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“Tudo será como agora, só que um pouco diferente”

Luciene Azevedo e Allana Santana

Créditos da imagem:
The Clock by Christian Marclay 2010, 24hrs, Digital, Color, Sound.

Em post anteriores, já falamos da forma do romance-ensaio e tematizamos o caminho que seguimos em nossa investigação que visa identificar em narrativas contemporâneas algumas características dessa forma. Já em seus Ensaios, Montaigne afirmava uma forte ligação entre a construção de seu eu e sua obra e por isso acreditamos que uma porta de entrada para essa discussão pode estar na observação sobre a maneira como um sujeito vai se delineando à medida que a história se desenrola.

Mas como pensar essa relação em uma obra contemporânea? Vamos pegar como exemplo o romance 10:04, escrito por Ben Lerner.

Entrar na leitura dessa obra é como ser arremessado em um turbilhão de situações que à primeira vista negam relação entre si. Nesse sentido, a ideia de trama narrativa parece vacilar, tudo parece muito desamarrado, pois acompanhamos ao mesmo tempo situações que envolvem a negociação de publicação do mais novo romance do narrador (ainda por fazer), os preparativos que envolvem a sobrevivência da população nova-iorquina preocupada com a chegada de duas tempestades, a elaboração de um livro infantil sobre dinossauros e o drama pessoal vivido pelo narrador a respeito da dúvida sobre a doação de esperma para sua melhor amiga, que decide ser mãe a qualquer custo. Os diferentes temas parecem não apresentar relação alguma entre eles e ao mesmo tempo essa desconexão é harmoniosa, sendo amarrada à narração em primeira pessoa e a certa ambiguidade na identificação entre autor e narrador-personagem.

Nas primeiras cenas do livro, acompanhamos o narrador e sua agente literária em um almoço de comemoração pela repercussão da publicação de um conto publicado meses antes na revista New Yorker e que vale ao autor um adiantamento polpudo para escrever um romance que expanda o conto. Já aí, então, começamos a desconfiar da proximidade entre Ben Lerner e o narrador de sua história, a quem a publicação do conto na revista dá certa notoriedade e que também possui um romance aclamado pela crítica. Essa é a trajetória literária do próprio Lerner que depois de publicar livros de poesia, ganha reconhecimento mais amplo da crítica com o romance Estação Atocha e a publicação do conto The Golden Vanity na Revista New Yorker.

Aqui, já imaginamos a careta do leitor e sua impaciência: “mais uma obra em que o autor conta sua vidinha literária…” Mas talvez valha a pena assinalar que embora esse desvendamento do eu, quase sempre de um eu-autor, esteja presente em muitas obras contemporâneas, podemos apostar que os usos da primeira pessoa têm rentabilidade muito distintas. Em Lerner, arrisco dizer que há uma dicção ensaística capaz de produzir uma aliança entre a exposição da voz subjetiva e sua relação com o espaço público, nos termos em que Timothy Corrigan analisa a presença do ensaio na produção de filmes.

Para dar uma ideia melhor da maneira como estamos pensando a presença do ensaio imbricada à ficção em Lerner, vale a pena comentar o episódio em que o personagem principal e sua melhor amiga vão assistir à The Clock de Christian Marclay. A obra é uma montagem que recorta e cola tomadas de relógios ou trechos que mencionam a passagem das horas retiradas de cenas de filmes ou tevê editadas de modo a indicar exatamente a duração do filme no momento que é exibido. Depois de algumas horas dentro do cinema, o narrador checa o relógio, para ver que horas são, depois se pergunta porque teria feito esse gesto, já que o filme, a representação das cenas indica exatamente que horas são, a passagem do tempo durante a própria exibição das cenas. Essa pergunta marcada por certa estupefação do próprio narrador dá origem a uma reflexão sobre a relação entre a arte e a realidade:

“Eu fiquei sabendo que The Clock tinha sido descrito como a derradeira transformação do tempo ficcional em tempo real, uma obra concebida para obliterar a distância entre arte e vida, fantasia e realidade. Mas parte do motivo de eu ter consultado as horas no meu celular foi porque essa distância não havia sido quebrada pra mim; apesar de a duração de um minuto real e a duração do minuto de The Clock serem matematicamente indistinguíveis, eles eram minutos de mundos diferentes. Eu via o tempo no The Clock, mas não estava nele, quer dizer, eu estava experimentando o tempo como tal, não tendo experiências por meio dele como meio. […] Ao consultar o meu relógio para ver uma unidade de medida idêntica à exibida na tela, eu estava indicando que ainda havia uma distância entre a arte e o mundano.”

