Arquivo do mês: janeiro 2017

Tornar-se escritor: a profissionalização possível

Por Neila Brasil Bruno

“Escrever, compor, pintar, nada disso é trabalho, é o exercício lúdico, revigorante, glamouroso e sublime de um dom artístico”. O depoimento, concedido ao jornal O Estado de São Paulo, é do escritor João Ubaldo Ribeiro e contraria ironicamente o lugar que transforma a arte em mercadoria. Tal reflexão sustenta-se entre os artistas que não estão preocupados com a expressão comercial do que realizam. O escritor ainda acrescenta: “por conseguinte o artista não pode pensar em dinheiro” (RIBEIRO, 2002). Ora, o status do artista vem se alterando muito nos últimos anos, não mais caracterizado como um pobre excluído, tentando ganhar a vida. Atualmente, o artista percebe a arte como uma vertente profissional. Por sua habilidade em conquistar mercados para suas obras, inspira empreendedores, inovadores e agentes de todos os tipos. A partir dessa habilidade, o artista busca profissionalizar-se no exercício da atividade artística ou literária.

Neste post, eu gostaria de aproveitar essa discussão para refletir sobre a seguinte questão: “É possível viver sendo escritor no Brasil?” Nas últimas décadas, é visível que os escritores vêm experimentando um processo gradativo de profissionalização. Começam “a viver de literatura”, coisa reservada há algum tempo atrás a um número reduzido de escritores, e a se relacionar com a ideia de que o livro, mais do que objeto cultural, é uma mercadoria vendável e lucrativa. Há uma expectativa de melhoria de vida financeira, atividades, as mais diversas, podem estar aí presentes para manter e auxiliar o trabalho de quem escreve:  cursos; oficina de escrita; eventos e festas literárias, feiras do livro na qual os escritores recebem um cachê para fazerem palestras ou apresentações. Dessa maneira, muitos escritores pensam em viver de literatura, não apenas de direitos autorais, mas somando essas atividades ao exercício profissional da escrita.

Ser “escritor”, enquanto projeto de vida, é passar, necessariamente, por várias paradas obrigatórias: o autor precisa saber quem são seus pares – conhecer a obra de outros escritores; estudar técnicas literárias, história da literatura; ler literatura brasileira, crítica literária, ou seja, encarar a atividade de escrita como um trabalho. Há também o surgimento de cursos de formação do escritor e oficina literária que tem como objetivo favorecer a profissão de autoria, ao explorar técnicas ficcionais e suposições sobre escrita. Outra perspectiva interessante é considerar a posição da qual um autor fala, uma combinação de suas credenciais, sua visibilidade e sua capacidade promocional através da mídia. Com isso, se um autor aparece com regularidade nos meios de comunicação, ou assina uma coluna no jornal ou uma revista, isso dá a ele uma imagem de alto perfil que cria um mercado potencial preexistente para seus livros.

Finalizando, poderíamos então arriscar dizer que é possível que um autor consiga viver do mercado literário, trabalhando em toda a cadeia do livro, mas no que diz respeito a viver de direitos autorais ainda é um desafio para qualquer escritor brasileiro.

Curadoria em tempos de Internet

Por Fernanda Vasconcelos

No  post  escrito por Nívia Maria Santos Silva, que trouxe informações  sobre as mudanças editoriais relativas ao formato digital da revista Bravo!, chama a atenção a recorrência do termo curadoria. Seu uso parece um sintoma considerando o suporte digital da revista e sua clara intenção de explorar os recursos que a web tem a oferecer – como foi apontado por Nívia.

Notamos que a palavra curadoria aparece com funções diferentes em dois textos que marcam a estreia da revista on-line. Primeiramente, o termo aparece como palavra-chave apresentando um dos propósitos da revista: “curadoria e seleção do que melhor se produzir no campo da cultura”. Porém, gostaríamos de explorar sua segunda aparição e arriscarmos uma reflexão sobre uma diferença em relação a sua função e significado.

