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS, as mulheres correspondem a 53% das pessoas vivendo com HIV. No entanto, a presença de personagens mulheres que têm a doença ou o vírus em narrativas e outras criações estéticas contemporâneas ainda é muito inferior ao número de sujeitos inseridos na homocultura, que aparecem doentes ou infectados em romances e contos.

Por fim, mesmo nas narrativas produzidas por homens gays ou outros grupos dentro da comunidade LGBTQIANP+, os impactos psicossociais e as imagens oriundas quando da emergência da epidemia (morte, sofrimento, medo da transmissão e/ou da infecção) ainda são muito presentes e permanecem como o modelo de representação para a quase totalidade dos personagens. A representação reincidente em muitos textos literários de que a infecção por HIV é um destino inescapável dos sujeitos homossexuais não se coaduna com o avanço científico na área, nem parece levar em conta as diferentes maneiras de prevenção que vão da camisinha à PEP. O que pode ser visto como uma prova de que há muitas questões ainda a serem superadas.

A perda da noção de urgência do HIV/aids em relação à produção narrativa brasileira

Ramon Amorim

Créditos da imagem: Kia LaBeija, Negotiating, 2018

Durante a pesquisa para a confecção da tese, tenho me deparado com uma gama de caminhos possíveis para discutir a questão do HIV e da aids na produção narrativa brasileira. Chama a atenção a reflexão sobre a perda da noção de urgência relacionada à crise de saúde pública que emergiu com a epidemia da década de 1980.

Visando discutir questões relacionadas à produção literária oriunda dos primeiros anos da epidemia, Italo Moriconi estabelece o conceito de “escrita da aids”, tendo a noção de literatura de urgência, associada a uma experiência extrema, como um dos pilares para entender o termo. Nesse texto, publicado em 2006, momento em que já havia a aplicação de Terapia Antirretroviral com relativo sucesso, Moriconi calca seu comentário sobre a morte do autor Caio Fernando Abreu e sobre sua novela Pela noite, primeira produção nacional a fazer referência à aids, ainda no ano de 1983, referindo-se, no  entanto ao período de emergência do HIV e da aids.

É o aumento da eficácia dos medicamentos antirretrovirais que demarca uma nova forma de abordagem dos produtos estéticos na sua maneira de discutir o HIV/aids. As chamadas “Narrativas pós-coquetel”, termo cunhado por Alexandre Nunes de Sousa e apresentado em artigo publicado no ano de 2015, passam a ser a tônica da produção cinematográfica e literária. Considerando os anos finais do século passado como marco histórico que dá início a essa nova forma de ocupar-se da temática aqui citada, o pesquisador cita obras, sobretudo de autores norte-americanos, para indicar como essa nova abordagem aparece.

O que se vê na produção literária a partir da percepção da perda de urgência da abordagem temática da epidemia, é também a perda de centralidade das questões sobre HIV e aids. A partir do momento em que se estabelece que o vírus pode ser controlado com medicação e que assim a doença deixa de se manifestar, transformando-se em uma patologia crônica, como tantas outras, a questão passa a ser abordada de forma colateral, quando não é apagada ou mesmo tratada como temática superada.

Essa discussão ainda carece de reflexão, pois a mudança no manejo do HIV e da aids, com o uso da PREP e da PEP, por exemplo, quase não foi colocada em perspectiva em relação a como a produção narrativa tem abordado a questão. Se a emergência da epidemia e a literatura de urgência, produzida como resposta a esse fato, ofereceram imagens tão contundentes, principalmente pelo protagonismo do vírus e da doença nas obras e nos discursos sobre essa temática, que tipo de imagens estão sendo e serão ainda produzidas diante da perda de centralidade do HIV/aids e da sua perda da noção de urgência, marcada também pelos avanços farmacológicos?

