O personagem é a máscara do ator ?

Marília Costa

Créditos da imagem: Brecht, Antígona, 1948

Na minha pesquisa de doutorado, tenho me dedicado a estudar o teatro contemporâneo e suas relações com as escritas de si, especificamente, com a autoficção. Nesse percurso de pesquisa, o teatro clássico atua como um instrumento de orientação que fornece pistas para entender o funcionamento do teatro hoje.

O personagem e o ator são elementos importantes no teatro. Segundo Aristóteles, a tragédia tem sua origem nas festas dionisíacas, em que os devotos do Deus do vinho vestiam-se de sátiros, usavam máscaras, bebiam e dançavam até desfalecer. Nesse ritual, ultrapassavam o “métron” e tornavam-se “hypocrités”, ou seja, um ator. No teatro grego, o uso da máscara continuou, mas não mais como elo entre o humano e o divino, mas como forma de definir o personagem e seu caráter, indicando para o público o tipo interpretado pelo ator. Assim, a máscara servia tanto como elo com o divino como para transformar o ator em personagem.

Nesse contexto, o personagem teatral não se refere a um indivíduo, pois a máscara afasta o público da realidade factual e o direciona para o mito, impossibilitando o personagem de ser apontado como um sujeito específico, transformando-o em um ser ficcional que reflete um universo mítico. Na Poética, o filósofo grego estabelece como objetivo principal da mímesis a fábula, a estrutura narrativa que o autor vai utilizar, principalmente, valorizando a ordem causal dos acontecimentos, que deve respeitar os princípios da necessidade e da verossimilhança.

Na contemporaneidade, nos deparamos com práticas teatrais que ultrapassam o conceito clássico de personagem e colocam em xeque a definição, em que o ator entra em cena sem recorrer à “máscara”, sem representar um outro. Ao longo da história diversos artistas e teóricos (Meyerhold, Brecht, Grotowski) reformulam a concepção de personagem sem, no entanto, romper totalmente com ela, já que mantêm a ideia principal de que o ator representa ações que não dizem respeito a si mesmo, mas a um outro, sua máscara, sua persona encarnada no palco.

No entanto, desde a década de 60, propostas como Living Theatre e Open Theatre apostam na sobreposição cada vez maior entre ator e personagem. Podemos considerar que o projeto conhecido como Biodrama, idealizado pela argentina Vivi Tellas, é herdeiro dessas possibilidades, já que a dramaturga trabalha sobre elementos do real que são desdobrados no palco, cenas que envolvem personagens que não são atores, montadas a partir de suas experiências biográficas para tensionar realidade e ficção.

Muitos teóricos têm refletido a dimensão ficcional do teatro partindo de experimentos com as formas do teatro documental ou teatro do real. Óscar Cornago reconhece na ambiguidade entre o real e o ficcional o maior elemento do biodrama, que ocorre a partir polarização entre representação e não representação.

De acordo com Josette Féral, a simbologia teatral, ou seja, o pacto cênico, os rituais do teatro, fazem com que o público oriente o olhar para aquilo que é criado em cena e para aquilo que é referencial. Ela afirma: “A teatralidade vem da divisão entre o espaço cotidiano e o espaço da cena. Dentro do espaço cênico também tem uma divisão, sobre o que é real material e o que é criado na cena. E o olhar do espectador sempre faz ida e volta – como uma agulha – entre o real e a ficção. (…) A experiência teatral é você ver no ator tanto a experiência do real quanto a da criação, ao mesmo tempo”.

Nesse sentido, Renato Cohen traça uma distinção entre o eu-ritual e o eu mesmo do ator. Para o teórico, no palco, ao realizar as ações, mesmo o ator reivindicando para si o seu próprio nome, seus dados biográficos, ele utiliza uma “máscara ritual” que o difere da pessoa civil, não sendo possível dizer que ele interpreta a si mesmo: “à medida que o ator entra no “espaço tempo cênico” ele passa a “significar” (virar um signo) e com isso “representar” (é o próprio conceito de signo, algo que representa outra coisa) alguma coisa, podendo ser isto algo concreto – o qual tem-se nomeado “personagem””.

Os biodramas são interessantes para pensar a questão do enquadramento teatral. Pode o ator atuar em cena sem ser um personagem?  O enquadramento cênico é suficiente para transformar sua presença em um “personagem de si mesmo”?

Ficção e não ficção: escrevivência e fabulação crítica

Caroline Barbosa

Créditos da imagem: Soldados (2006), de Rosana Paulino.

