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A literatura contemporânea e seus pactos

Nivana  Silva

Equilibrium-Under The Dust Studios - Londres 2011

Créditos da Imagem: Equilibrium – Under the Dust Studios (Londres, 2011)

No processo de pesquisa e de escrita sobre o contemporâneo, frequentemente estamos diante das consequências relacionadas à análise de objetos literários, os quais, a despeito da denominação, ultrapassam os contornos daquilo que, na modernidade, se convencionou a ser chamado de literatura. Uma das consequências está relacionada à sensação de insuficiência que certas noções e terminologias nos trazem para lermos, teoricamente, esses objetos, pois eles mobilizam questões que indicam a improdutividade de impor um arcabouço moderno para pensar tais “frutos estranhos” – usando a expressão de Florencia Garramuño – e, ao mesmo tempo, sinalizam a impossibilidade de prescindirmos de uma tradição que está bastante consolidada.

De modo específico, me chamam a atenção dois pontos que tocam na inserção do não literário na literatura e que não deixam de estar conectados. Primeiro, o questionamento do estatuto ficcional de muitas obras (substantivo que também acaba sendo posto em xeque nesse contexto) e, em segundo, a necessidade de problematização das implicações éticas que emergem de algumas manifestações do contemporâneo.

Tenho pensado que as interpretações e apropriações críticas de diversos desses textos requisitam um exercício de leitura que parece extrapolar os limites do pacto ficcional e colocar em cena elementos que, além de muitas vezes encontrarem-se exteriores ao universo literário, estão fundidos à própria figura autoral, não somente àquela que atua no campo e performa máscaras e posições de sujeito, mas também ao que poderia ser chamado de autor empírico, que arrasta de roldão para dentro da obra os supostos fatos sobre sua vida.

E é aí que a questão ética pode ser alvo de reflexão, principalmente quando essas menções biográficas se capilarizam da instância do “eu” para a do “outro” e põem em tensão as fronteiras entre o público e o privado, revelando pessoas e situações, ligadas a referências rastreáveis fora do literário, no interior de histórias recorrentemente chanceladas como (auto)ficção. A título de exemplo, basta lembrarmos de alguns casos envolvendo a exposição da intimidade alheia na literatura e que têm final trágico, como a acusação pública feita a Serge Doubrovsky de que a morte de Ilse Doubrovsky, com quem era casado à época, teria sido provocada pela leitura da narrativa de cunho autoficcional – Le Livre Brisé – que trazia detalhes do alcoolismo da mulher.

No Brasil, Ricardo Lísias fez circular por e-mail, em uma lista de “admiradores de literatura”, uma carta de resposta a uma suposta intimação judicial (que aparece anexada à carta com a assinatura dos advogados e da demandante). Depois da publicação de Divórcio, que relatava detalhes do fim do casamento do protagonista que mantém o mesmo nome do autor, sua obra foi questionada eticamente pela exposição da intimidade que pertence também à outra pessoa envolvida, já que havia rumores de que o autor tinha se separado recentemente. Um dos elementos que atravessa esses exemplos e tantos outros da literatura contemporânea parece ser o mecanismo da referencialidade, o que reverbera nos protocolos de leitura das obras.

Nesse cenário, talvez seja possível levantar a hipótese de que tais expressões literárias têm colocado em conflito a história contada com a ideia de verdade, o que vai de encontro à definição do ficcional como entendida na modernidade, em que a “pretensão de verdade e uso da ficção não estavam em contraste: os escritores descobriram que a validade geral do romance dependia da natureza explicitamente fictícia de seus detalhes”, como afirma a crítica inglesa Catherine Gallagher no ensaio intitulado “Ficção”.

O que estou tentando dizer nessa breve reflexão é que a natureza de muito do que ainda é chamado de ficção hoje tem requerido do leitor um exercício que frequentemente faz minar o conhecido pacto ficcional – que nos faz aceitar o texto literário como internamente coerente e verossímil, independente de uma referencialidade externa – já que traz à tona elementos que forçam o textual na direção de um “fora” do texto.