“Isso não é doença de criança”

Ramon Amorim

Créditos da imagem: Michael Golden, Untitled collage, 2016

“Para mim, aids era uma doença de prostitutas, gays e viciados. Não de uma mãe, não de minha filha, não de um bebê.”

Durante as investigações feitas para a construção da tese que busco desenvolver no curso de doutorado, tenho observado o quanto a produção narrativa sobre a temática do HIV e da aids é pouco diversa no conjunto de suas abordagens. Ainda há uma recorrência na representação do tema associado a sujeitos e grupos marginalizados, sobretudo aos homossexuais.

Diante de mudanças no perfil epidemiológico das pessoas infectadas pelo HIV, ainda é comum, mesmo em produções mais recentes, um conjunto de representações que recorre a imagens originadas durante a emergência da epidemia e cristalizadas nas suas duas primeiras décadas.

Assim, a citação que dá título a este texto poderia ser pensada, fora do seu contexto original, como uma afirmação que atesta o que foi dito até aqui. Porém, ela apresenta camadas que precisam ser melhor analisadas, visto que está em uma das únicas narrativas em que há a presença, e o protagonismo, de uma criança vivendo com HIV, o livro Pequeno segredo, de Heloisa Schurmann, lançado no ano de 2012.

O relato sobre a origem e a história de Kat Schurmann, uma criança com HIV adotada pela família de velejadores antes de completar três anos, é fruto dos acontecimentos vividos pelos Schurmann nos mais de dez anos em que conviveram com a jovem, que era considerada por um dos médicos como uma “criança terminal” desde de os primeiros anos de vida.

É interessante pensar como a narrativa de Pequeno segredo, mesmo apontando para a possibilidade de construção de uma nova forma de representação para as produções literárias sobre a temática do HIV e da aids, insiste ainda na oposição entre o que é “mostrado” e o que é “dito” pela narradora. Se a aids (diagnóstico atribuído à jovem) “não é doença de criança”, como é possível então narrar sobre Kat e sua experiência com a aids? Por que a produção ficcional tem ainda utilizado imagens tão pouco diversas se narrativas (auto)biográficas, por exemplo, caso de Pequeno segredo, têm avançado nas formas de representar?

O caminho para responder essas indagações passa pela ideia já apresentada aqui e que remete ao fato de que a representação literária sobre o tema, assim como a social, é pouco diversa, o que dificulta criar imagens diferentes das criadas até então para representar as questões referentes ao vírus e à doença. Assim, mesmo uma produção que apresenta uma forma diversa de abordar o tema, ainda continua a dialogar com imagens ultrapassadas, pois parece que elas fazem mais sentido que quaisquer outras.

Cinema, literatura e HIV/aids

 Ramon Amorim

Créditos da imagem: Joe De Hoyos, Spitting Image, 1987 

Seja em séries, longas e curtas-metragens, documentais ou ficcionais, maneiras diversas de representar as questões relativas ao HIV/aids estão presentes nas telas. É possível localizar obras, a partir do ano de 1985, que já discutem a epidemia, como AIDS: Aconteceu comigo (1985), Filadélfia (1993), As horas (2002), Angels in America (2003), Cazuza – O tempo não para (2004) The Normal Heart (2014), Pose (2018), entre tantas outras.

Várias dessas realizações audiovisuais estabelecem uma relação direta com a literatura. Muitas são adaptações de textos literários, enquanto outras levam para a tela a vida de escritores ou personagens importantes das letras. Também há casos em que essa aproximação se dá de maneira indireta, na forma de alusões ao universo da literatura.

Duas obras recentes do cinema brasileiro chamam a atenção pela maneira como dialogam com a literatura: o documentário Carta para além dos muros (2019) e o drama em longa-metragem Os primeiros soldados (2022). No filme de 2019, dirigido e produzido por André Canto, a referência mais evidente diz respeito ao título, baseado no conjunto de crônicas que o escritor Caio Fernando Abreu publicou entre os meses de agosto e setembro de 1994 no jornal O Estado de S. Paulo. Além disso, um dos entrevistados do documentário é um homem identificado com o nome fictício de Caio, em referência ao autor gaúcho. Há também neste filme depoimentos de autores fundamentais à discussão sobre HIV/aids, como João Silvério Trevisan, Drauzio Varella, Jean-Claude Bernardet, entre outros.