A noção de escrevivência, criada por Conceição Evaristo, alcança hoje amplo reconhecimento na cena literária do presente e está fortemente entrelaçada às vozes de mulheres negras que se autorrepresentam evocando suas experiências para conectá-las coletivamente.

Um dos objetivos de minha dissertação de mestrado, defendida em março deste ano sob o título de “Escritas de si, escrita de nós: a tensão entre autoficção e escrevivência na literatura contemporânea”, consistiu na tentativa de ampliar a discussão sobre o termo, seu papel político e estético, pensando-o também em relação à produção de outros autores brasileiros, como  Jeferson Tenório e Geovani Martins, e a obras de literatura estrangeira como Garotas, Mulher, Outras, de Bernardine Evaristo.

Explorando um pouco mais a expansão da noção, observei que é possível ainda coaduná-la às questões sobre a autodefinição da subjetividade negra, a partir de bell hooks, e ao modo como Grada Kilomba pensa a descolonização. No campo da  historiografia, a fabulação crítica estimula a pensar as tensões entre o fato e a ficção na elaboração das vozes dos sujeitos negros, como o faz Saidiya Hartman.

Partindo da análise do corpo de Saartjie Baartman, conhecida como Vênus Hotentote, Hartman comenta os registros acerca da existência da jovem cativa nascida no sudoeste africano e exibida entre 1810 e 1815 como uma atração de circo na Europa por conta de suas características físicas. O que Hartman encontra nesse arquivo diz respeito apenas a cifras e a dados sobre as relações comerciais que destituíam o corpo de Baartman de qualquer memória ou subjetividade.

Aí, então, começa o movimento da fabulação crítica: para reparar a violência que permeia os dados de arquivo acerca desses sujeitos, a fabulação crítica surge como uma maneira de romper o silêncio e realizar um movimento de contra-História, pautada no que Hartman chama de uma “ética de representação histórica”, que se encarrega de reconstruir uma narrativa sobre a vida desses sujeitos (considerados apenas corpos para a força de trabalho ou para exibição pitoresca ou traduzidos em cifras financeiras). Assim, as narrativas são construídas com base nas lacunas que permeiam o arquivo já existente e propõem uma intersecção entre a ficção e a história.

Dois movimentos paralelos: na literatura do presente e na cena historiográfica atual. Essa hibridez entre o ficção e a não ficção, a literatura e a história, o estético e o político permeia tanto a escrevivência quanto a noção de fabulação crítica de Hartman. O que esse movimento nos diz sobre a subjetividade do sujeito negro, seus modos de falar e sobre a maneira como são ouvidos?  Essa questão  mobiliza a investigação que eu gostaria de realizar a partir de agora em uma nova pesquisa de doutorado.

Formas de dizer eu também na teoria

Luciene Azevedo

Créditos da imagem: Lo bil, Flow, 2016.

Basta dar um passeio pelas mesas de exposição das livrarias para nos darmos conta da invasão das narrativas em primeira pessoa na produção editorial recente. Seja reivindicando uma voz coletiva que fala em primeira pessoa em nome de outros e outras ou escarafunchando uma memória pessoal que resgata fatos do passado e põe à prova o sujeito que se revela na narrativa, a primeira pessoa invade a ficção e a desloca.

É instigante e renovador que esse deslocamento na direção da não ficção imponha um problema para pensar a associação comum da literatura com a ficção. Mas quando percebemos que essa recuperação do pronome “eu” também avança no espaço da teoria, da reflexão presente em textos que aliam o (auto)biográfico à matéria sobre a qual se debruça o sujeito que se intromete no texto, ocupando um lugar de destaque ao lado das especulações que lança sobre o objeto a que se dedica, tudo torna-se ainda mais interessante.

Como Beatriz Sarlo não deixou de perceber, é surpreendente como depois do recalque do sujeito subjacente a tendências estruturalistas e pós-estruturalistas que dominaram as ciências humanas no final do século XX, a primeira pessoa retome a primazia não apenas invadindo a produção chamada de literária, mas também outros campos de saber como a história, como nota Enzo Traverso ao mapear a incidência cada vez maior da primeira pessoa na produção historiográfica dos último anos: “O objetivo não era, portanto, questionar o princípio da objetividade, que permaneceu no cerne da disciplina, mas sim notar que a objetividade histórica exigia estudiosos maduros, conscientes do seu envolvimento pessoal, capazes de se verem no espelho em meio ao seu trabalho, alertas para o caráter ingênuo e ilusório do positivismo historiográfico.”

