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By heart e a “situação” teatro

Marília Costa

Créditos da imagem: By heart (2013), Tiago Rodrigues, Mostra de Espetáculos

Meu projeto de pesquisa atual tem me levado a conhecer melhor a cena teatral contemporânea e a analisar os mecanismos formais de uma produção dramatúrgica que privilegia as relações da ficção com a vida. Hoje, farei um breve comentário sobre o espetáculo By heart (2013) do dramaturgo, ator, produtor e encenador português Tiago Rodrigues, encenado em 2020 na MiTsp – 7ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo. Na apresentação, há a mobilização da memória, do afeto, da literatura, da resistência em sentido político e do público como recurso cênico.

O título By heart remete à morfologia, “em português, decorar é sinónimo de aprender de cor. E desde que eu comecei a trabalhar como actor, sempre preferi usar o termo “aprender de cor”. “Cor”, forma arcaica da palavra ‘coração’” (RODRIGUES, 2013). E é justamente esse movimento que o ator propõe à plateia ao solicitar que dez voluntários ocupem as cadeiras distribuídas no palco: essas pessoas deverão decorar durante o espetáculo o soneto 30 de Shakespeare.

No decorrer da peça, Tiago Rodrigues comenta sobre a relação com a avó Cândida, com quem compartilhava o amor pela literatura, que agora afetada por um problema de visão precisava escolher um único livro para decorar. Também comenta sobre Nadejda Mandelstam, que para preservar os poemas escritos pelo marido Ossip Mandelstam e censurados pelo regime de Stalin, precisou decorá-los e transmiti-los oralmente às pessoas até que fosse seguro publicá-los novamente.

By heart é um espetáculo bastante celebrado pela crítica especializada e pelo público em geral, tanto pela temática como pelas questões formais, principalmente no campo teatral francês. Em By heart, o modo como os signos teatrais são desenvolvidos possibilita a fluidez dos limites entre o teatro e outras práticas artísticas que almejam uma experiência real como, por exemplo, a arte performática, o que dá origem ao teatro pós-dramático, tal como caracterizado por Hans Thies Lehman: “uma tentativa de conceitualizar a arte no sentido de propor não uma representação, mas uma experiência do real”.

O espectador vai ao teatro para assistir a um espetáculo, ao chegar no local é convidado a subir ao palco e realizar uma performance junto com o ator: decorar, recitar e comer um poema. Nesse sentido, podemos dizer que o público é colocado em uma “situação” teatro, nos termos de Hans-Thies Lehmann, teórico do teatro pós-dramático. Percebemos nesse deslocamento performativo que o público deixa o lugar de testemunha e passa a ocupar o lugar de parceiro participante no teatro que tem o poder de interferir no desfecho da comunicação, o que possibilita um novo estilo de encenação pautado na experiência do real e não apenas na representação.

Ao ser colocado em situação teatral o espectador vivencia um experimento e uma experiência única. Desse modo, o teatro deixa de ser “obra oferecida como produto coisificado para assumir-se como ato e momento de uma comunicação que não só reconheça o caráter momentâneo da “situação” teatro – portanto sua efemeridade tradicionalmente considerada como deficiência em comparação com a obra durável –, mas também o afirme como fator indispensável da prática de uma intensidade comunicativa”, como defende Lehman. Logo, a experiência subjetiva dos próprios participantes que são colocados em “situação” teatral vai além da apreciação, pois o público atua como uma espécie de procedimento que faz o teatro acontecer. Cada apresentação será única levando ao extremo a máxima de que no teatro nenhuma apresentação é igual a outra.