Já em relação ao longa-metragem Os primeiros soldados, dirigido e escrito por Rodrigo de Oliveira, as referências ao universo literário não são tão evidentes quanto no  documentário de Canto. Aqui a aproximação entre cinema e literatura é construída a partir de exercício de especulações e aproximações. A começar pelo momento em que se passa a narrativa, o ano de 1983. Há aí uma “coincidência’, pois é o mesmo em que Caio Fernando Abreu lança a novela Pela noite, o primeiro texto literário a abordar a temática do HIV/aids.

É possível ainda observar formas e procedimentos comuns à literatura sobre HIV/aids no longa dirigido por Rodrigo de Oliveira. Narrar a si, de maneira autoficcional, ou de modo autobiográfico, como muitos escritores fizeram, principalmente nos primeiros anos da emergência da epidemia, é uma dessas estratégias de que o filme se vale.

Por fim, é preciso chamar a atenção ainda para o fato de que não se nomeia o vírus ou a doença, procedimento também comum nas produções literárias sobre o tema. Em Os primeiros soldados, embora os personagens com HIV façam registros minuciosos sobre sintomas, remédios, efeitos adversos, associados ao vírus e à doença, não há qualquer designação explícita ao HIV/aids, procedimento que está presente também em grande parte da obra de Caio Fernando Abreu e Bernardo Carvalho, por exemplo. 

Embora minha pesquisa não tenha como objetivo realizar um mapeamento exaustivo sobre as aproximações possíveis entre as produções literárias e cinematográficas que abordam a temática do HIV/aids, não deixa de ser curioso observar como em ambos os circuitos circulam representações semelhantes do vírus e da doença .

A recorrência de metáforas bélicas nas produções narrativas sobre HIV/aids

Ramon Amorim

Créditos da imagem: Peter Juhar, Self-Portrait Jumping (1), 1974.

Susan Sontag, no livro-ensaio AIDS e suas metáforas, em dado momento, discute sobre uma das principais formas de abordar a temática do HIV/aids: o uso de metáforas bélicas para se referir ao vírus e à doença. A ensaísta fala no livro sobre como grande parte dos discursos, principalmente aqueles provenientes do campo biomédico, empreendeu uma espécie de bellum contra morbum, guerra à doença, para formular estratégias e ações que tivessem como objetivo lidar com a epidemia emergente no final do Século XX.

A estratégia de utilizar vocabulário e ideias relativas ao universo bélico para falar sobre doenças parece ter se consolidado nos contextos de pré e pós-guerra do início do Século XX, durante as epidemias de sífilis e tuberculose, e a partir daí passou a ser a tônica da maioria das campanhas de saúde pública que lidavam com crises sanitárias. Validadas pelo campo biomédico, as metáforas bélicas se espalharam para outros grupos sociais e acabaram por atingir toda a sociedade. Assim, torna-se comum encontrar nos mais diversos espaços sociais discursos que remetem à ideia de guerra à doença.

Se, nos diversos discursos, essa forma de falar sobre HIV/aids é comum, também na produção literária brasileira essa espécie de metaforização da epidemia é usual e recorrente. Romances como Amarga herança de Leo, de Isabel Vieira, ou ainda, Pequeno segredo, de Heloisa Schurmann, escritos no final dos anos de 1990 e início dos anos 2000, respectivamente, ainda trazem construções que indicam que a infecção por HIV representa uma sentença de morte, uma batalha a se travar contra o vírus, assim, como aquelas explicações que indicam que o sistema imunológico humano seria uma espécie de exército que protege o corpo de potenciais inimigos, as doenças. Não se pode perder de vista que essas construções permeavam o imaginário sobre a epidemia no início de sua emergência e persistiram por muito tempo, principalmente, nas campanhas de saúde pública voltadas ao público jovem.