No entanto, por mais que o referido pacto se apresente de outra maneira (ou até inexista do modo como tradicionalmente o conhecemos) em um bom número de exemplos da literatura contemporânea, ainda nos falta uma ancoragem teórica consolidada para analisarmos o fenômeno, e nesse lugar reside a sensação de insuficiência à qual me referi no início do post. Usar o termo ficção para obras que fraturam o perímetro da autonomia estética ainda é uma confortável saída, embora saibamos que é menos frutífero nos debruçarmos sobre a aplicação da terminologia, do que problematizar a questão e tentar renovar as chaves de leitura.

*Este texto foi modificado em 23/02/2021

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A crônica e a conversa

Vanessa Ive

Joan Miro - Blue Labyrinth, 1956

Créditos da Imagem: Joan Miro – Blue Labyrinth, 1956

Nas tentativas de definição da crônica, recorre-se, quase sempre, à palavra conversa. Eça de Queirós a define como “conversa íntima, desleixada”. Clarice Lispector, como “conversa, um resumo de estado de espírito”. Assim, despretensioso, o gênero é concebido, por muitos cronistas, como uma “prosa fiada”, uma “arte da desconversa” – o dizer muito como quem não diz nada. Por isso, o cronista escreve com a presunção de um sujeito ouvinte, o que torna o diálogo com o leitor um traço presente desde os seus formatos originais, seja de modo direto por meio de interlocuções e vocativos – como bem fazia Machado de Assis no auge dos folhetins, seja pelo tom coloquial assumido no texto, subentendido como um uma forma indireta de interação.

Por diversas vias, a crônica tende a ser um gênero mais próximo do leitor. Por conta disso, numa época em que os leitores ainda escreviam cartas aos jornais, era recorrente a chegada de correspondências endereçadas a cronistas, com comentários sobre as publicações ou, até mesmo, como consultório sentimental, a exemplo da crônica Meditações sobre o amor (1947) – uma resposta de Rachel de Queiroz à carta de uma leitora que lhe pedia conselhos amorosos.

Hoje, essa “conversa” entre cronista e leitor é feita através de postagens em sites e redes sociais. As ferramentas oferecidas pelas plataformas da web redimensionam a participação dos leitores que, além de comentarem os textos publicados de modo quase imediato à publicação, podem disseminar as crônicas, recriá-las e parodiá-las. É o caso da crônica Desculpe o transtorno, preciso falar de Clarice , de Gregório Duvivier, publicada no Jornal Folha de São Paulo, em setembro de 2016. O texto rememora detalhes de um relacionamento encerrado que foi rapidamente associado, pelos leitores,
ao término do casamento do cronista com a cantora Clarice Falcão, ocorrido em 2014. Logo após a publicação, a crônica viralizou na internet, acrescida de comentários e palpites sobre o relacionamento vivido pelo casal.

A crônica de Gregório Duvivier inspirou a produção de outras versões do texto. O site de sátiras Piauí Herald postou uma versão “escrita” por Michel Temer, intitulada Desculpe o transtorno, preciso falar sobre o Cunha . E vários outros internautas pegaram o mote e escreveram versões da crônica de Duvivier. Como disse Octavio Paz, a leitura “é uma repetição – uma variação criadora – do ato original”. E a circulação da crônica na internet potencializa o gesto de escuta-escrita-conversa, próprio do gênero, e sua reterritorialização. Talvez, então, possamos pensar a dinâmica da conversação, apontada como característica do gênero por muitos cronistas a partir da dinâmica dos novos modos de produção e recepção do gênero na internet.

Uma reflexão sobre a pesquisa

Larissa Nakamura

EPSON MFP image

 

Crédito da Imagem: Grant Snider

No final do mês passado, defendi meu trabalho intitulado “A profissionalização do escritor entre a literatura e o mercado”, uma reflexão que teve início ainda nos tempos de graduação. Fazer uma análise do caminho percorrido até aqui me traz a sensação de dever cumprido por ter escolhido um tema que, muitas vezes, parecia fugidio demais para mim e para a própria comunidade acadêmica. Mas voltemos ao começo.

