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Quando a arte encontra a vida

Samara Lima

Créditos da imagem: Nan one month after being battered, 1984.

Mario Perniola é um importante filósofo e crítico de arte. Em A arte expandida, o autor resgata teóricos como Rosalind Krauss e seu conceito de campo ampliado nas artes para observar como os limites das práticas artísticas na última década vão se tornando cada vez mais elásticos: “A bolha especulativa do que chamávamos de “mundo da arte”, e que surgiu no final dos anos 50 do século XX, estourou finalmente”.

De acordo com Perniola, existem dois momentos que marcam a história da produção artística no século XX. O primeiro está relacionado ao processo de democratização da arte impulsionado pelas ações da Saatchi Gallery, a famosa galeria de arte londrina. Já o segundo momento diz respeito à Bienal de Veneza de 2013, organizada por Massimiliano Gioni. Segundo Perniola, a Bienal é determinante para o que o autor chama de giro “fringe”, ou seja, uma guinada do interesse dos artistas na produção de obras que operavam “fora” da arte. O autor comenta como o evento estabeleceu um novo paradigma, modificando as definições de “arte” e “artista” e expandindo os limites que definiam o que era tido como arte.

Uma das questões privilegiadas pelo autor “tem a ver com a relação arte-vida”. A primeira consideração de Perniola é notar como a Bienal de Veneza concedeu abertura a tantas produções do presente em que a prática estética estava “totalmente identificada com a vida do artista”, podendo inclusive prescindir da obra. No entanto, no decorrer do texto, essa exploração da primeira pessoa na estética contemporânea parece ser vista pelo italiano como um reflexo do circuito midiático (e mercadológico) em que os artistas estão inseridos. É bem verdade que cada vez mais estamos diante de uma revalorização da figura do criador e do espaço autobiográfico. Porém, será que não poderíamos apostar em uma presença do “eu” que supera o mero espetáculo vulgar e que a circulação da primeira pessoa também pode evocar uma coletividade?

No meu post anterior, comentei que Nan Goldin é uma das fotógrafas que compõem o meu corpus investigativo. Boa parte de sua produção tem a ver com registros de sua própria vida e de seus amigos em um ambiente underground. Embora as motivações de seus trabalhos sejam pessoais e movidas por afetos, as situações retratadas são geralmente cruéis e comoventes.  A foto colorida que abre este post é um autorretrato da fotógrafa e a exibe olhando diretamente para a câmera. O sangue intenso no branco do seu olho parece refletir o tom do seu batom. Em contraposição aos danos físicos, ela exibe um olhar desafiador, um cabelo arrumado e está bem vestida. Essa fotografia marca o fim de um longo relacionamento abusivo. A presença da artista na imagem fotográfica não parece evidenciar um excesso de subjetividade ou um exercício de narcisismo e vaidade, mas os contornos dos piores momentos de sua vida e talvez de outras mulheres durante a década de 80.

Outro ponto é que muitas fotografias de Goldin (principal modelo de suas fotos) podem se expandir para outros temas e pessoas retratadas, adquirindo um caráter metonímico e expondo, dentre tantas outras coisas, a vulnerabilidade e a violência sofridas por mulheres em relações igualmente abusivas. Dessa forma, mais do que concordar ou discordar de Perniola considerando sua crítica à espetacularização do sujeito, é interessante refletir sobre como a presença do “eu” na contemporaneidade pode ser vista não só como uma mudança dos modos de funcionamento do campo artístico, mas também como uma forma de compartilhamento de experiências pessoais em um contexto coletivo e político mais amplo.

Por uma fotografia expandida

Samara Lima

Créditos da imagem: Self-Portrait in Blue Bathroom, London, Nan Goldin

Em “A fotografia expandida no contexto da arte contemporânea: uma análise da obra Experiência de Cinema de Rosângela Rennó”, Patricia Alessandri, pensando as práticas fotográficas contemporâneas, afirma que “a fotografia expandiu seus limites, passando de registro fiel da realidade para a percepção de novos tempos e espaços, estabelecendo diálogo e incorporando em seu fazer outras manifestações artísticas”.

Tendo em vista esse contexto de esgarçamento das fronteiras entre as diferentes formas de expressão, a autora traz o conceito “fotografia expandida”. No início do texto, Alessandri comenta que essa denominação tem como base teórica a noção de expansão da linguagem formulada por Gene Youngblood, no livro Expanded Cinema (onde ele reflete sobre as “novas manifestações do cinema” em comparação com o que era produzido até então) e o estudo do artista Andréas Müller-Pohle, em seu texto Information Strategies, (em que ele busca compreender a prática fotográfica que está cada vez mais comprometida com os procedimentos de produção, circulação e manipulação da imagem).

Se a modernidade discutiu o estatuto artístico da fotografia, muitas vezes compreendida apenas como documento, a produção contemporânea vem aprofundando a exploração das possibilidades inventivas dela. O que o termo “fotografia expandida” almeja evidenciar, então, é uma nova forma de conceber a imagem. Essa possibilidade de invenção pode se dar por meio de intervenções nos diferentes estágios de produção da imagem como, por exemplo, o uso de filtros e a própria auto-encenação do fotógrafo. Mas também por meio do questionamento da crença no caráter autêntico da fotografia para aproximá-la do mundo da ficção. 

Foi pensando no hibridismo entre os diferentes meios artísticos e na ampliação de sua área de atuação como linguagem e representação que, há cerca de um ano, iniciei um projeto de iniciação científica intitulado “A literatura fora de si e o estatuto da imagem fotográfica na narrativa contemporânea”. Aí, eu estava interessada em investigar uma possível “saída da literatura” ao incorporar elementos não-ficcionais como, por exemplo, a fotografia, mas também uma “saída” da imagem fotográfica que, sendo considerada durante muito tempo um documento, cada vez imbrica-se com o texto literário.  Dessa forma, busquei explorar de que maneira as imagens aparecem nas narrativas do meu corpus ficcional e quais funções elas desempenham junto ao texto. 

O fato é que a pesquisa apontou uma pluralidade de modos de relação entre as narrativas e imagens fotográficas, o que colabora com o meu desejo de continuar a investigação em outro plano de iniciação científica. Agora, além de investigar a prática literária que desliza na direção de uma relação imbricada com a imagem, explorando a discussão teórica sobre a expansão dos limites das artes na contemporaneidade (em especial da fotografia), o meu plano de pesquisa quer discutir o próprio regime narrativo de muitas imagens hoje, principalmente nos trabalhos de Nan Goldin e Francesca Woodman.