No romance de Guido Arosa, O complexo melancólico (2019), diferentemente do que a maioria das outras obras apresenta, há um conflito armado em curso na narrativa. Um dos inimigos desta batalha é o próprio sujeito homossexual, aquele que “o gozo, que dura poucos segundo, causa uma Hiroshima”, como afirma um dos personagens. Perseguido pelo poder instaurado, esse sujeito é condenado à morte “pela doença” ou “pelo Estado”. Nesse aspecto, pode parecer que a obra de Arosa se aproxima de outras narrativas sobre o tema, porém é preciso considerar que essa condenação atribuída é ao corpo homossexual que, independente da presença do HIV/aids, torna-se alvo predominante tanto da guerra simbólica, quanto da violência física fomentada pelo simbolismo bélico.

Se “a guerra é definida como uma emergência na qual nenhum sacrifício é considerado excessivo”, como aponta Sontag, a “guerra à aids” justificaria, inclusive, a perseguição aos sujeitos homossexuais, apontados quase sempre como culpados pela epidemia. Por isso, não é incomum nos discursos e nas produções narrativas, que o foco do esforço bélico esteja mais no corpo desses sujeitos e menos no vírus. No entanto, em relação aos outros grupos sociais, o combate travado é sempre contra o vírus apenas, o que reforça a ideia de que o inimigo desta guerra não é apenas o HIV mas toda uma coletividade que vem sendo atacada desde sempre.

“Ele não vale o risco”: a abordagem do relacionamento sorodiscordante no romance Fake, de Felipe Barenco

Ramon Amorim

Créditos da imagem: David Worjnarowicz, Sem título (série homens vendados 1), 1982

O romance Fake (2014), de Felipe Barenco, narra a transição para a vida adulta do personagem Téo e aborda sua entrada na faculdade, a relação com a família e o conturbado namoro com Davi, que se descobre vivendo com HIV pouco depois de os dois se conhecerem. Tendo o Rio de Janeiro como cenário, a narrativa aborda questões acerca do universo de jovens adultos que trafegam por universidades, shopping centers e bairros de classe média da capital fluminense.

Movida pelo interesse em investigar a temática do HIV/aids, uma das chaves de leitura desta narrativa passa pela discussão sobre relacionamentos sorodiscordantes (ou sorodiferentes), tendo em vista que é uma questão central na obra, assim como representa grande parte da hesitação do protagonista e dos seus amigos em relação ao namoro recente, tensionado pelo estado sorológico de Davi. Visto como potencialmente perigosa, a aproximação entre os dois personagens é considerada como um relacionamento de risco para Téo, que possui pouca experiência sexual e tem a sorologia negativa para HIV.

A questão do “relacionamento de risco” atravessa toda a narrativa e sua presença pode ser vista, entre outras formas, nos recorrentes conselhos dos amigos do protagonista sobre o perigo que o namoro representa para a saúde dele. O argumento, quase sempre, é construído sobre a ideia de que manter um relacionamento com alguém HIV positivo se configuraria como uma “prova de amor” e somente funcionaria se houvesse “amor de verdade”. Nesse sentido, a manutenção do namoro significa uma ameaça constante, desnecessária, sobretudo porque “O Davi não vale o risco”, como afirma um personagem.

Por essa ótica, manter um relacionamento com Davi, considerando sua sorologia, exigiria mais esforço e mais amor (o “verdadeiro”) do que em uma relação com outra pessoa, negativa para HIV. Isso leva a pensar em como os sujeitos “posithivos” são construídos socialmente como aqueles não merecedores de afeto. Enquanto isso, o sujeito “negativo” é visto como o que por amar muito consegue, com alguma dose de altruísmo, superar a presença do vírus para manter o vínculo afetivo, ou seja, um ser superior em relação a seus pares, como Téo parece se ver, apesar do seu discurso dizer algo diferente disso.