Nessa escrita semelhante a um “pensar sobre a experiência”, aparece uma reflexão sobre elementos importantes nas discussões sobre a arte hoje, de uma maneira muito particular e subjetiva, cujo efeito produzido na leitura é o de que a subjetividade do narrador, sua constituição como sujeito, vai sendo elaborada junto com o texto. Essa reflexão motiva o personagem a escrever “mais ficção”, e talvez seja o pontapé inicial para as demais reflexões (sobre as diferenças entre a realidade e a arte, sobre o que é se tornar um autor, sobre a exposição de si na literatura atual, sobre estar no mundo) que aparecem na obra. Talvez a chave para compreender essa maneira de estar presente nas coisas refletindo sobre o que é a ficção seja a epígrafe escolhida por Lerner que diz assim:

“Os hassidim contam uma história que diz que no nosso mundo por vir tudo será precisamente como é aqui: Como o nosso quarto é agora, assim será no mundo futuro; onde dorme o nosso filho agora, é onde dormirá também no outro mundo. E as roupas que vestimos neste mundo são as que também vestiremos lá. Tudo será como agora, só que um pouco diferente.”

Em vários momentos, ao longo da leitura, o narrador chama a atenção para pequenos mas sucessivos “rearranjos de mundo” que somos obrigados a fazer no nosso cotidiano e a que vamos nos acostumando na narrativa pela maneira como Lerner explora esse procedimento. Acredito que aqui nesse “procedimento” há algo de semelhante ao que Corrigan chama de “pensamento ensaístico” ao falar sobre a forma do ensaio no cinema. Essa nova lógica de organização expressa no romance também é um convite ao leitor para que assuma um posicionamento diferente diante da obra, da ficção que lê.

Um exercício biobibliográfico

Marília Costa

Leonilson- sob o peso dos meus amores 1990

Créditos da imagem: Leonilson – Sob o peso dos meus amores, 1990

Já há alguns posts venho comentando meu objeto de pesquisa, o romance Machado de Silviano Santiago. Hoje gostaria de falar um pouco sobre dois temas que sempre aparecem comentados criticamente quando se trata da narrativa. O caráter autoficcional e a dicção ensaística.

No romance Machado de Silviano Santiago, o narrador se apropria da dicção ensaística e da autoficção como dispositivo para tornar-se outro. Assim, faz de Machado de Assis ao mesmo tempo em que faz de si mesmo personagem de um romance, se auto representa sem compromisso com a verdade protegido pela etiqueta da ficção. “A força da autoficção é que ela não tem mais compromisso algum nem com a autobiografia estrito senso (que ela não promete), nem com a ficção igualmente estrito senso (com que rompe)”, conforme afirma Evando Nascimento.

 Nesse sentido, há o embaralhamento das fronteiras entre o real e o ficcional, o que dificulta a escolha do leitor entre o literal e o literário no momento de classificar a narrativa. O afastamento da verdade factual em paralelo à transgressão ao pacto ficcional é o ponto forte da autoficção, pois essa característica é responsável por fragmentar e desestruturar os gêneros literários, sem necessariamente pertencer a eles. A autoficção “participa sem pertencer nem ao real nem ao imaginário, transitando de um a outro, embaralhando as cartas e confundindo o leitor por meio dessas instâncias da letra.”, lemos novamente Nascimento afirmar.

Mesmo com a recusa de utilizar seu nome próprio na trama, não é possível deixar de reconhecer no narrador traços do autor. E embora sejam nítidas as relações entre vida e obra, podemos pensar que o que está em jogo no romance de Silviano Santiago não é seu caráter biográfico, mas sim a cultura brasileira como um todo. Nesse sentido, não haveria o investimento em uma biografia como mapeamento de uma vida privada (nem a do próprio Santiago, nem a de Machado), mas sim o que poderíamos chamar de uma biobibliografia, ou seja, uma narrativa de vidas tramadas por uma rede bibliográfica, construída a partir de referências da história intelectual do período, da história da cidade, uma vez que a história do Rio de Janeiro foi marcante para Machado de Assis, e, principalmente, pela tentativa de compor uma bibliografia de leituras do próprio Santiago, que leu, anotou e colocou na trama do romance as próprias leituras que fez das obras de Machado de Assis, as leituras de escritores contemporâneos ao autor, percorrendo ainda os indícios da biblioteca deixada por Machado de Assis.