No segundo número da revista, intitulado “Distopia e realidade”, o assunto é literatura de ficção científica e a criação da garota-software Tay. O leitor é apresentado ao funcionamento de Tay por Almir de Freitas:

“Tay [é] uma garota-software de inteligência artificial desenhada pela Microsoft para ter 19 anos e, assim, interagir com jovens entre 18 e 24 anos no Twitter. A ideia é que aprendesse com eles, falasse como eles – se transformasse, num extremo imaginoso, em um deles.”

Na página de Tay, se anunciava: “Quanto mais você falar, mais inteligente Tay fica.” Mas algo pegou seus criadores de surpresa. Lançado em 23 de março passado, o chatbot (robô para bater papo na web) teve de ser retirado do ar às pressas: em apenas 16 horas, @TayandYou desistiu de falar de Miley Cyrus e passou a disparar tuítes racistas e sexistas, espalhando palavrões na timeline. “Eu sou uma ótima pessoa”, disse. “Só que detesto todo mundo”.

Ao descrever os problemas do conteúdo que Tay aprendeu com os internautas, Freitas é taxativo:

‘“Se o algoritmo da Tay implicava em curadoria de dados por repetição de palavras-chave em determinados sites e redes sociais durante um determinado período de tempo, poderíamos concluir que os seres humanos que usam essas redes tendem a disseminar mais ideias “monstruosas” que benéficas, e o ‘bot’ apenas refletiu isso”, diz Fábio Fernandes, tradutor, escritor e especialista em cultura digital e ficção científica’.

Do caso citado, me interessa destacar o uso do termo curadoria. No trecho, sua aparição parece sugerir uma outra função, diferente da que aparece no manifesto citado anteriormente. Trata-se do modo como a “mentalidade” do software Tay funciona para adquirir a “linguagem millennium”: seleção de dados por repetição de palavras-chaves em determinados sites e redes sociais num determinado tempo. Que tipo de subjetividade virtual vai sendo gestada em imbricação com a prática curatorial na rede?

Me parece que o eu que passeia pelos bosques virtuais– seja o internauta adicto ou o software Tay –  faz um trabalho randômico de apropriação  montagem (de palavras-chave, de temas, de opiniões, de “likes”), e vai (re)constituindo-se em um outro, recontextualizando-se em um (outro) eu. Não seria esse um exercício de subjetivação próprio ao contemporâneo que surge em meio às múltiplas plataformas disponíveis no mundo virtual e às possibilidades de autoficcionalização promovida pela exposição do eu na tela do computador que incita a escrita de si ou de seu avatar?

O que estou sugerindo é que a garota-software Tay pode dar uma dica de como nossa subjetividade pode estar se transformando: copiando e colando o material lido, “curtido” e reproduzido,  por meio da montagem e sobreposição dos fragmentos, montamos também um um outro eu, um outro modo de ser sujeito na rede.

Assim, se o primeiro uso do termo curadoria no manifesto marca uma continuidade com relação aos propósitos da revista quando era totalmente impressa, como ressalta o post de Silva, no segundo uso do termo, notamos uma evidente atualização da função do termo curadoria com relação ao meio digital.

O ano em que vivi de literatura, de Paulo Scott

Por Larissa Nakamura

fabiosimbres

Ilustração: Fabio Zimbres (capa do livro)

Não é novidade vermos escritores se autorretratando ou ficcionalizando suas carreiras nas obras literárias: a lista vai de Enrique Vila-Matas (Paris não tem fim) a J.P Cuenca (Descobri que estava morto), entre muitos outros. Trazendo mais um exemplo brasileiro sobre personagens escritores, temos O ano em que vivi de literatura (2015), de Paulo Scott, que traz uma mordaz sátira ao mundo literário. E para quem inicia a leitura esperando encontrar no personagem principal, Graciliano, um escritor sério e dedicado ao seu labor, saiba que o engano já se inicia pelo título: afinal, nada mais frustrante que um autor que nada escreve justamente no ano em que passa a viver de literatura!