O problema desse tipo de construção é que ela coloca o sujeito com HIV na qualidade de inferior em relação aos que não convivem com o vírus, o que pode ser lido como uma forma de sorofobia. Essa prática não é exclusiva dos personagens e do narrador do romance de Barenco, ela surge de forma recorrente em diversas narrativas brasileiras. Pode-se dizer que esse tipo de representação é uma constante na literatura nacional, causando surpresa apenas quando não aparece nas produções literárias.

Essa face da sorofobia, que atravessa o romance (sendo produzida inclusive pelo protagonista e seus amigos, entre eles uma jovem médica) e quase toda a produção nacional, aparece de forma mais ou menos articulada a outras. Isso faz pensar em como a representação do HIV/aids ainda recorre aos mesmos mecanismos e construções presentes desde as primeiras narrativas sobre o tema, escritas há quase quatro décadas. O que, talvez, o romance de Felipe Barenco traga de mais original seja o fato de que o personagem com HIV acaba se revelando como o antagonista da obra. Na falta de outras imagens originais, essa seja a que mais acrescenta ao imaginário produzido sobre a temática.

“O homossexual como perseguido pela positividade do HIV mesmo quando se encontra negativado”

Ramon Amorim

Créditos da imagem: Alejandro Kuropatwa, Untitled, Cóctel series (1996)

A associação entre a epidemia emergente na década de 1980 e os homens gays foi reforçada por diversos setores da sociedade, inclusive por profissionais do campo biomédico (e ainda está presente hoje, infelizmente). O avanço da epidemia fora dos grupos considerados de “risco” fez com que essa associação perdesse força e a noção de comportamento de risco se tornasse o fator preponderante para refletir sobre a questão do HIV/aids.

Ainda assim, homens gays têm sido o principal alvo das representações artísticas quando a temática do HIV/aids é abordada. Mesmo diante de um perfil epidemiológico diverso, literatura, cinema e mídia ainda mantêm, mesmo que de forma furtiva, essa associação entre a epidemia e determinado grupo social. Parte do interesse de minha pesquisa está ligado à exploração deste cenário e a uma situação narrativa recorrente: a ideia da ameaça da infecção por HIV como uma espécie de sombra que paira sobre os sujeitos homossexuais.

Em Você nunca fez nada errado, um relato autobiográfico publicado em 2018, Felipe Cruz refere-se à forma como sua família encararia sua sorologia positiva para HIV como “uma tragédia: a confirmação do destino”. Segundo o narrador, há dois motivos para isso. O primeiro está na identificação física e comportamental do protagonista com um tio morto ainda jovem em decorrência de doenças oportunistas associadas à aids. O outro motivo estaria na orientação sexual, que representaria condição prévia para a confirmação da presença do vírus, “o encontro inevitável com o destino”. A referência à tragédia clássica, pensada pelos primeiros filósofos gregos, acentua ainda a ideia do inescapável.

A frase que dá título a este texto é retirada do romance O complexo melancólico publicado em 2019 pelo escritor carioca Guido Arosa. A sentença expressa uma preocupação recorrente de muitos sujeitos situados na(s) experiência(s) da homossexualidade: a iminência do diagnóstico positivo para HIV. No romance de Guido Arosa, a ideia da inevitabilidade do contágio aparece em diversos momentos da narrativa fragmentada. Em um deles, personagens homossexuais, encarcerados devido a sua orientação sexual, ouvem que “serão mortos pela doença”. Em outro trecho, fica evidente a associação entre os homens gays e a epidemia: “Antes de dizer à minha mãe que tive sífilis, disse apenas que estava ‘doente’ e ela, naquele momento, me olhou como se eu tivesse Aids e sua reação tinha a certeza da minha morte”.