Esse gesto já aparece no cenário americano com o nome de autoteoria. O termo sugere que há uma guinada subjetiva presente na própria produção do conhecimento que envolve uma especulação sobre o sujeito que também é objeto de si mesmo, além do objeto que investiga.

Ao traçar uma genealogia desse campo de estudos, Laurie Fournier reconhece que os textos de feministas negras como Audre Lorde ou bell hooks, dentre outras, contribuíram para o pontapé inicial e consolidando o lema “todo pessoal é político”. Mais recentemente, textos como Argonautas de Maggie Nelson, que reconhece que retira o termo autoteoria de uma entrevista e do procedimento metodológico de Paul B. Preciado, ou as publicações de Chris Kraus têm sido tratados como formas exemplares de obras nas quais a primeira pessoa crítica não dissocia sua autobiografia, a contingência das pequenas experiências vividas no cotidiano, das discussões teóricas que empreende, muitas vezes na forma de comentários, digressões, especulações que se desviam da forma de conclusões bem acabadas, modificando, portanto, não só o conteúdo, mas também a forma de fazer e pensar a crítica, a teoria.

Me ocorre que o livro recém-publicado de Paloma Vidal, Não escrever [com Roland Barthes], que reúne uma série de palestras-performances da autora sobre a investigação que realizava sobre o projeto inacabado de Barthes para escrever um romance, pode funcionar como um exemplo brasileiro de autoteoria.

No entanto, pra mim, não importa a novidade da nomenclatura ou a existência de exemplos para ratificá-la, mas me interessa pensar a ativação de uma outra maneira de escrever e pensar a crítica e a teoria como uma mescla de interpretação, análise, posição crítica, experiência cotidiana e pessoal.

O que pensar desse retorno da primeira pessoa? Ao contrário da rejeição mais ranzinza que acusa um cenário de espetacularização e narcisismo generalizado, talvez essa guinada subjetiva na teoria signifique uma abertura para uma forma de pensar que “integra a própria prática de fazer teoria como forma de pensar”, como diz Mieke Bal, e dessa forma oferecer uma compreensão matizada, diversa, ambivalente do que significa falar em primeira pessoa hoje.

Apropriação e escrita não criativa 

Gustavo Nascimento

Créditos da imagem: Colagem de Toon Joosen, 2023, disponível em https://www.instagram.com/toonjoosen/

Na atualidade, observa-se a criação de músicas que utilizam o sample, modo de produção que consiste na remixagem de sons e colagens de trechos de outras músicas e/ou instrumentais em sua construção. O que no século passado ficaria preso às práticas dos DJs e a alguns estilos musicais como hip hop e funk ganha na cena contemporânea um espaço em diversas outras artes. Essa prática interessa a minha pesquisa para pensar na força que a prática da apropriação vem ganhando na atualidade também nas criações literárias.

 Um dos precursores do movimento da arte conceitual, Marcel Duchamp, causou grande repercussão na crítica das artes visuais ao se apropriar de um objeto comum, que podia ser uma roda de bicicleta ou um urinol, e levá-lo para o museu.

Na literatura, Kenneth Goldsmith propõe essa prática com base na apropriação de textos já existentes que sofrem uma mínima intervenção do autor. Goldsmith fez experimentos com a “cópia” de uma edição inteira do New York Times ou reproduzindo um dia inteiro de informes sobre o trânsito feitos por uma rádio. Em muitas produções atuais é fácil encontrar uma modulação dessa prática, pois muitas obras apropriam-se de falas jornalísticas, reportagens ou fotografias e de trechos inteiros de outros livros. De modo que o que Goldsmith chama de escrita não-criativa pode ser pensada também como uma prática calcada na apropriação de documentos.

“Desvario laborioso e empobrecedor o de compor extensos livros; o de espraiar em quinhentas páginas uma ideia cuja perfeita exposição oral cabe em poucos minutos. Melhor procedimento é simular que esses livros já existem e oferecer um resumo, um comentário”.

A frase de Jorge Luis Borges no prólogo de Ficções também pode criar uma espécie de genealogia para a prática conceitual da apropriação não criativa, já que Goldsmith defende, como faziam os artistas conceituais em relação às obras que criavam, que a escrita não-criativa é uma resposta  para a quantidade de obras que se apresentam no presente. Jorge Luis Borges pode ser uma fonte inspiradora também para pensar essa reapropriação e a questão da autoria e da leitura ao longo do tempo, pois com seu conto Pierre Menard, autor do Quixote brinca com a ideia de que Dom Quixote foi escrito, séculos depois por um outro autor: Pierre Menard.

