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Os convites da autoficção

Antonio Caetano

Créditos da imagem: “London in puddles”, série fotográfica de Gavin Hammond, presente em: https://www.mirror.co.uk/incoming/gallery/london-puddles-photography-series-gavin-866147

No artigo “El lector ante la autoficción”, as análises da teórica Maria José Alcaraz León partem do pressuposto de que ao leitor da autoficção seria impossível ler uma obra  alternando a perspectiva de leitura entre elementos fictícios e factuais. Para ela, a autoficção não deveria se esgotar na querela entre verdadeiro e falso, mas deve consistir em um convite para o leitor refletir sobre a ficção e a não ficção. E esse convite pode ser feito de formas muito distintas.

Ao nos depararmos com a diversidade de textos autoficcionais presentes na literatura contemporânea, talvez seja recomendável não cair na armadilha de começar a análise desses textos considerando as evidências empíricas, que dizem respeito à vida do autor, em jogo na obra. Talvez seja possível entender que a autoficção também convida o leitor para um encontro com a representação.

Mas como se daria a leitura de um texto autoficcional?  Se o jogo entre ficção e não ficção são elementos constitutivos do convite à leitura feito pelo texto autoficcional, rejeitá-lo significa perder uma boa parte do que está em jogo. Mas isso não significa priorizar a caça aos dados factuais explorados no texto, pois mesmo que o escrutínio do texto ou a leitura análitica dele abra mão desse procedimento, isso não significa ignorar ou menosprezar a costura da ficção com o não ficcional, rejeitando-a como uma característica fundadora da ambiguidade da narrativa ficcional.

O que me interessa no argumento desenvolvido por Maria León é que a crítica sugere que a dubiedade entre as identidades do autor e do narrador não precisa ser encarada como se a ficção e a não ficção se alternassem seguidamente durante a narrativa, levando o leitor a decidir a todo o momento se o que está lendo é ficção ou não. O mais importante é que a própria instabilidade é uma condição do texto reconhecido como autoficcional.

Essa reflexão me interessa para pensar a narrativa sob a qual me debruço para produzir minha dissertação de mestrado. Tiago Ferro publica seu primeiro romance, O pai da menina morta, que teve como motivação de escrita a morte de sua filha. O narrador, que é também escritor, perdeu uma filha sob as mesmas circunstâncias relatadas por Ferro em um artigo publicado para a revista Piauí. Tal similaridade une indiscutivelmente esses dois sujeitos.

Nesse romance, que identifico como uma obra autoficcional (diferentemente do próprio Tiago Ferro), acredito que o tipo de convite realizado no texto está intimamente relacionado com o luto e o trabalho de luto experimentados pelo narrador devido à morte da filha. No entanto, me interessa menos identificar e comprovar o que aconteceu ou não, quais os elementos “baseados” na vida e na experiência traumática vivida por Ferro, do que entender a escrita como uma forma de representação dessa experiência, que é pessoal, sem dúvida, mas é também matéria para a ficção, pois, na minha leitura, o luto é o elemento chave da ponte que é possível construir entre a ficção e a realidade, aí, nessa narrativa.

Nesse sentido, a autoficção em O pai da menina morta é um convite para a reformulação de uma experiência traumática, não necessariamente presa aos fatos ou a dados empíricos – a morte da filha do autor Tiago Ferro.  Por serem íntimas, as verdades do luto não precisam possuir laços com os fatos, pois se tratam das expressões de um afeto, e será no texto que essa verdade poderá ser mobilizada. Será no texto, nas estratégias exercidas na escrita, nas presenças e ausências, e nos rastros observados no texto que essas relações de união e afastamento se entrelaçarão de forma mais imbricada, complexa, e rica em possibilidades interpretativas.

A palavra e o túmulo

Antonio Caetano

Créditos da imagem: bellanaija.com

Notas sobre o luto (2021), de Chimamanda Ngozi Adichie, publicado pela Companhia das Letras, pode ser entendido como uma auto-investigação despretensiosa empreendida pela própria Chimamanda a respeito do luto pela morte do pai, James Nwoye Adichie. As notas da autora partem da notícia do falecimento dele, das relações de luto na família, das lembranças compartilhadas, das lembranças pessoais, dos medos, e tecem uma busca pelo sentido do luto. A escritora comenta que o luto é um aprendizado cruel que a ajuda a aprender “como os pêsames podem soar rasos” e como “o luto tem a ver com palavras, com a derrota das palavras e com a busca das palavras”. 