Ainda na graduação, momento em que realizava minha iniciação científica, o tema da profissionalização foi sugerido pela orientadora. Meu projeto se resumia a tentar montar um perfil do autor Luiz Ruffato a partir da leitura e análise da recepção crítica de suas obras (resenhas em cadernos literários e revistas acadêmicas, trabalhos acadêmicos, divulgação na grande imprensa, entrevistas) e de dois livros ficcionais do escritor. Com o desenvolvimento da pesquisa, em uma segunda etapa, a sugestão para considerar a profissionalização como um veio de pesquisa me instigou a ampliar meu olhar sobre o campo literário brasileiro. A partir de então, dei início às primeiras leituras, que me acompanhariam até o mestrado. Mas havia ainda problemas que não pude resolver em tempos de graduação: foram insuficientes as referências bibliográficas coletadas e lidas, e eu ainda lutava para entender exatamente o que era a profissionalização do escritor.

Passado o processo de seleção, já como aluna do programa de pós-graduação, teria tempo para me dedicar inteiramente ao meu tema escolhido. O projeto inicial passou por mudanças necessárias para fugir da minha zona de conforto e enfrentar desafios maiores: ao invés de investir minhas energias na investigação da carreira profissional de um autor específico (Milton Hatoum e Luiz Ruffato, que eu já conhecia bem), me voltaria à investigação das condições de profissionalização do escritor brasileiro nas últimas décadas, tentando traçar um breve panorama histórico da profissionalização no Brasil, para discutir a intrincada relação entre a arte e o mercado.

Com um assunto tão atual, mas ao mesmo tempo, tão pouco discutido, comecei a encarar alguns dos empecilhos que viriam à frente. Como afirmo na dissertação, o próprio termo “escritor profissional” constitui um problema e definir a profissionalização, é um obstáculo tanto para os teóricos que se debruçam sobre o assunto quanto para os produtores culturais que movimentam a vida literária. São diversas as razões para essa dificuldade, como, por exemplo, o limitado número de referências bibliográficas que se detêm especificamente no tema, além do fato de a discussão sobre a profissionalização dos escritores ser, de modo geral, ainda controversa e pouco tratada no espaço acadêmico devido ao envolvimento da arte com a lógica econômica.

Diante desse problema, busquei auxílio teórico também em outras áreas, me esforçando para dar conta da complexidade da profissionalização, como a sociologia e as ciências políticas. As reflexões que propus nos posts do blog foram também de imensa ajuda, serviram como necessário exercício de escrita e para ir “tateando” os assuntos afins à pesquisa, as maiores inquietações do momento e que poderiam reverberar no momento da escrita da dissertação. Em especial, os posts “ Literatura e vida literária: censura, cultura e profissionalização ”, “ O ano em que vivi de literatura, de Paulo Scott ”, “ Literatura e profissionalização ”, “ As agruras de um poderoso editor ” e “As oficinas literárias e a profissionalização do autor” foram posteriormente expandidos e incorporados ao meu texto final por tratarem de questões imprescindíveis à pesquisa, além de tocarem na problemática central sob óticas diferentes, tornando-a mais complexa, mais ramificada.

Os desafios foram inúmeros e montar o quebra-cabeça, ou seja, escrever a dissertação, o que envolve não apenas a problematização das referências bibliográficas selecionadas para discussão, mas sobretudo a maturação e exposição das minhas próprias ideias em relação ao tema, foi apenas mais uma peça no grande processo da pesquisa. Sobre a dissertação, cada capítulo e subcapítulo do trabalho final foi pensado de modo a guiar o leitor pelas múltiplas facetas que a profissionalização guarda, respeitando a complexidade que o tema possui. O primeiro capítulo, separado em dois subcapítulos, buscou discutir em que consiste a profissionalização literária, considerando a abordagem de diferentes teóricos, além de apresentar uma breve trajetória da profissionalização literária no Brasil. O segundo capítulo, também dividido em dois subcapítulos, baseou-se na coleta de entrevistas de escritores, na tentativa de apresentar as posições/concepções de diferentes agentes do campo literário sobre a profissionalização, discutir as instâncias responsáveis por sua promoção (a participação em diversos eventos literários, as oficinas de escrita criativa, os prêmios literários etc.), enfim, as dinâmicas do próprio campo literário. Por fim, no terceiro capítulo, a partir da
análise das obras O ano em que vivi de literatura (2015), de Paulo Scott, e Ninguém (2016), de Ieda Magri, promovi uma discussão sobre como o tema da profissionalização
é abordado dentro da literatura em relação às questões discutidas em capítulos anteriores.