É é aí então que podemos ver tal procedimento assumir a forma do ensaio, da dicção ensaística que passeia e elabora a memória da leitura da vida de Machado, de seu tempo e de sua obra.

O Ideal de sujeito e O Ensaio

Allana Emilia

four quarters

Créditos da imagem: Kang, Young Min – Four Quarters (2016). Disponível em: https://artsandculture.google.com/asset/four-quarters/BAE306BgufvHzw

 

No meu post anterior, comentei sobre a escrita de si em Montaigne e os efeitos que essa escrita traz para a forma do gênero. De acordo com Erich Auerbach, em “A condição Humana”, Montaigne parece dar conta de um ideal de sujeito que passa a ser o modo fundamental como a modernidade trata a questão. Para Auerbach, o caráter tateante e incerto da captura do eu em Montaigne, sua inconstância, é superado pela “unidade da pessoa” e tudo termina na “unidade e na verdade”.

Entretanto, Thelma de Souza Birchal, ao comentar em seu livro O eu nos Ensaios de Montaigne, produto de da tese de doutorado da autora, mais especificamente no capítulo “Sou eu mesmo a matéria de meu livro: a pintura de si”,  afirma não existir em Montaigne a expressão dessa condição humana ideal e única. Ao refletir sobre esse aspecto, Birchal toma a investigação sobre a representação do eu como o ponto de partida para discutir a leitura que Auerbach faz da obra do francês. Para a autora, o que é válido na leitura de Montaigne é a experiência reflexiva como fundamental para a construção desse sujeito, experiência essa elaborada através da escrita e da  investigação sobre como o “eu”, a subjetividade, se comporta frente aos acontecimentos da vida.

Embora concorde com a autora sobre a importância da experiência reflexiva na obra de Montaigne, não compro de todo a sua proposição de falha na construção desse ideal. No tocante à construção desse ideal de sujeito, prefiro a contribuição que Costa Lima dá sobre esse aspecto, em “Pressupostos para o estudo do retrato”, um dos capitulos do livro Limites da Voz.

Não é que o ideal de um eu estável não exista, afirma o crítico.  Entretanto, a tensão existente entre a busca por esse ideal de ser (que não é abandonado de todo por Montaigne) e a percepção da impossibilidade da descrição desse ideal traz à tona as dúvidas que o próprio autor possui acerca de sua empreitada. É o próprio Montaigne que chega a admitir a falha desse ideal em um de seus ensaios – “Do arrependimento” (2, III). E, ao questionar a possibilidade de alcançar a unidade e a verdade de quem se é, questiona se, de fato, vale a pena deixar essas reflexões tateantes no papel.

Dessa forma, acredito encontrar uma possível solução para essa tensão, entre um eu estável, capturável pela escrita e o fracasso da empreitada,  no próprio método utilizado pelo autor. Ao avaliar a si mesmo frente às questões elaboradas por outros, e refletir sobre sua postura a partir de suas próprias experiências, Montaigne constrói sua identidade em relação ao que é proposto pelo outro, escrevendo-se para os leitores. Sendo assim, sua obra é validada por possibilitar que seus leitores estabeleçam (quem sabe) a mesma postura que o autor: a de analisar a si frente a experiência de outro. E, claro, essas questões aparecem no procedimento adotado pelo autor ao tatear esse “eu” em meio às incertezas e está diretamente ligada à forma do ensaio.

O autor, o crítico, a ficção e o ensaio

Marília Costa

Yoko Ono2c “Sky TV for Hokkaido” (photo de Yoshihiro Hagiwara)

Créditos da Imagem: Yoko Ono – “Sky Tv for Hokkaido” – Yoshihiro Hagiwara

Durante muito tempo, o autor de literatura e o crítico literário assumiram papéis diferentes no campo literário brasileiro. Em linhas gerais, ao autor cabia o papel de tecer a obra e ao crítico a tarefa de comentar, analisar e teorizar sobre as narrativas. Alguns desses indivíduos realizavam as duas atividades em paralelo, porém em espaços distintos. O autor publicava seus textos em livros denominados como romances, contos ou poesias. O crítico transitava pelos jornais, revistas, blogs, livros teóricos, artigos e demais textos acadêmicos. Desse modo, não era muito comum que a ficção e o discurso teórico dividissem o mesmo espaço em uma obra literária.