A relação entre o trabalho de luto e uma determinada “derrota e busca das palavras” me interessa, pois as palavras apresentam, ao mesmo tempo, o poder da criação de significados da representação, e o poder do encerramento, do sepultamento daquilo que foi dito. A palavra não é a coisa em si e seu significado é uma prova da ausência daquilo que é a fonte de significação. A palavra como rastro. Tal visão da palavra é abordada por Jeanne Marie Gagnebin em Lembrar, escrever, esquecer, no qual a teórica afirma que a palavra escrita seria um rastro de ausência dupla: “da palavra pronunciada e da presença do ‘objeto real’ que ele significa”. Ainda ao refletir sobre as palavras, Gagnebin também salienta o fato de a palavra grega sèma significar tanto “túmulo”, quanto “signo”, reforçando a conexão entre “memória, escrita e morte”.  

Acredito, dessa forma, que a conexão referida por Gagnebin associa-se ao “aprendizado cruel” que, para Chimamanda, é o que representa o luto. Afinal, a morte de alguém querido configura um trauma que abala o sentido das coisas e impõe a eterna falta desse alguém em sua vida. Uma falta que as palavras não conseguem representar à altura, e que, ainda por cima, a tornam evidente. Inclusive, há um momento em que, tomada de tristeza pouco após receber a notícia através do irmão, Chimamanda chega a dizer “Não! Não conte para ninguém, porque se a gente contar vira verdade”. Há, nesse caso, a noção da palavra como rastro, indicando a ausência impiedosa de quem se foi, assim como a impossibilidade de um reencontro real com essa pessoa.

Entretanto, Chimamanda salienta que, apesar de conter a derrota das palavras, o aprendizado cruel do luto também é constituído pela busca delas. Podemos ler algo semelhante na reflexão de Gagnebin quando afirma que “todo trabalho de pesquisa simbólica e de criação de significação é também um trabalho de luto”. Percebo esse movimento em um trecho em que Chimamanda discute sobre a limitação da expressão “sinto muito”; nesse momento a escritora comenta que a palavra “ndo”, em Igbo, reconforta mais por apresentar “fronteiras mais largas”, aproximando-se mais do “sinto muito” por um viés metafísico, e mais associado à empatia.

Não seria, então, viável pensar que em um trabalho de luto a busca pela palavra poderia ser uma busca pelo alargamento das fronteiras das próprias palavras, com o objetivo de ampliar suas potencialidades semânticas, fomentando, desse modo, um reencontro com a pessoa amada em falta através da escrita, da rememoração, da criação de signos e, consequentemente, de significados, para além do túmulo?

Luto e força metonímica

Antonio Caetano

Créditos da imagem: Daniel Boudinet: Polaroid, 1979.

Na minha pesquisa sobre o romance O pai da menina morta, de Tiago Ferro, percebo alguns aspectos importantes a serem considerados em relação à presença e à ausência de alguém querido que morreu. Por exemplo, no romance de Ferro o narrador enlutado aborda os efeitos da ausência de sua filha morta, mas não exibe a filha, não a descreve, nem mesmo cita seu nome. Em vista disso, acredito que a ausência presente da filha morta na narração do romance tenha um papel importante, especialmente por se tratar da elaboração do trauma do narrador, da exposição de uma ferida que resiste à representação.

Em A câmara clara,  em luto pela mãe e refletindo sobre fotografia, Barthes afirma que o punctum é uma “ferida”, que exerce certo poder sobre quem a observa. Barthes também comenta que o punctum é pessoal e individual, sendo difícil explicar essa ferida a outros. No decorrer do ensaio Barthes exibe muitas fotografias que exercem essa força sobre ele, exceto uma. Trata-se de uma fotografia da mãe quando criança. Barthes não exibe a foto, mas descreve o que o punctum nessa foto representa para ele, assim como sua origem: o olhar da mãe. E é justamente esse jogo da presença constituída a partir da ausência, e a dor do luto, que me interessa abordar nesta postagem.