Minha pesquisa de iniciação científica que está apenas começando quer enveredar por esse caminho de investigação para pensar o diálogo que se estabelece em obras que conversam com outras obras, com outros materiais e documentos que integram muitas produções literárias do presente.

Das páginas até a avenida

Lílian Miranda

Créditos da imagem: Desfile Portela, 2024

O carnaval do Rio de Janeiro em 2024 foi presenteado pela escola de samba Portela com um desfile baseado no livro Um defeito de cor.  Acompanhei a legenda na TV e ao longo do desfile já tinha decorado o refrão: “Saravá Kehinde! Teu nome vive! Teu povo é livre! Teu filho venceu, mulher! Em cada um de nós, derrame seu axé!”. A Portela repetiu o acerto de 1975 ao levar Macunaíma para avenida e escolheu o livro Um defeito de cor de Ana Maria Gonçalves como inspiração para a composição do desfile de carnaval deste ano e fez um trabalho centrado na maternidade da personagem Kehinde e optou por trazer o olhar do filho e poeta Luiz Gama (Omotunde, como na história do livro)  acerca de sua mãe com objetivo de retratar “a trajetória de uma negra matriarca que se confunde a tantas outras até os dias de hoje.”

A construção da história de Kehinde é uma forma de ficcionalizar o que os documentos não registram: a existência factual de Luísa Mahin, provável mãe do poeta Luiz Gama, mas também toda uma história silenciada de personagens que reaparecem resgatados do esquecimento. Os autores do enredo, Rafael Gigante, Vinicius Ferreira, Wanderley Monteiro, Bira, Jefferson Oliveira, Hélio Porto e André do Posto 7, compuseram também uma carta com a voz narrativa de Luiz Gama como se o poeta tivesse tido chance de ler e responder ao que Kehinde “documentou” para ele em Um defeito de cor. Em um dos trechos da carta, ele diz:

Luiza, minha mãe, todas as vezes que fui ao mar eu vislumbrava o manto de Iemanjá, enxergava as ondas tecer o pano que usava Durójaiyé, minha ancestral, raiz da nossa árvore. Todas as vezes que eu fui ao mar, imaginei a dor que passou. […] Nesta carta eu te chamo pelo nome, Kehinde, teu verdadeiro nome, pois sei que muitos ainda vão lê-la e espero que não te confundam. Uma mulher negra pode ser feita de muitas outras, mas não pode ser confundida, pois cada uma carrega sua própria história e devem ter o direito de contá-las. ( Portela, Carta de Luiz Gama à Kehinde, 2024)

Ao levar para o sambódromo um elemento que não está na narrativa de Gonçalves mas que, no desfile, funcionou como uma resposta à história de Kehinde e compôs uma excelente apresentação, a Portela conseguiu (re)apresentar e popularizar uma narrativa emblemática – para nossa história e para a ficção atual-, já que, poucas horas depois do desfile, o livro Um defeito de cor em uma plataforma de venda on-line e entrou para a lista dos mais vendidos do site. Além de levar a editora Record a emitir uma nota sobre a decisão de realizar novas reimpressões do livro.

Desfilaram com destaque, representando Luiz Gama, o ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania Sílvio Almeida e os atores Lázaro Ramos e Antônio Pitanga. Em cima de carros alegóricos também desfilaram a própria autora – Ana Maria Gonçalves – e a escritora mineira Conceição Evaristo.

A escola de samba valorizou passagens importantes narradas por Kehinde, com alas representando a chegada da personagem no Brasil, a revolta dos malês, o período em que a personagem vive no Maranhão com a rainha Agontimé para aprender mais sobre os voduns de sua família, além de representações dos orixás sempre presentes na história de Kehinde. Ao final do desfile, no último carro alegórico, intitulado também como “Um defeito de cor” , desfilaram dezesseis mães que perderam seus filhos para a violência do Rio de Janeiro, exibindo fotos, camisetas e itens pertencentes aos seus filhos perdidos. Embora não tenha sido campeã do carnaval este ano, a escola ganhou o estandarte de ouro de melhor escola de samba e emocionou o sambódromo. Eu mesma,  que assisti ao desfile pela televisão, pude sentir a emoção e admirar o diálogo criado entre o samba enredo e a literatura.