Na contemporaneidade há indícios de um rompimento das fronteiras que separavam ficção e crítica literária. Eneida Maria de Souza, em seu texto “Notas sobre a crítica biográfica”, salienta que os limites entre as principais áreas de estudo da literatura não estão bem definidos pelas teorias contemporâneas. Desse modo, a literatura deixa de ser objeto de análise e passa a ser também espaço para analisar e teorizar sobre si mesma, “o próprio sujeito teórico se inscreve como ator no discurso e personagem de uma narrativa em construção”, afirma Souza. A crítica biográfica encontra-se delimitada entre a teoria e a ficção, o documental e o literário.

No século XXI deparamo-nos com escritores em cujas obras podemos identificar o hibridismo entre a crítica literária e a ficção, como é o caso de Ricardo Lísias, Cristovão Tezza, Silviano Santiago, entre outros. É possível ainda arriscar que o procedimento crítico no registro literário aparece a partir do uso da dicção ensaística e do recurso autobiográfico e autoficcional.

No romance Machado de Silviano Santiago, publicado em 2016, o narrador se apropria da dicção ensaística para tornar-se outro: “Transfiguro-me. Sou o outro sendo eu. Sou o tomo V da correspondência de Machado de Assis: 1905-1908”. Ao mesmo tempo, podemos notar uma aproximação entre narrador e personagem, principalmente em comentários críticos sobre o campo literário do final do século XIX e início do século XX, que lembram um ensaio, quando por exemplo tematiza-se a forma como Machado de Assis se concebe, se desenvolve, se aprimora e se estabelece como um dos maiores escritores brasileiros.

Em Machado de Santiago podemos perceber uma característica comentada pelo crítico argentino Reinaldo Laddaga em seu livro Estética de Laboratório e também presente em outras obras da literatura contemporânea. Ao resgatar o caminho que o conduziu a escrever o livro, Santiago forja a si mesmo e ao processo de escrita (aí emerge o que identificamos como uma dicção ensaística) aproximando-se do que Laddaga chama de uma “visita ao estúdio” de produção do autor e que torna possível aos leitores “formar uma ideia da pessoa e do pensamento do autor”. Embora saibamos que se trata de mais um artifício, pois, como o próprio Laddaga aponta “um artista se expõe enquanto realiza uma operação em si mesmo. O que mostra não é tanto ‘a vida (ou sua vida) como ela é’, mas uma fase da vida (ou da sua vida) que se desenvolve em condições controladas.” Desse modo, não deixa de ser interessante pensar que a dicção ensaística presente no romance Machado pode ser pensada como um artifício para reinventar a literatura.

Montaigne, o ensaio e a escrita de si

Allana Emilia

Portrait relief of claude pascal

Créditos da Imagem: Portrait Relief of Claude Pascal – Yves Klein (1962).

Ao falarmos sobre a forma do ensaio não é possível deixar de lembrar de Montaigne, talvez um dos primeiros a arriscar-se na aventura de tomar a si mesmo, a sua experiência, como objeto de análise. Até hoje, a ação de retratar a si mesmo foi um mérito alcançado por poucos escritores, ao menos se consideramos o que Virginia Woolf afirmou sobre o empreendimento do autor: “esse falar de si mesmo, seguindo as suas próprias veleidades, fornecendo o mapa inteiro, o peso, a cor e a circunstância da alma em sua confusão, sua variedade, sua imperfeição – essa arte pertenceu a um homem apenas”. Uma tarefa aparentemente simples (afinal, falar de si mesmo não é tão complicado, de acordo com a autora), que aos poucos se revela extremamente complexa.

Existem alguns empecilhos naturais a essa empreitada. Woolf ressalta, inicialmente, a dificuldade de expressão. Existe um certo abismo entre o que se pensa e o que se fala, que se torna ainda mais evidente quando nos propomos a escrever. A expressão pela fala apresenta algumas vantagens, principalmente se complementada pelos gestos e expressões faciais. Porém, a escrita apresenta protocolos próprios, que tornam essa expressão um tanto limitada. “[a escrita] Está sempre transformando homens comuns em profetas, e transmutando o andar naturalmente indeciso da fala humana na marcha solene e majestosa das penas”. Além da dificuldade de expressão, existe a complexidade inerente a ser o que se é, ou seja, ao tentar explicar como a alma se comporta, como muda, oscila, a cada momento se comportando de uma forma.