Barthes afirma não mostrar a fotografia da mãe por ela existir apenas para ele, já que para qualquer outra pessoa a fotografia seria indiferente. Não haveria ferida. Mas por que importa a Barthes o fato de sermos atingidos, ou não, pelo olhar de sua mãe? Ele omite a foto não por resguardo, mas, como disse, por  não fazer diferença que a olhemos. A foto não nos atingiria. Por outro lado, não saímos ilesos da leitura de A câmara clara no que concerne ao luto de Barthes: sentimos sua dor, partilhamos de seu luto, vislumbramos como esse punctum o fere. Mas como isso se dá?

Sobre esse aspecto do ensaio de Barthes, e especialmente sobre o punctum representado pela foto da mãe dele, Jacques Derrida comenta que o punctum, sendo esse lugar de “singularidade insubstituível e de referencial único”, irradia uma força metonímica e pode invadir tudo.

Ainda de acordo com Derrida, a força metonímica do punctum nos permite falar do que é único, falar de e falar sobre e, dessa forma, confere uma certa generalização ao discurso. Por generalização, Derrida quer dizer que a força metonímica – ou seja, todo o trabalho empreendido por Barthes ao falar sobre o olhar de sua mãe que representa para ele o punctum da foto não mostrada aos leitores– contamina os leitores do ensaio fazendo com que sejamos atingidos não pelo luto de Barthes (este lhe é único), mas pela forma como Barthes descreve aquilo que é indescritível.

Assim seria possível pensar que, tanto para Barthes, quanto para o narrador de O pai da menina morta, exibir a fotografia e a filha seria provocar em nós, leitores, o não-punctum, o não reconhecimento dessa ferida, seria expor o fato de que nem o olhar da mãe na foto omitida no texto de Barthes e nem a filha morta (presença ausente na narrativa de Ferro) podem exercer em nós o mesmo impacto de punctum exercido neles. E a consolidação da ineficácia deste punctum seria uma forma de matar, mais uma vez, aquelas que mantêm a ferida do punctum viva para eles. Aliada a isso, a força metonímica do punctum, ainda que o generalize – e porque o generaliza –, permite que ele reverbere para além de si mesmo, para outros objetos e afetos, invadindo a escrita e nos atingindo, nos fazendo quase entrever o olhar dessa mãe criança. E não seria essa uma estratégia do enlutado de fazer permanecer quem já se foi?

Trabalho de luto e metatextualidade em WandaVision

Antonio Caetano Jr.

Créditos da imagem: Divulgação

WandaVision (2021), uma série de TV hollywoodiana, fomentou discussões nas redes sociais e em fóruns na internet. Tal atenção deve-se, também, ao fato de que a história faz parte do lucrativo Universo Cinematográfico da Marvel, que adapta histórias dos quadrinhos da Marvel Comics para o cinema. Somado a isso, o caráter metatextual da série, e o luto que atravessa uma das protagonistas, foram pautas frequentes nos debates sobre a produção.

No percurso da minha pesquisa de mestrado estudando o romance O pai da menina morta, de Tiago Ferro, tenho me concentrado em leituras acerca do trabalho de luto e da autoficção, pois há no romance um narrador-escritor que escreve sobre sua vida — e sobre seu processo de escrita — em que elabora o luto pela morte da filha. Dessa forma, também acredito ser pertinente comentar alguns aspectos da série focando em um trabalho de luto que se dê pela escrita devido às seguintes razões: Wanda está em luto e, nesse processo, passa a ficcionalizar um modo de vida para si e para seu companheiro falecido.

Uma breve contextualização sobre WandaVision se faz necessária para este post: Wanda possui superpoderes, tais como os de moldar a realidade de acordo com sua vontade, enquanto que Vision, par romântico de Wanda, é um robô, de estrutura humanóide, dotado de sentimentos humanos. Em filmes anteriores ao seriado sabe-se que Vision foi morto em batalha, o que faz com que, no tempo atual da série, Wanda se isole da sociedade e crie uma realidade e um “novo Vision” para dividir com ela esse espaço. Tal “realidade” é constituída correspondendo aos formatos das chamadas “comédias de situação”, ou sitcoms (séries televisivas de humor que apresentam famílias e/ou amigos em situações corriqueiras, sendo A feiticeira e Friends exemplos do formato).