 O samba enquanto cultura popular e gênero musical genuinamente afrobrasileiro, que por muito tempo foi marginalizado e é símbolo de uma resistência cultural em virtude das inúmeras perseguições que sofreu desde o início do século XX, alinha-se aqui à literatura para compor uma realidade imaginada, que é também uma fabulação crítica.

“Se não escrevo as coisas, elas não encontram seu termo, são apenas vividas”

Samara Lima

Créditos da imagem: Françoise Janicot, L’Encoconnage, 1972.

Em “A dúvida cava seu sulco dentro de mim: e se o romance acabasse?”, uma coluna publicada em 2020 no jornal Le monde, Nathalie Azoulai problematiza a sua própria prática enquanto escritora ao comentar sobre as novas formas ficcionais e um certo cansaço do gênero romance por parte dos autores e leitores. Ao fazer isso, ela questiona o fato de “dizer a verdade sem recorrer à ficção”, ao mesmo tempo que enfatiza o paradoxo que existe em termos “não-romances que se leem como romances”.

A tensão entre ficção e relato autobiográfico parece bastante atual, mas o questionamento não é recente, pois, no início dos anos 2000, Annie Ernaux já estava definindo seu projeto literário através das seguintes características: “recusa da ficção e da autoficção”, a escrita “como busca da realidade” e a tentativa de inserir seu texto “entre a literatura, a história e a sociologia”. Neste sentido, as imagens fotográficas (reproduzidas materialmente ou descritas) desempenham um papel essencial em suas produções: com as fotografias retiradas de arquivos familiares, ela as questiona durante a história para atualizá-las e revelar a “realidade” em ação. De maneira controversa, são essas fotos que permitem a autora apreender a vida com precisão e objetividade .

O uso da fotografia por parte da escritora francesa em consonância com a sua recusa pela ficção me fez lembrar o livro O trabalho das imagens: conversações com Andrea Soto Calderón (2021), de Jacques Rancière, que eu já citei no post “O que eu vejo na foto quando olho para ela?”. Aí, o autor está menos preocupado em traçar uma definição ontológica sobre a imagem e mais interessado em entender o seu funcionamento, ou seja, o que uma imagem faz.

No decorrer da entrevista com Calderón, Rancière nos convida a enxergar a imagem não como um mero reflexo das coisas ou como algo que é fruto da intenção do autor, mas a compreendê-la como um dispositivo que busca criar uma contravisão, uma perturbação entre o dizível e o perceptível, a fim de construir novos sentidos e regimes de visibilidade.

Nesse mesmo livro, o autor associa a imagem visual, e seus modos de resistência, ao método da ficção. Segundo Rancière, a ficção não é o que se opõe à realidade cotidiana, tampouco resume-se a simples invenção de histórias ou a composição de personagens, como a literatura moderna buscou definir. Mas, sim, uma racionalidade e uma forma de construir relações e reorganizações do campo do visível.

Para ele, há um trabalho ficcional onde quer que seja necessário produzir sentido de realidade, e isso não significa dizer que tudo é relativo e que a realidade não existe mais. O fato é que a ficção, segundo o autor, não é mais privilégio do imaginário, ela é uma espécie de arquitetura que permite a criação de determinada aparência. O trabalho ficcional revolucionário, então, não é afirmar que essa realidade não é a realidade, mas racionalizar o que estava indexado no registro de um único real possível e mostrar que há várias maneiras de se construir o real.

Assim, tendo em vista a recusa da ficção por parte de Ernaux por acreditar que ela é sinônimo de invenção e mentira e seu desejo é inscrever seu texto numa verdade, será que não poderíamos tomar as proposições de Rancière para pensar seu trabalho também como uma produção ficcional que, ao fazer de suas experiências pessoais matéria literária, confere existência ao que foi vivido e explode a ficção dominante

Ferrante e a de-formação do romance

Allana Emilia

Créditos da imagem: Untitled, William J O’Brien, 2019

Uma das questões já discutidas por mim em posts anteriores é a relação entre Ferrante e o Bildungsroman. Ao longo da investigação, associei a tetralogia à tradição do romance de formação alemão, ainda que, de acordo com a discussão teórica proposta por Franco Moretti, a obra da escritora italiana pareça se desviar da tradição do gênero.