Passado um mês desde a defesa, o sentimento de que a tarefa foi cumprida torna-se cada vez mais sólido e também a esperança de que o trabalho (em breve disponível no repositório institucional da UFBA) poderá ser útil para outros pesquisadores que queiram dialogar e que se disponham a enfrentar os desafios colocados pelo passado, os que permanecem no presente e os que surgirão aos estudiosos futuros que continuarem acreditando que o estudo e a investigação valem  a pena.

Machado: a convulsão como forma de resistência

Marília Costa

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Créditos da Imagem:  Stephen Gill, Untitled (Matt), from the series ‘Talking to Ants’, 2009-2012

No romance Machado de Silviano Santiago, publicado em 2016, o narrador-personagem tece a narrativa de modo que a epilepsia de Machado de Assis é a engrenagem que movimenta a escrita. Segundo a voz narrativa, a doença é uma força motriz diretamente relacionada à força artística do grande escritor, que “não se contenta com as meias medidas em arte. Estabelece metas cada vez mais inalcançáveis que restabelecem no homem o estímulo indispensável para que o trabalho artístico seja levado a cabo de modo a não deixar coração insatisfeito entre os futuros espectadores”, lemos no romance. Assim, a doença, que poderia ser entendida como uma maldição, ressalta e define não só a personalidade do escritor, mas é um divisor de águas de todo seu processo criativo.

Carlos Laet, um dos personagens do romance, ao refletir sobre o mal que acomete o fundador da Academia Brasileira de Letras, reforça o mote da doença como uma espécie de metáfora para a criação artística: “A beleza artística é uma forma arrogante e salutar da doença que devasta o ser humano. O corpo enfermo sobre-excede a si pelo objeto que ele modela de modo insano e torna sublime”.

Sílvio Romero foi um dos primeiros leitores de Machado de Assis no século XIX e um dos principais críticos da produção literária do proeminente escritor brasileiro, e por muitos anos dedicou-se a explicar sua repulsa às obras machadianas e a engrandecer a suposta extraordinariedade de Tobias Barreto, valendo-se do biografismo para caracterizar a epilepsia de Machado como uma falha no sistema nervoso que afetava a produção literária do autor, o que, na versão do crítico, justificava o caráter digressivo, as pausas, os capítulos curtos do estilo do bruxo do Cosme Velho, associados por Romero a soluços, espasmos que aludiam às crises convulsivas como sintomas da doença.

Antonio Negri, no livro Os rastros da multidão, traça um panorama sobre os modos de resistência na sociedade pós-moderna e constrói o conceito de monstruosidade – tudo aquilo que é instável, singular, incompreensível, que perturbe a ordem é ameaçador, portanto, monstruoso.

Podemos estabelecer uma relação entre a noção de monstruosidade em Negri e a doença de Machado compreendida como uma resistência. Silviano Santiago chama as crises epiléticas de Machado de “mortes passageiras”, penso que tais episódios abrigam a propensão natural do autor de Dom Casmurro para a desconstrução social e literária que ele empreendia ainda nos últimos anos de vida, devido a insatisfação com o suposto progresso alavancado pelos republicanos no Rio de Janeiro.