Para melhor expressar-se, Montaigne se vale da observação da própria experiência mesmo que esse “método” o leve a contradições.  Ao comentar sobre o procedimento de um pintor, afirma que ele escolhe o melhor lugar de cada parede para pintar um tema da melhor maneira possível, e depois preenche os vazios com efeitos outros que acrescentam variedade e originalidade à pintura. Então comenta: “O mesmo ocorre neste livro, composto unicamente de assuntos estranhos, fora do que se vê comumente, formado de pedaços juntados sem caráter definido, sem ordem, sem lógica e que só se adaptam por acaso uns aos outros” (I, 26). Além disso, parece deixar subentendido que sua proposta de escrever sobre variados assuntos serve a um outro propósito que não ao mero comentário: “Não os encaro apenas do ponto de vista do partido que deles tiro: comportam, por vezes, independentemente de minha intenção, a semente de uma matéria mais rica e ousada e revelam, indiretamente, algo mais requintado, tanto para mim que não quero exprimir mais, como para os que se encontrarem comigo” (I, 40).  Montaigne afirma empregar o juízo como um instrumento para avaliação de temas. Então, descreve novamente como se expressa sobre os temas: “Entre cem aspectos da mesma coisa, tomo um. E ora o debico apenas, ora o mordisco, ora vou até o osso. Escruto-o, não em larga superfície, mas tão profundamente quanto mo permite o meu saber, e as mais das vezes me comprazo em o encarar por um ângulo diferente do habitual” (I, 50).

Retratar a si mesmo é retratar um processo de mudança constante, das mudanças de comportamento inerentes ao sujeito que se é: “Meu estilo, espontâneo e familiar, não convém ao trato dos negócios públicos, mas é bem meu, de acordo com minha maneira de falar, que é substancial, desordenada, sincopada, de um tipo muito particular” (I, 40). Nasce aí um casamento ideal entre a forma do ensaio e o retrato de si? Montaigne tateante de si mesmo, parece responder que sim.

 

 

  • As referências das citações dos Ensaios vêm na ordem livro, ensaio, respectivamente.

O eu, o ensaio e o romance

Por Luciene Azevedo

Image from From Window, by Masahisa Fukase

Créditos da imagem: Yoko – From Window series – Japan – Masahisa Fukase (1974)

Para Chris Wampole, uma estudiosa do gênero ensaio, vivemos na era do que chamou de “ensaificação de tudo”. Segundo a americana, é como se o ensaio “tivesse se transformado num talismã de nosso tempo”, pois as características peculiares de sua forma, como a elaboração reflexiva e escrutinadora dos objetos sobre os quais se debruça, por exemplo, se encaixariam perfeitamente numa era como a nossa, em que as certezas são tão voláteis.

Não deixa de ser curioso perceber como as formas emergentes na modernidade como o ensaio e o romance nascem com a própria consciência da subjetividade: “Quero contar minha experiência a respeito desse assunto”, afirma Montaigne. A estranheza da proposição e do  gênero para o próprio autor e também para seus contemporâneos reside no fato de que a subjetividade é matéria nova, ousada e que por isso molda-se com conforto à liberdade sem método daquele que escreve “às apalpadelas, cambaleando, tropeçando e pisando em falso”, fazendo de si e do próprio processo de escrever um verdadeiro laboratório. Considerado como a primeira forma moderna que toma o eu como objeto de escrutínio, o ensaio experimenta hoje uma imbricação com textos literários cuja origem pode estar relacionada a um desejo de compreender as relações que o sujeito mantém com o espírito de seu tempo.

Se levamos em conta essas observações e nos voltamos para o romance, é possível então perceber que muitas produções contemporâneas assumem uma dicção ensaística por concentrarem sua atenção mais no relato do que na forma, na elaboração estrutural dos personagens e das tramas nas quais estão envolvidos. Em muitas narrativas o relato é a própria forma, a primeira pessoa que conta confunde-se com o autor, que funciona como um verdadeiro sampleador de temas, opiniões, reflexões. Assim, o flerte com a não ficção, com o relato da própria vida, pode significar apenas uma tentativa de reinventar o próprio literário, de imaginar novas formas de contar.

Por isso não posso deixar de me surpreender ao encontrar em Chklovski uma observação que caberia perfeitamente no presente. Diz o formalista russo em A terceira fábrica: “Há períodos na história da literatura nos quais as fórmulas estéticas perdem eficácia e formas artísticas como o romance parecem ter esgotado suas possibilidades. Em tais momentos, a literatura, ameaçada de ficar paralisada, tem de ultrapassar a si mesma para recobrar sua vitalidade: tem que invadir a não-literatura, arrastando para sua órbita matérias-primas vitais, empregando ideias extra-estéticas”.