A discussão proposta por Wilma Maas, em “O cânone mínimo” me fez revisitar essa reflexão. A teórica brasileira afirma que, em Bildungsromane femininos,  o resultado é um fracasso em relação ao que a tradição alemã considera um bom desfecho: a integração social e a coerência em relação ao meio social. Nos exemplos femininos mencionados pela autora, ou temos a frustração da personagem em relação a sua integração social ou uma reformulação de si avessa às expectativas sociais. Ou seja, segundo Maas, em romances de formação de autoria feminina, o desfecho harmônico tradicional entre sujeito e sociedade não seria possível, já que a formação feminina avança na direção de questões de afirmação da individualidade que interferem em sua formação e na relação que mantém como mulher com o mundo exterior, o que afeta diretamente sua auto-educação e seu processo de descoberta.

No caso das narrativas de Elena Ferrante, o foco na relação entre duas personagens principais parece estabelecer um desvio ainda mais radical em relação à forma tradicional alemã. Pensando na relação entre esse esfarelamento da forma e as obras da autora italiana, retomei  o conjunto de conferências escrito por Ferrante e publicadas em “As Margens e o Ditado”. Aí, Ferrante comenta sobre sua produção textual da seguinte forma:

“Desenvolvi uma narradora em primeira pessoa que, superanimada pelos empurrões casuais entre ela e o mundo, deformava a forma que havia trabalhosamente atribuído a si mesma e, a partir daquelas marcas e distorções e lesões, extraía outras possibilidades inesperadas; tudo isso enquanto avançava ao longo da linha de uma história cada vez menos controlada, talvez nem sequer uma história, talvez um emaranhado dentro do qual não apenas o eu narrador, mas a própria autora, uma pura fabricação da escrita, estavam enredados”

Vejo aí, nessa observação, uma chancela para pensar  a deformação da forma tradicional do Bildungsroman em Ferrante. No entanto, me valendo aqui de uma orientação de leitura oferecida diretamente pela autora, me vejo diante de outra questão que me interessa: ao falar e escrever sobre sua própria obra, Ferrante, apesar do anonimato em que se mantém, não interfere demais na forma como a crítica lê sua produção?

“Infiel – a história da mulher que desafiou o Islã”: quando a autobiografia é um aval para xenofobia

Jô Santos

Créditos da imagem: AMAZONE-BEHANZIN, de omer ba, 2017. Disponível em: https://www.vice.com/pt/article/ywnddj/pintores -estao-a-confrontar-a-xenofobia-na-europa-em-convulsao)

Publicado em 2006, originalmente com o subtítulo “My life”, “Infiel – a história da mulher que desafiou o Islã” é uma autobiografia – ainda no formato tradicional reafirmado por Lejeune, na qual a literatura aparece no movimento da vida para o texto e conta a trajetória de alguém já conhecido – de Ayaan Hirsi Ali, uma ativista, escritora e política somali-holandesa.

A obra narra a vida, desde a infância na Somália, abordando temáticas extremamente relevantes para discussões contemporâneas, como a misoginia violenta em países sob domínio do fundamentalismo religioso e a profunda pobreza imposta aos Estados com grande desigualdade social. Os relatos são fortes e expõem as agressões sofridas por muitas mulheres muçulmanas que vivem sob o patriarcado religioso, impondo, inclusive a clitoridectomia – a mutilação genital que visa ao controle sexual e comportamental das mulheres.  Aos olhos da tradição, o pai de Ali conseguiu um casamento com o par ideal, forçando a aceitá-lo. Resistindo à ordem tradicional, a jovem foge para Holanda e tem sua vida transformada. É a partir daí que o livro começa a se tornar problemático.

A autora exalta a liberdade e o desenvolvimento da Holanda, da Europa e do Ocidente como um todo, e atribui as mazelas do seu país e de outros países à religião e ao jugo ao comunismo, influenciados pela antiga URSS. No entanto, a autora ignora a história da construção dessa riqueza que se deve, ironicamente, à exploração e à colonização de diversos países da África, o que gerou graves consequências e provocou o aprofundamento de desigualdades.

Ayann Hirsi Ali segue uma carreira política na Holanda e usa seu discurso contra o islã para angariar votos, atacando os princípios religiosos de Maomé e adotando o discurso da extrema direita em ascensão para defender pautas como o fim do salário mínimo e a redução do auxílio aos desempregados. 

“Quando se diz que os valores islâmicos são a compaixão, a tolerância e a liberdade, olho para a realidade, para as culturas e os governos reais, e simplesmente vejo que não é assim. No Ocidente, as pessoas engolem tais mentiras porque aprenderam a não ser excessivamente críticas ao examinar as religiões ou culturas das minorias, por medo de ser acusadas de racismo. E ficam fascinadas porque eu não tenho medo de fazê-lo.”.