Por fim, a qualidade convulsiva revelada pela narrativa talvez seja a maneira que Silviano Santiago escolheu para fazer menção ao modo como Machado de Assis escreveu, indo e voltando, com muitas digressões, mas numa tentativa de se aproximar e também homenagear o mestre, falando dele mesmo, Silviano Santiago, e do modo anômalo como construiu o romance. No romance Machado, Silviano Santiago parece tentar dar uma outra volta ao parafuso da crítica biográfica, reapropriando-se da relação entre vida e obra para reinventá-la.

Pensando assim, talvez seja possível considerar Machado, o livro de Silviano Santiago, como um romance de resistência, resistência do nome de Machado e de sua magnífica obra, da própria crítica e da ficção, pois, ao reelaborar as relações entre vida e obra, Santiago resiste ao tão alardeado fim do romance e compondo uma forma híbrida faz a literatura resistir.

Uma experiência de leitura: Zanga, de Davi Nunes

Milena Tanure

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Capa do livro. Imagem cedida pela editora.

Se no texto anterior esbocei um desejo de apresentar o tema ou os interesses da minha pesquisa, agora desejo deixar mais nítidos os caminhos para os quais se direcionam minhas inquietações de pesquisadora.

Como talvez já tenha sinalizado, minhas inclinações têm se voltado para as discussões sobre espaço urbano e espaço editorial a partir do cenário de uma literatura baiana contemporânea. É nesse sentido que meu interesse tem se voltado para as ocupações espaciais, físicas e simbólicas desses campos. Me interessa pensar de que forma o corpo urbano e o corpo humano se interligam nas narrativas contemporâneas, dando a ver, talvez, novas espacialidades da cidade de Salvador e práticas outras de sociabilidade no universo da representação. Da mesma forma, passa a me interessar como esse corpo que ginga no espaço urbano também faz transitar seus discursos na busca de uma produção de sentido e na tentativa de forjar um espaço dentro do cenário de publicações baianas para romper fronteiras e alcançar maior projeção.

Para esse texto havia pensado em encarar, ainda que de modo muito incipiente, o que chamo de literatura baiana, já pensando a razão dessa adjetivação na minha pesquisa e a sua relação com o mercado editorial. No entanto, tomando alguns termos de experimentação emprestados da pesquisadora e professora Paola Berenstein Jacques, em minhas deambulações e errâncias pelos caminhos da pesquisa e pelos espaços urbanos, fui atravessada por um recente lançamento que muito provavelmente fará parte do corpus da minha pesquisa. Trata-se do livro de contos Zanga, de Davi Nunes, lançado pela editora Segundo Selo no último dia 19.

Poeta, contista e escritor de literatura infantojuvenil, Davi Nunes, apesar de fazer parte de uma cena mais contemporânea e jovem da produção literária baiana, já acumula em seu currículo, além da graduação em letras e mestrado em andamento também nessa área, a edição da revista artística-acadêmica Cinzas no Café (2011), a participação em antologias e sites de cultura negra, e o aclamado livro de literatura infantojuvenil Bucala: a pequena princesa do Quilombo do Cabula (2016). O escritor também mantém o blog Duque dos banzos que “versa sobre a cultura afro-brasileira: prosas, poesias e ensaios [que] buscam dar conta da memória, da humanidade, da ancestralidade, da polifonia verbal, rítmica e corpórea que circundam o universo do negro brasileiro”.

Aqui, pretendo apenas ensaiar uma fala sobre minha experiência de leitura, tematizando o modo como as narrativas dialogam com o que desejo inventariar com a minha pesquisa. Zanga nos fala de ancestralidades africanas, da tensão racial brasileira, das potências e agruras de se viver na cidade contemporânea e de relações interpessoais, deslizando por vários polos enunciativos. Todas essas questões se interligam em uma espacialidade urbana múltipla, ainda que a periferia seja predominante.