Ao afirmar que uma forma de a literatura reinventar a si própria está ligada à maneira como “ultrapassa a si mesma” para dialogar com formas não literárias, Chklovski parece muito próximo a discussões travadas por nomes tão distintos e distantes como os da crítica argentina Florencia Garramuño, do paraguaio Tício Escobar ou do francês Nicolas Bourriaud.

Mas se não me convenço da resposta fácil de que tudo é mais do mesmo, prefiro então apostar que essa saída da ficção no presente (basta ler os “romances sem ficção” de Patrick Deville ou Mario Levrero e sua Romance luminoso, o norueguês Karl Ove Knausgaard e sua hexologia intitulada Minha Luta, O Impostor do espanhol Javier Cercas, as últimas publicações de Silviano Santiago, Mil Rosas Roubadas e Machado, e muitas narrativas de John Coetzee, W. G. Sebald, Emmanuel Carrère…) tem suas particularidades históricas, sociais e culturais associadas a nosso momento atual e por isso não me contento com a celebração da continuidade histórica marcada por variações.

 

O ensaio e a escrita de si

Por Allana Emilia

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Créditos da imagem: Fórum interdisciplinar de estudos sobre Montaigne. Em: http://montaignestudies.uchicago.edu/h/lib/montaigne/essais/1582.shtml.

Em Seu texto, É possível definir o ensaio? , Starobinski realça elementos que, a meu ver, são importantes para se pensar o ensaio. O autor analisa Os Ensaios de Montaigne e, a partir da análise da obra, elabora reflexões sobre as perspectivas do gênero e sua definição.

Um ponto salientado por Starobinski é o valor dado ao nome do autor na folha de rosto do livro, que vem em destaque se comparado ao título da obra. Segundo o crítico suiço, o título do livro traz consigo uma provocação: a ideia de que qualquer pensamento, qualquer experiência relatados por Montaigne, ainda que marcados pelo inacabamento, tornam-se valiosos a ponto de serem publicados. Além disso, como os ensaios não apresentam a ambição de figurarem como texto de doutrina, não representam nenhum mal, driblando assim a censura da época.

O segundo aspecto, talvez o mais interessante, destacado por Starobinski, são os objetos de escrita de Montaigne, ou seja, suas experiências, não apenas vividas ou lidas, mas vivências sobretudo de sua capacidade de julgamento sobre os diferentes assuntos de que se ocupa. Ao falar sobre questões do mundo, Montaigne ensaia o próprio intelecto.

Starobinski, então, diz que o gênero parece ter duas vertentes: Uma objetiva – a inspeção da realidade exterior – e outra subjetiva – que é a reflexão interna derivada da análise do externo -. Assim, Montaigne faz uma escrita indireta de si ao discorrer sobre questões de mundo que lhe chamavam a atenção.

Os dois pontos salientados por Starobinski interessam ao estudo do contemporâneo devido ao grande número de obras nas quais os autores usam a primeira pessoa, a reflexão sobre si como matéria-prima da construção de suas produções. Assim, o estudo sobre o ensaio pode sugerir uma perspectiva de leitura que nos ajude a compreender a guinada subjetiva na produção contemporânea.

A Literatura e o Ensaio

Por Allana Emilia

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Créditos da Imagem: O filósofo lendo – Chardin

 

Abel Baptista, em O desparecimento do ensaio, afirma que, do ponto de vista da teoria, a literatura é uma forma de conhecimento que possui alguma relação com a verdade, mas de uma maneira muito particular, que está relacionada com sua capacidade de refletir sobre si mesma. Uma maneira que a literatura possui de conhecer a si mesma é a partir da teoria, que, ao pensar os gêneros, as estruturas, a crítica, pensa a maneira de a literatura pensar sobre si mesma. Uma outra maneira, segundo a sugestão de Baptista, seria através do gênero ensaio. Daí para Abel, a “pouca importância” dada ao ensaio pela teoria, pois ambos viveriam em competição. E qual a importância de se pensar essa relação entre o ensaio, a teoria e a capacidade de autorreflexão da literatura?