Por ser um texto autobiográfico, a autora ganha “autoridade nativa”, fala de sua experiência e consolida o pacto autobiográfico, o que segundo Lejeune, criador do termo, dá credibilidade às afirmações e ideias disseminadas na obra. Mas o que  relata Ali quando fala de sua experiência?  Divulgando sua infidelidade ao Islã, Ali atua a favor do  cristianismo (ler “Why I am now a Christian Atheism can’t equip us for civilisational war”) e pela exaltação do Ocidente frente ao atraso dos países africanos. Aí, então, descortina-se outro problema, pois quando essa “autoridade” e essa experiência reforçam a xenofobia e assumem um posicionamento acrítico indicando apenas uma radicalidade construída sobre o avesso do que recrimina, as mazelas do mundo atual parecem se conformar ao que sempre foram.

 HIV/aids em O corpo recusado de Luiz Cecilio

 Ramon Amorim

Créditos da imagem: Andrew McPhail, Face (Detail from Performance), 2010

Tem sido comum a produção de relatos biográficos, por homens que se declaram como gays ou bissexuais, em que a abordagem da temática do HIV e da aids ganha centralidade. No livro O corpo recusado, escrito por Luiz Cecilio, é possível depreender a existência de um percurso paralelo entre a vivência do narrador e a história da epidemia que emerge no início da década de 1980.

Chama a atenção a posição privilegiada do narrador diante da epidemia e dos acontecimentos que surgem a partir dela. Como médico sanitarista e homem que vai se descobrindo como gay de dentro de um casamento homossexual, ele vislumbra a crise de saúde pública oriunda da aids ao mesmo tempo em que consolida a consciência da sua orientação sexual e busca formas de assumir isso publicamente.

Para a narrativa, essa posição possibilita um olhar singular diante do que acontece. Como homem que mantém práticas sexuais com outro homem, o medo da infecção torna-se uma constante: “As minhas primeiras paixões masculinas foram atravessadas por grandes dramas. O contexto era o da explosão da epidemia de AIDS e de tudo o que ela trouxe de preconceito.”

Esse medo da infecção diante de um contexto em que não havia tratamento efetivo para lidar com o HIV fica delineado no texto. A presença do vírus e da aids é verificada, principalmente, pela recorrência de mortes de pessoas próximas ao narrador, sobretudo homens jovens que praticavam sexo com outros homens. Essas mortes estão relacionadas a doenças oportunistas, assim como a suicídios causados pela vergonha de ter seu diagnóstico tornado público em um momento em que a doença era associada aos homens gays.

Diante da morte de quatro homens com quem o narrador teve algum tipo de aproximação afetiva/sexual, ele se vê diante do que chama de um cerco que se fecha sobre ele, culminando com a confirmação da sua infecção. Daí vêm os medos: de morrer ainda jovem, de ter sua condição sorológica exposta, da incerteza da eficácia dos tratamentos, ainda em fase experimental, das mortes de pessoas próximas e tudo aquilo que foi observado diversas vezes, em distintos canais midiáticos, por exemplo, durante as duas últimas décadas do século passado, principalmente.

Acompanhamos, assim, durante a leitura, o percurso do narrador que, diferentemente de tantos outros, sobreviveu ao período mais brutal da epidemia e conseguiu acessar os tratamentos mais consolidados para lidar com o vírus, o que possibilita hoje manter relacionamentos sorodiferentes (ou sorodiscordantes) e permanecer indetectável. Pode, na condição de médico e de paciente, observar a consolidação de formas de profilaxia disponíveis no sistema de saúde e o arrefecimento de parte do estigma que acomete as pessoas que tornam pública sua condição sorológica.

Por último, e não menos importante, é preciso observar que o relato é feito por um homem que chegou à velhice, já que ser portador de HIV e alcançar a condição de idoso não era uma possibilidade no início da epidemia. Produções como essa tornam-se possíveis sobretudo pelo avanço biomédico e farmacológico relatado no livro e se tornam excepcionais, pois relatos de sujeitos nessa faixa etária convivendo com o vírus são produtos relativamente recentes e raros no campo da produção de representação da doença e do vírus.

“Não-ficção especulativa” e Annie Ernaux: fabular ou decifrar uma vida?