Ainda na narrativa de Arosa, é possível reconhecer, além da representação da relação entre homossexualidade masculina e HIV/aids, também esse “medo perpétuo” do contágio pelo vírus sobre o qual argumentei acima: “Enquanto homossexual, minha fantasia neurótica é morrer vítima do HIV”. Na narrativa, esse medo não tem qualquer elemento que o justifique, exceto a orientação sexual do narrador.

O que mais chama a atenção é o fato de que cada vez mais podemos acompanhar notícias que indicam a mudança evidente do perfil epidemiológico, porém isso não parece atingir ainda as diferentes representações do HIV/aids, nem as sociais, nem mesmo as artísticas. Assim, assumo como pressuposto de pesquisa que é preciso especular o quanto essa representação social do HIV/aids e sua associação com os homens homossexuais ajuda a construir uma representação literária ainda limitada em suas abordagens. Mesmo as narrativas que avançam na forma de dizer, ainda têm dito o mesmo, têm explorado os mesmos conteúdos. As duas narrativas comentadas brevemente neste post são exemplares neste aspecto. Elas avançam na forma como abordam a questão do HIV/aids, mas ainda exprimem um conjunto predominante de ideias sociais recorrentes sobre a questão.

Dinâmicas de silenciamento em torno do HIV/aids em Ricardo e Vânia, de Chico Felitti

Ramon Amorim

Créditos da imagem: Joan Ponç, sem título nº 26, 1953.

Lançado no ano de 2019 pela editora Todavia, Ricardo e Vânia é um livro-reportagem escrito pelo jornalista Chico Felitti e catalogado como uma biografia. Nascido a partir dos desdobramentos de uma matéria do mesmo autor publicada no site BuzzFeed, o perfil biográfico de Ricardo Corrêa da Silva (conhecido no centro da cidade de São Paulo por Fofão da Augusta) é também uma história de amor (como indica o subtítulo da obra). Ricardo e Vânia mantiveram durante anos um relacionamento que se desfez depois de muitas crises de Ricardo, dos problemas relacionados ao esquema de aplicação de silicone líquido e do fechamento do salão de beleza do qual eram donos.

Vivendo na cidade de Araraquara, interior do estado de São Paulo, Ricardo e Vânia possuíam um lucrativo negócio na área de estética até a emergência da epidemia de HIV/aids, no início da década de 80. Vânia, em entrevista para Felitti, afirma que as pessoas passaram a ter medo do casal, o que piorou a condição mental de Ricardo e causou a diminuição drástica do número de clientes que  atendiam no salão.

No relato de Felitti, é interessante observar como há diferentes dinâmicas de silenciamento sobre a questão do HIV/aids, tema importante para a história que conta. A principal delas diz respeito à solicitação, por parte de alguns entrevistados, de não falar sobre o assunto ou mesmo de retirar da narrativa qualquer indicativo que possa ser entendido como referência à questão. Esse é o pedido que Carlos, conhecido como Gugu, outra figura conhecida do centro da cidade de São Paulo e amigo de Ricardo, faz ao saber que na matéria publicada no site há um trecho em que está escrito que ele “tem uma doença incurável”. A interferência do entrevistado acaba por ser registrada no livro e o autor indica que a informação seria suprimida da versão final por não ser essencial para “entender um pouco sobre Carlos”.

Outra forma de silenciamento está na recusa em falar sobre o assunto. O próprio Carlos se mostra incomodado e não quer discutir sobre a doença citada por Felitti. Também Vânia evita encarar o tema de forma direta e busca fazer declarações mais genéricas sobre o período em que a epidemia assombrou sua estada no interior paulista. Quando ela cita a aids, como “causa mortis” de uma amiga, é o autor que não indica a quem se refere.

Por último é preciso ainda apontar a não nomeação como outra dinâmica do silenciamento em torno do HIV/aids. É perceptível como alguns dos entrevistados, assim como o próprio jornalista (vide a forma como indica a doença de Carlos), buscam desviar de referências diretas ao tema. Na maioria das vezes em que o termo “aids” aparece no relato é através do depoimento de Vicky Marroni, uma conterrânea de Ricardo. 