Tomemos o panorama apresentado por Leyla Perrone-Moisés em O “fim” da literatura, um dos ensaios de seu último livro. Aí, a crítica elenca uma série de nomes e obras teóricas, produzidas no final do século XX, marcadas por um tom apocalíptico: A literatura em perigo, de T. Todorov; Os fins da literatura, de B. Levinson; O adeus à literatura, de W. Marx, entre outros.

Segundo Perrone-Moisés havia um pressentimento de que a literatura estava estagnada, de que existia “esse sentimento de que a literatura, como força ativa, Mito vivo, está, não em crise, mas talvez em vias de morrer…”, conforme o prognóstico de Roland Barthes. Mas segundo Perrone-Moisés, os “fins”, na verdade, são indícios de mutações, que permeiam a literatura no presente. As noções que foram construídas historicamente acerca da ideia de literatura foram mudando paulatinamente, o que pode significar para muitos críticos um declínio, mas diz respeito apenas à transformação de uma certa ideia de literatura: a ideia de literatura moderna, afirma a autora de Altas Literaturas.

Creditava-se esse suposto fim da literatura ao impacto das mutações tecnológicas, apontadas como responsáveis pelo cultivo das leituras apressadas. Entretanto, de acordo com Perrone-Moisés, “Nunca se publicou tanta ficção e tanta poesia quanto agora. Nunca houve tantas feiras de livros, tantos prêmios, tantos eventos literários. Nunca os escritores foram tão mediatizados, tão internacionalmente conhecidos e festejados.” Resta-nos um desafio: como ler e comentar a literatura produzida hoje, já que ela não é mais a mesma literatura produzida na modernidade?

O questionamento de Abel parece indicar uma alternativa possível. Talvez a investigação sobre a presença da dicção ensaística na ficção contemporânea, uma marca também das produções do alto modernismo, possa oferecer à teoria uma “maneira de proceder com argúcia e com imaginação” diante das produções literárias do presente.

Adorno e o Ensaio

Por Allana Emilia

adorno

Créditos da Imagem: Disponível em <http://cultura.culturamix.com/personalidades/filosofos/adorno-theodor&gt;. Acesso em: 06.09.2017

 

No post anterior, comentei o clássico ensaio “Sobre a forma e a essência do ensaio: Carta a Leo Popper” de Georg Lukács. Dando continuidade à minha pesquisa sobre ensaio como gênero, neste post eu me volto para outro ensaio clássico, “O ensaio como forma” de Theodor W. Adorno. Adorno inicia o ensaio se opondo à visão preconceituosa com que o ensaio era visto na Alemanha. De acordo com o paradigma epistemológico dominante, acreditava-se que existe apenas um tipo de saber válido, o saber metódico e organizado. Assim, como o ensaio não apresenta o mesmo caráter que a ciência e a filosofia, ele seria enquadrado como “irracional” e não como forma de conhecimento válido.

A partir de uma crítica ao positivismo, Adorno ressalta a liberdade de expressão permitida pelo ensaio, ocupando “um lugar entre os despropósitos”. O gênero ensaístico se caracteriza pela liberdade sem método com a qual maneja seus temas, sem se submeter a uma ordem pré-estabelecida. Ao invés disso, se baseia em um objeto transitório e reflete sobre questões que o transpassam, sem a pretensão de ser universal ou “originário”. O ensaio não apenas “registra e classifica” o objeto; vai além e o interpreta, não se atendo apenas ao que é dito no texto. Assim, opondo-se à polarização na qual o ensaio era visto na Alemanha, o filósofo alemão elogia a liberdade interpretativa como uma característica válida do pensamento.

Para expandir os sentidos e fazer sua interpretação, o ensaísta se permite uma deriva no olhar, que vem a moldar a leitura do objeto. Esse procedimento passa a impressão de ter sido emprestado da arte. Porém, o ensaio tem a pretensão de verdade e um meio de investigação específico (os conceitos), que a arte não tem. Portanto, Adorno critica Lukács em seu posicionamento de aproximar o ensaio da arte. Afirma que, quando Lukács os aproxima, reforça o preconceito e o estereótipo de que o ensaio não seria uma forma válida de conhecimento. Com essa crítica, subentende-se que Adorno propõe a legitimação do ensaio como uma forma de conhecimento, tão válido quanto os conhecimentos sistemáticos.

Adorno ressalta que também é válida a transmissão de conhecimento a partir da experiência. Como ele afirma, embora a ciência rejeite a experiência como critério válido do conhecimento, houve um tempo em que: “não passaria pela cabeça de ninguém, entretanto, dispensar como irrelevante, arbitrário e irracional o que um homem experiente tem a dizer (…)”. Assim, o ensaio recupera essa confiança na experiência dos indivíduos que a ciência ofuscou.