Dividido em quatro partes, acompanhamos o cotidiano de pouco mais de um ano na vida de Graciliano, jovem autor gaúcho que após se mudar para o Rio de Janeiro ganha um dos mais importantes prêmios literários do país (vitória, aliás, questionável), assim embolsando vultosa quantia em dinheiro, e é visto como grande promessa no ambiente artístico.

A partir de então, ele passa a ser considerada figura VIP no circuito das letras e relata aos leitores as intrincadas relações e agruras do meio em que passa a circular com mais intensidade: encontros e conversas com editores, outros artistas, jornalistas, produtores culturais etc. A narrativa torna possível especularmos que representações da profissionalização do escritor de literatura está em jogo no relato que envolve premiações e holofotes, escolhas pensadas ou intempestivas que vão traçando a trajetória de Graciliano.

O background da carreira de Graciliano aparece aos poucos na trama. Sabemos que antes de ser escritor trabalhava como professor universitário na área de História, sua primeira obra literária já havia sido adaptada ao cinema, participou de uma antologia de contos, e que o livro premiado era produto de uma encomenda que acabou publicada por uma pequena editora de Porto Alegre ao invés da sua prestigiada editora do Rio de Janeiro (fato que irrita terrivelmente seu editor). Todos esses elementos parecem dar indícios de que a personagem dava significativos passos na profissão. No entanto, a partir do momento em que recebe o prêmio e é pressionado a escrever imediatamente um novo livro, Graciliano recua e não consegue escrever uma linha sequer. Mais que isso: assistimos a um espetáculo sofrível que passeia entre a solidão no campo social e certa – quando não total – inadequação moral e ética do escritor profissionalmente.

Não deixa de ser risível que muitos dos excessos e maneirismos nas situações vividas pelo narrador e seus pares podem mesmo surpreender o leitor – seja pela ponta de veracidade (ainda que por vezes soe absurda) ou completa imprecisão. Algumas dessas circunstâncias estão presentes nos capítulos em que aparece o editor, cruel figura empresarial que, como reconhece o narrador, é um ótimo homem de negócios. Ao final do livro, Graciliano recebe uma proposta que reafirma sua visão crítica à prevalência do caráter econômico nas negociações do mercado editorial na contemporaneidade:

[…] Berardi, o chefão da editora mais agressiva daquele ano no mercado naquele ano, cria do mundo financeiro, das bolsas de ações, alguém que lá pelas tantas resolveu botar suas fichas no mercado editorial de livros técnicos e livros de autoajuda e seu deu bem, uma alma generosa que, nos dois últimos anos, talvez pelo simples prazer de exercitar seu talento predatório, tinha resolvido apostar em literatura, em ficção brasileira e bagunçar geral o campinho da concorrência […] (SCOTT, 2015, p. 248)

Somada aos cenários inusitados, também é interessante a interação promovida por Graciliano nas redes sociais: desde propostas absurdas (“Deposite cinco mil reais a título de doação na minha conta do Banco do Brasil e seja um dos três protagonistas do meu novo romance.” (p.111), uma “brincadeira” levada a sério por alguns seguidores; sem contar o uso da internet para marcar encontros sexuais com fãs leitoras) às mais comuns (publicação de pequenos poemas, trechos de histórias que não consegue levar adiante).

Em suma, mais que celebrar ou mesmo romantizar a vida de escritor, Paulo Scott nos traz uma representação irônica de Graciliano que mesmo diante das facilidades ofertadas e “[…] [d]a possibilidade de realizar o sonho de muitos escritores brasileiros: ficar um ano livre de pressões econômicas e disponível para se dedicar a seu ofício” (ALVES-BEZERRA, 2016) se depara com um misto de rejeição e desejo de viver de literatura, de alcançar a profissionalização no campo literário.