Dessa forma, a cada episódio somos expostos a estratégias técnicas e estéticas encontradas nas sitcoms à medida em que Wanda e o novo Vision vivem, através dessas estratégias, como personagens. Tais artimanhas culminam na série que nós vemos e na série criada e estrelada por Wanda, que está contida na primeira. Além do mais, a metatextualidade envolvida reforça ainda mais o caráter narrativo do que Wanda está vivendo, pois personagens que estão fora da realidade de Wanda interceptam,  como sinal de TV, o que se passa dentro da realidade criada por ela: justamente as sitcoms acontecendo. Dessa forma, os personagens de WandaVision conseguem assistir a série de Wanda, assim como nós, o público empírico.

E é para este detalhe que quero chamar atenção. Me interessa observar aqui os jogos estabelecidos com os gêneros narrativos em que as histórias são construídas. Será possível associar essa relação metatextual ao processo de elaboração do luto vivido pela personagem? No romance de Tiago Ferro vemos que o narrador é um escritor, e percebemos como este exibe seu processo de escrita (emails trocados com a editora; listas do que falta escrever; referências úteis ao texto; reflexões sobre escrita).

Já na série, Wanda demonstra paixão por sitcoms e comprova isso ao exibir técnicas por trás do gênero televisivo no seu trabalho de luto (filtros em preto e branco e em cores; mudança de diagramação da tela de um formato mais “quadrado” para um formato widescreen; roteiro; quebra da quarta parede; trocadilhos; risadas gravadas ao fundo das cenas). Assim, o que minha reflexão propõe é que o esmiuçamento e a exploração da técnica (seja ela técnica de escrita ou técnica televisiva) ajudam a, de certa forma, pavimentar um caminho para uma busca pelo que foi perdido. Em outras palavras, nas duas produções artísticas, tanto o trabalho de luto, a exibição da técnica, quanto a construção de sentidos elaborados pelos personagens estabelecem relações tais, que não se sabe exatamente onde começa um e termina o outro.

Em certo momento, Wanda é posta diante da seguinte pergunta: “O que é o luto senão o amor perseverando?”. Inclino-me, então, a pensar tais mobilizações no romance e na série como expressões da subjetividade do sujeito ao elaborarem um trabalho de luto que, por si só, é laborioso e perseverante, pois parte do desejo de um encontro impossível  — sempre evocado, mas nunca realizado plenamente —, do enlutado com o objeto perdido a partir dos entrelaçamentos, ou das reformulações, da realidade e da ficção.    

Ausência e trabalhos de luto

Antonio Caetano

Créditos da imagem: My Brilliant Friend: Season 2 Episode 3 “Chapter 11: Erasure”

“Vamos ver quem ganha dessa vez, disse a mim mesma. Liguei o computador e comecei a escrever cada detalhe de nossa história, tudo o que me ficou na memória”. É dessa forma que se inicia o romance A amiga genial, de Elena Ferrante. Com este primeiro livro, que compõe a tetralogia napolitana, acompanhamos os relatos autobiográficos da narradora que, já idosa, vê no desaparecimento voluntário de sua amiga de infância a oportunidade de antagonizá-la, pois determinada a narrar a história de suas vidas, pretendia “impedir” seu desaparecimento.

Em seu artigo Escrita, vestígio e ausência em A amiga genial de Elena Ferrante, Tatianne Dantas, através de uma abordagem psicanalítica, relaciona o ato e a decisão de escrever da personagem Elena “Lenu” Greco com o sentimento de perda após o desaparecimento de sua amiga Rafaella “Lila” Cerullo. Na opinião de Dantas, o romance traz “à tona o real de um encontro faltoso que se revelou a partir do trauma do desaparecimento”.

A escrita, desse modo, representaria o caminho através do qual é possível rearranjar a realidade, fazer com que o passado e o que se perdeu possam, de certa forma, serem presentificados. Essa leitura que associa experiência traumática e narrativa chama minha atenção, pois estou interessado em investigar textos autoficcionais em que os processos de escrita de si estão relacionados a um trabalho de luto. Roland Barthes em seu Diário de luto, afirma que, “O ‘Trabalho’ pelo qual (dizem) saímos das grandes crises (amor, luto) não deve ser liquidado apressadamente; para mim, ele só se realiza na e pela escrita”.

