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Espaço biográfico e escrevivência

Caroline Barbosa

Créditos da imagem: Adão e Eva no Paraíso Brasileiro (2015), de Rosana Paulino.

Leonor Arfuch toma emprestado o termo espaço biográfico de Philippe Lejeune e realiza um corte sincrônico para relacioná-lo com o universo narrativo contemporâneo em que ”o eu se desdobra em múltiplas máscaras”. Dessa forma, ela não busca definir a especificidade dos termos que possuem incidência biográfica, mas tensionar como a ânsia pela presença e ”sua insistência nos mais diversos registros do discurso social” poderia apresentar como se configura a subjetividade em nosso tempo.

Para alguns, a reconfiguração dessa subjetividade possui um viés negativo já que temos grande exposição da intimidade, excesso de narcisismo e indistinção entre vida pública e privada. Esse tipo de crítica recai principalmente nas obras de autoficção, por ser um termo que vive em uma zona nebulosa e que desestabiliza o estatuto ficcional da narrativa ao mesmo tempo em que deixa em suspenso o caráter verídico do factual.

No entanto, termos como escrevivência também possuem influência do biográfico, mas parecem estar inseridos dentro dos aspectos positivos que Arfuch aponta sobre a guinada subjetiva. Textos em que vemos ”estratégias de autoafirmação, recuperação de memórias individuais e coletivas, busca de reconhecimento de identidades e minorias e afirmação ontológica da diferença”, elementos que estão associados ao termo de Evaristo, como comentei em posts anteriores.

Uma obra que podemos observar através desse viés é Solitária, de Eliana Alves Cruz.  Ela aborda a história  de Eunice e Mabel, mãe e filha que passam a maior parte de suas vidas em um quartinho de empregada.  A narrativa poderia ser pensada através da chave de leitura da escrevivencia por ter como foco a subjetividade do sujeito negro fora dos estereótipos estabelecidos; pela reconstrução da história contada sobre os corpos das mulheres afro-brasileiras através da tomada de consciencia racial de mãe e filha, além da circularidade temporal e a simultaneidade de vozes.

Uma das tensões entre o lado de dentro e o lado de fora no romance ocorre por meio da relação com um episódio trágico recente, a morte de Miguel, de 5 anos, em Recife. No capítulo, Eunice precisa terminar de preparar a refeição da festa de despedida de Camila, filha da dona da casa, e pede que a jovem olhe um pouco Gil, já que não havia mais ninguém no momento e a mãe dele, também empregada da casa, havia saído para comprar ingredientes. Infelizmente, Camila deixa o menino sozinho em um quarto e ele cai da cobertura do prédio.

Nessa cena, o corte que Eunice sofre na mão, que ocorre no mesmo momento em que a criança sofre a queda, estabelece um paralelo entre essa dor que é individual, mas também de todo um grupo. As narrativas parecem atravessar a tessitura textual e interpelar o leitor a pensar sobre o que ele vivenciou ao estabelecer relação com outros discursos que ecoam na sociedade.

Para Arfuch, o espaço biográfico pode ser útil para compreender a contemporaneidade e, através da relação com outras disciplinas, as configurações que temos hoje de sujeito, subjetividade, e espaço, por exemplo. Sendo assim, nos próximos passos da minha pesquisa pretendo discutir sobre como a multiplicação de vozes como a de Eliana Alves Cruz e Jeferson Tenório estão ecoando dentro desse espaço ao utilizar essa perspectiva biográfica que se aproxima do coletivo e que atravessa a esfera pública. 

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Não é autoficção (?)

Antonio Caetano

Créditos de imagem: Ilustração de Eva Vázquez. El Páís.

Ao ler recentemente uma entrevista dada pelo autor e editor Tiago Ferro ao Estadão, decidi escrever esse post com o intuito de expor algumas inquietações que tive. O pai da menina morta, primeiro livro escrito pelo autor, começou a ser pensado a partir de um texto publicado por Ferro na Revista Piauí, no qual descreve, comenta e elabora o luto pela morte de sua filha de oito anos. Há uma diferença crucial entre o artigo para a revista e o romance. No texto para a Piauí, os nomes próprios de sua mulher e das duas filhas são revelados, mas no romance, o narrador é “O Pai da Menina Morta” e os nomes dos demais integrantes da família não aparecem ou são modificados.

Na entrevista a que me referi acima, perguntado sobre sua resistência a considerar sua produção como autoficcional, Ferro afirma não considerar O pai da menina morta uma autoficção, tomando como base duas linhas de pensamento. A primeira linha é de que é inegável em seu texto “a volta do sujeito, aquele mesmo que os franceses haviam matado na década de 1970” (ou seja, o autor), tão em voga nos cenários de “super valorização da experiência” –  considerando, dessa forma, seu romance como um exemplo dentre tantos que enfatizam não a ascensão do gênero da autoficção, mas uma “mudança de ênfase na literatura contemporânea”. A outra linha de pensamento a que Ferro se refere diz respeito a uma caracterização básica para a autoficção: a de que o nome do narrador deve ser o mesmo do autor, exposto na capa. Ou seja, Tiago Ferro nega que seu texto seja autoficcional, mas não nega que esteja “valorizando a experiência” vivida ao escrever sobre o luto da perda da filha.

Tal cenário me faz pensar na pesquisa da colega Caroline Barbosa, em que ela reflete sobre “a recusa da autoficção”, pensando o Com armas sonolentas,de Carola Saavedra. Acredito que as razões que levam autores a negarem que seus textos sejam autoficcionais podem ser as mais diversas, mas  gostaria de expor algumas reflexões acerca do que poderia fomentar um discurso negacionista por parte dos autores em relação à autoficção.

Na entrevista, Ferro diz que a interpretação de sua obra como autoficcional resultaria em uma leitura necessariamente direcionada à relação dicotômica do real e do fictício, restringindo, assim, múltiplas interpretações do texto. Mas como distinguir, ou mesmo conceituar, realidade e ficção? A meu ver, são as maneiras restritas de lidar com esses conceitos, e consequentemente, com a autoficção, que restringem possibilidades de interpretação e reflexão sobre a obra.

Talvez sejam as concepções engessadas do que é autoficção, autobiografia, romance, que afastam ficção de não ficção, ao invés de considerá-las como partes complementares de todo e qualquer relato de si. Por conta da binaridade que se forma temos sempre de considerar onde começa um e termina o outro e a reivindicar e/ou rejeitar um e o outro. Talvez fosse mais interessante nos inclinarmos ao conceito de espaço biográfico na visão de Leonor Arfuch, no qual podemos considerar que a tensão entre o ficcional e o não ficcional “permite a consideração das especificidades respectivas sem perder de vista sua dimensão relacional, sua interatividade temática e pragmática”.  

Já que não é possível ler a obra “simplesmente” como romance (pois o personagem é muito colado ao autor), mas tampouco se trata de um relato autobiográfico, não seria o caso de investir em uma leitura especulativa sobre O pai da menina morta que se pautasse pela ótica múltipla de um espaço biográfico de fronteiras porosas para que assim possamos explorar a ambiguidade de sua condição?