É interessante notar que assim como em narrativas ficcionais, o silenciamento sobre a questão aqui discutida também aparece no relato jornalístico, calcado em uma suposta verdade dos fatos. Isso aponta para o estigma ainda existente sobre as pessoas vivendo com HIV/aids, mesmo depois de quarenta anos da emergência da epidemia e das mudanças de paradigma relacionadas a ela.

As dinâmicas de silenciamento agem de forma similar nas duas formas narrativas, se na ficção há, talvez, o interesse de representar esteticamente esse estigma, no texto não ficcional aqui discutido o que se vê é efetivamente como o estigma ainda tem força e exerce papel preponderante na representação social do HIV/aids.

Representação social e literária sobre HIV/aids e as minorias de direito

Ramon Amorim

Créditos da imagem: Camila Alvite (Janus, 2019)

Ao longo de minha investigação sobre a representação do HIV/aids na literatura brasileira, é notável a ausência de produções de autoria feminina sobre o tema, bem como a limitada presença de personagens femininos nas narrativas literárias sobre HIV/aids. Esse é um reflexo do ainda pouco expressivo número de obras, lançadas por editoras de relevo e assinadas por minorias de direitos, como mulheres, pessoas negras etc. Quando me questiono sobre o modo que o tema da minha pesquisa aparece nas narrativas, surge ainda um outro problema que diz respeito a como a literatura pode também confirmar uma certa representação social do vírus e da doença, já que a maioria das narrativas sobre essa temática tem como personagens homens gays brancos jovens.

As pesquisas, porém, mostram outros dados. Nas primeiras décadas dos anos 2000, a Agência AIDS identificou que pelo menos 25% do total de casos notificados são de pacientes mulheres e, segundo dados do Boletim Epidemiológico de 2020, em 2009, a cada 15 homens diagnosticados com HIV, 10 mulheres recebiam o mesmo diagnóstico. Também a partir dos primeiros anos deste século, ainda segundo esse documento, a epidemia de HIV/aids tem alcançado um contingente de pessoas cada vez mais pobres. Essa dinâmica aponta, pela história da organização social do Brasil, de forma paralela, para o aumento do número de diagnósticos na população preta e parda, principalmente, feminina.

Diante desse cenário, é preciso questionar os motivos pelos quais a literatura ainda não se afastou daquela identidade social plasmada sobre os sujeitos com HIV/aids. Será que a conhecida desproporção histórica no número de produções literárias de autoria feminina em relação às de autoria masculina é suficiente para explicar a manutenção de um viés representacional para HIV/aids nas narrativas que reiteram preconceitos surgidos no momento da descoberta do vírus e da doença? Dizendo de outra forma: seria possível pensar que a reiterada representação literária de personagens homens brancos jovens gays com HIV e/ou aids é apenas uma consequência da forma como nosso campo literário está estruturado? Embora essa possa ser uma possibilidade concreta, acredito que é possível investir em outra hipótese.

Apesar de a investigação científica ter avançado sobre o conhecimento do vírus, proporcionando tratamentos mais efetivos para o mesmo e verificando mudanças nos perfis dos sujeitos afetados, a representação social avançou pouco, pois ainda é muito comum no imaginário social a associação entre HIV/aids e homens gays. A literatura, como parte da cultura, também produz, reitera ou cria representações sociais. Se em narrativas de autoria masculina que abordam o tema, ainda é muito comum encontrar homens gays como protagonistas, narrativas brasileiras que tematizam o HIV/aids escritas por mulheres como Depois daquela viagem, de Valéria Polizzi, e O voo da guará vermelha, de Maria Valéria Rezende, ainda associam o vírus e a doença à infelicidade, à decadência física dos portadores e à morte iminente.