Mesmo que a tetralogia não possa ser considerada autoficcional, há um modo de ler os livros que nos faz pensar na relação entre luto e narrativa. Em A amiga genial, a narrativa se constrói por meio lembranças da narradora, da leitura que fez de textos de Lila confiados a ela, das informações passadas por terceiros. Poderíamos afirmar, então, que o que lemos na tetralogia é mais a “ausência presente” de Lila na vida de Lenu no momento da escrita, e menos a narração da vida delas no passado.

Ler a narrativa de Ferrante e pensar na afirmativa de Barthes me leva a considerar que o trabalho de luto está intimamente associado com a relação de um indivíduo com a ausência, não com a morte propriamente, já que a “ausência”  dialoga  de maneira mais evidente com aquele que ficou, com o enlutado, não com quem se foi, como geralmente ocorre na associação do luto com a morte de um ente querido. Trata-se, então, da reação à morte e à ausência.

Há várias maneiras de viver o luto, claro. Tampouco é nova a relação entre escrita e trauma ou escrita e luto. No entanto, me interessa mais pensar na autoficção como uma estratégia que pode se constituir não apenas como um trabalho de luto, mas que pode oferecer também ao leitor a oportunidade de acompanhar na narrativa o processo de reconfiguração de uma subjetividade, de um modo de ser e estar no mundo depois da perda de um ente querido, por exemplo.

Escrita e luto

Antonio Caetano

    Créditos da imagem: ‘Still Life with Skull, Leeks and Pitcher’, Pablo Picasso, 1945

O ano de 2020 certamente já ficou marcado mundialmente como o ano da pandemia do coronavírus. Como parte do combate à propagação do vírus, as medidas sanitárias recomendadas, somadas ao isolamento social, impactam certas lógicas de convivência social, proporcionando, por um lado, demandas de fala e de exposições de experiências (reportagens, entrevistas, lives, postagens em redes sociais, projetos, artes) e, por outro, o impedimento (ou modificação) de atividades sociais e culturais importantes, dentre elas, os rituais fúnebres.

Recentemente encontrei o Palavra no Agora, site criado pelo Museu da Língua Portuguesa, que abre espaço para uma espécie de ritual fúnebre simbólico, uma maneira de expressar o luto por meio da escrita. No site estão dispostos três espaços: em um deles há uma coletânea de trechos literários com a temática da dor da perda; em outro, resenhas de livros, filmes, músicas (também com a mesma temática) e há ainda um espaço denominado Escritos do público, no qual podem ser postados “os registros de quem encontrou nas palavras uma forma de alívio”.

Tais registros são textos variados, prosa e poesia, memórias e ficção. Segundo o próprio site, o objetivo é “ajudar as pessoas a atravessar esse momento complexo e mutante”. As narrativas que li no site me fizeram pensar sobre esse “eu” que, através da escrita, se faz presente e performa narrativas que o reconstituem na pós-perda.

Enfatizando a importância do caráter simbólico do ritual fúnebre, Miranda de Souza e Pantoja de Souza (2019), no artigo “Rituais Fúnebres no Processo do Luto: Significados e Funções”, afirmam que ele “fornece sentido à realidade, ajudando a simbolizar a morte do ente querido”. Ou seja, tais rituais seriam significativos no início dos processos de luto pois expressam, simbolizam e comunicam (para si e para outros) um encerramento de um período de vida, de um ciclo, de uma relação etc.

Lendo os registros ficcionais no site, imagino que escrever sobre essa perda pode representar não apenas uma forma de luto sobre a morte, mas também uma forma de reelaborar a própria subjetividade marcada pela ausência do ente querido.

Pensando assim, a seção Escritos do Público no Palavra no Agora me parece tanto um veículo que permite simbolizar, comunicar e expressar a perda de alguém –especialmente diante da impossibilidade de se realizar um ritual fúnebre adequado às necessidades dos viventes –  como pode oferecer ao sujeito enlutado a oportunidade de se reconstruir por meio da narrativa que elabora ali. Dessa forma, sendo o trabalho de luto um processo que auxilia o indivíduo a lidar com a perda, e que, por isso mesmo, é capaz de agenciar histórias, lembranças, memórias, registros sob a perspectiva do sujeito enlutado, é interessante pensar em como o luto também pode ser pensado como um processo de constituição de si, de (re)constituição de um sujeito que tem de lidar com a perda e a falta.