A abordagem “não-exaustiva” do ensaio sobre os conceitos visa a um estudo do objeto em toda a sua complexidade, ao invés de fragmentá-lo em partes compreensíveis. Depreende-se, então, que o ensaio anuncia o questionamento à completude e continuidade pretendidas pelo pensamento científico tradicional; propõe um pensar fragmentado, que se aproxime da realidade, também fragmentada. Desse modo, ao abordar a realidade de um ponto experimental, questionando conceitos e teorias sem a pretensão de chegar a uma conclusão, o ensaio se torna a “forma crítica par excellence”, sendo uma crítica da ideologia.

A partir do mergulho nos fenômenos culturais, o ensaio constrói relações entre imagens e conceitos, evidenciando questões ideológicas. A evidenciação das questões ideológicas se dá justamente a partir das observações do transitório, situando os conhecimentos no tempo e evidenciando “pontos cegos” nos conhecimentos legitimados.

Lukács e o ensaio

Por Allana Emília

Créditos da imagem: Grande Núcleo – Hélio Oiticica (1966)

Como já tematizado em alguns dos posts anteriores, pode-se perceber em parte da ficção contemporânea uma certa dicção ensaística. Essa sobreposição entre ficção e ensaio parece ser mais presente em obras consideradas autoficcionais, em que o eu narrador, muito próximo ao autor do texto, comenta sua condição como escritor e a elaboração do próprio texto que lemos. Partindo, então, dessa observação, minha pesquisa de iniciação científica quer compreender melhor as características do ensaio como gênero e sua emergência em meio a tramas ficcionais. 

O primeiro passo, então, foi ler o clássico ensaio de Georg Lukács, Sobre a forma e a essência do ensaio: Carta a Leo Popper. O objetivo principal do texto-ensaio-carta é averiguar se existe uma forma própria para o ensaio, se existe uma unidade para essa forma e se ela é possível. O autor também se pergunta se os escritos dessa categoria vão apresentar essa forma como autônoma – isto significa, nos termos de Lukács, – entender o ensaio não como uma forma científica, mas como forma artística, sem que, no entanto, seja uma forma de arte propriamente dita. Partindo dessa especulação, o autor defende o ensaio como gênero e elogia sua forma única. 

A princípio, o filósofo húngaro toma o ensaio e a crítica como sinônimos, aproximando-os à arte.  Frisa também que essa discussão não reflete o que, para ele, é primordial: “O que é o ensaio, que expressão almeja e de quais meios e caminhos se serve”, são as perguntas que gostaria de responder. Assim, Lukács chega à conclusão de que a aproximação do ensaio à arte nada diz sobre o questionamento acerca de sua essência, a não ser que haja um esclarecimento sobre o que significa distanciar o ensaio da ciência e aproximá-lo à arte. O ensaio é um gênero artístico, que não se limita apenas a “ser bem escrito”, como é também algo que causa um efeito indelével, “algo que é novo por princípio e não mudaria em virtude de uma conquista total ou aproximada de objetivos científicos.”. Para o autor, o ensaio almeja expressar uma perspectiva, um ponto de vista sobre a vida e o faz ao escrever sobre a arte, utilizando-a como instrumento de mediação. Porque o que é expresso pelo ensaio é a vivência intelectual que emerge por meio de uma escrita tateante, questionadora e reflexiva sobre um determinado tema, disparada pelo comentário sobre uma obra artística. 

Lucáks afirma que o começo do desenvolvimento do ensaio foi grandioso, pois Sócrates refletia sobre a vida vivente e vivia baseado no que pensava. Para o autor, o ensaio não visa a uma conclusão, não se prende a desfechos, apenas suscita reflexões sobre um determinado tema. Lukács, então, encontra um paralelo entre o que era feito nos ensaios modernos e nos ensaios de Platão – “Que seja dito para a nossa felicidade: também o ensaio moderno não fala de poetas e livros – mas essa salvação o torna ainda mais problemático”.  O problema está no fato de que, ao abordar diversos temas, o ensaio como gênero não está associado a nenhum em especial e essa multiplicidade no tratamento de assuntos dificulta a percepção de uma forma, sua caracterização como gênero. 

Talvez o ensaio e sua dicção tateante, escrutinadora e sua forma in-forme ajude-nos a pensar algumas formas da ficção contemporânea.