Samara Lima

Créditos da imagem: Annemarie Heinrich, Autorretrato con hijos, 1947

No mês passado, Jô Santos, uma colega da pós-graduação e do grupo de pesquisa publicou um texto instigante aqui no blog chamado TRAJETOS DE UMA PESQUISADORA EM FORMAÇÃO: a complexidade da escrita de si em Annie Ernaux e Saidiya Hartman. Neste post, ela narra sua trajetória acadêmica e tenta uma aproximação entre duas escritoras contemporâneas que, a partir de universos distintos, desestabilizam as fronteiras de ficção e realidade ao lançarem mão da primeira pessoa para falar de si e sobre os outros: Saidiya Hartman e Annie Ernaux. O objetivo principal do texto foi analisar de que maneira a “não-ficção especulativa”, conceito proposto por Hartman, poderia servir como ferramenta de análise para a produção da escritora francesa Annie Ernaux. Hoje, gostaria de traçar um caminho diferente e comentar por qual motivo eu acredito que o termo não traduz a produção literária da autora.

De maneira resumida, o que a Hartman chama de “não-ficção especulativa” parte de sua observação sobre como a história dos sujeitos negros é constantemente resumida à violência e às razões que transformaram suas existências em mercadorias e cadáveres. Recusando reinscrever suas vidas na “cena de sujeição”, a autora aponta a fabulação com um gesto crítico capaz de compreender os sentimentos e as verdades vividas daqueles a quem foi negado espaço no arquivo, bem como dar a esses indivíduos a oportunidade de se tornarem os agentes de suas próprias histórias. A fabulação é um trabalho, então, que parte de documentos para, através da linguagem literária, dar contorno às suas vidas e criar um espaço propício para que elas possam prosperar.

É bem verdade que Annie Ernaux, muitas vezes, também parte de documentos, principalmente fotos retiradas de álbuns familiares, para narrar suas histórias. Mas será mesmo que a autora busca ensaiar vidas possíveis a partir desses materiais?

Vamos tomar como exemplo seu livro “A outra filha”, que é estruturado em forma de carta direcionada à Ginette, a irmã da autora que morreu aos 6 anos de difteria, dois anos antes de seu próprio nascimento. O fato é que a autora só descobriu a existência da garota aos 10 anos por meio de uma conversa de sua mãe com uma cliente. O livro é uma tentativa de mergulho no trauma familiar e no segredo de família, mas também uma forma de ressuscitar a irmã que nunca conheceu. Porém, como podemos escrever sobre alguém que não conhecemos e, por isso, parece ser “uma forma vazia impossível de ser preenchida com a escrita”?

A obra contém duas imagens, que são reproduzidas em meio à narrativa, da casa onde a narradora morou quando criança e algumas fotos descritas, principalmente de Ginette. O início da primeira parte, por exemplo, nos apresenta a atmosfera de uma infância onde o sigilo prevalece e avança em direção à cena traumática. Essa parte começa com a descrição de duas fotografias emolduradas de meninas colocadas lado a lado, uma foto de Ginette e outra da narradora, introduzindo o tema da duplicação e o dilema do filho substituto: a pequena Annie acreditava que ambas as fotos eram dela, ignorando as diferenças que existiam.

O curioso é que a fotografia confere uma espécie de testemunho à existência da irmã falecida, mas sua história está tão envolta em silêncio que Ernaux é incapaz de fazê-la existir fora da foto, ainda que ela tente, no decorrer do livro, apreender tal figura. Dessa forma, uma vez que ela não conheceu a irmã pessoalmente, não criou memórias o suficiente para que pudesse inclusive reconhecer a garota nas imagens, Ginette permanece sendo “uma imagem chapada” e nenhuma forma de conjectura sobre sua vida anterior é possível: “Não tenho nada que possa te fazer existir, exceto a imagem congelada das fotos […].”

No seu discurso de aceitação do Prêmio Nobel de Literatura 2022, “I will write to avenge my people”, Annie Ernaux comenta que seu projeto literário parte de histórias pessoais não para livrá-la dos segredos ou somente narrá-las, mas para revelar algo que só a escrita pode trazer à luz e à consciência das outras pessoas. Neste sentido, acredito que, ao contrário de Hartman, a escritora francesa não parece tentar preencher as lacunas através da leitura de outras histórias que surgem a partir dos arquivos, usando estratégias do romance para especular sobre suas existências, mas, sim, parece justamente investir nas fraturas, se não para reconstruir as cenas de sua memória, poderíamos dizer que é pelo menos para “decifrar a situação” e  “acabar com a imprecisão do que foi vivido”.