Nas dezenove narrativas que compõem a obra vai se delineando para o leitor um sentimento de angústia por uma cidade que seduz, mas sobre a qual paira o medo experimentado, sobretudo, pelos corpos periféricos. Como afirmado pelo próprio escritor no lançamento do livro, a presença da morte nos contos que compõem a obra se justifica porque a cidade de Salvador é marcada pela morte. Em entrevista cedida ao Portal Soteropreta, acrescenta: “Sou de Salvador e, para as pessoas negras, esta cidade é um verdadeiro campo de morte. O corpo negro é um corpo sitiado, um corpo sem status político, um corpo nu, um corpo inimigo, um corpo em constante injúria pelas instituições de poder, um corpo do genocídio, da cesura biológica, do racismo. Um corpo cuja política de estado é a morte, um corpo que está localizado onde o estado é sempre de exceção, a periferia”. Muito embora as narrativas se desenvolvam quase sempre a partir de uma tensão, calcada no necropoder, para lembrar a expressão de Achille Mbambe, nos “necrocontos”, não há repulsa pelo espaço urbano.

Uma leitura menos cuidadosa ou apressada poderia levar a supor que zanga é raiva ou que a periferia é meramente marcada pelo medo ou pela dor, mas a escrita de Davi é sofisticada e potente. Compondo uma cartografia afetiva dos bairros, em especial o Cabula e seu entorno, região periférica de Salvador, o escritor tece um diálogo com um passado ancestral que rompe com as visões tradicionais ou reducionistas da presença negra na formação do país e, sobretudo, da cidade de Salvador. Por tal motivo, em seu blog, o autor afirma que, etimologicamente, zanga não se resume ou equivale à raiva, relacionando-se muito mais com rebeldia, bravura, coragem e combatividade. Para ele, zanga é “super poder, é ancestral e por isso contemporâneo, é luz que desponta do cosmo do buraco negro e irradia o terceiro olho do faraó que está adormecido em nós. É o momento áureo da autoconsciência negra, é a negritude como força intempestiva, como ação – zangar.”

As narrativas não nos falam só da potência e das ocupações dos corpos negros numa perspectiva física, nos falam também de ocupação no campo do simbólico. Talvez não seja por outra razão que sujeitos negros e periféricos se apresentam como personagens que ocupam os espaços universitários, forjando novas epistemes e falando de autores e pensamentos não hegemônicos. Além disso, em algumas narrativas, há também os espaços da escrita, que tematizam as agruras da profissionalização do escritor como no conto O enterro: “sou alcóolatra e um negro escritor posto de parte das estruturas editoriais, um gênio obliterado”.

Entre ruas, esquinas, becos, telhas e tijolos sem reboco, as narrativas de Zanga convidam a imagens de uma outra urbe que se misturam às centralidades de Salvador. As narrativas, se não romantizam uma imagem periférica, também não nos apresentam as vidas narradas como facilmente explicáveis. A realidade periférica, com suas vivências e potências, torna perturbadora a experiência de leitura, pois os contos convidam o leitor, que “vai se aquilombando”, como disse o próprio Davi Nunes no lançamento do livro, a percorrer a cidade e o próprio processo de escrita do autor, de seus personagens e dos narradores escritores. E é bom lembrarmos que o quilombo não é lugar de fuga, é lugar de vida, potência, resistência, ocupação e zanga.

O papel da crítica na profissionalização do escritor

Neila Brasil

imagem neila

Créditos da imagem: http://alertabolivia.blogspot.com/search/label/COMUNICACI%C3%93

 

Sabemos que a arte é afetada pelos meios de produção e que o funcionamento do campo literário está ligado a causalidades históricas, econômicas e sociais. Com as mudanças no campo social e os avanços da tecnologia, a forma como artista, público e crítica se inter-relacionam também sofreu profundas transformações. O escritor contemporâneo está necessariamente inserido no mercado e o modo de produzir e difundir suas obras confere a ele um lugar no campo literário.

A crítica literária pode ser considerada uma importante instância de legitimação na profissionalização do escritor. O debate que divide a crítica em dois campos, um “especializado” e outro “não-especializado”, pode ser um indicativo de como é possível ler as relações entre crítica e profissionalização, partindo do pressuposto de que a recepção crítica, seja ela especializada ou não, contribui para a formação da imagem do autor e para a valoração de suas obras.

Se a crítica especializada é atribuída aos professores e pesquisadores universitários, a crítica não-especializada está relacionada ao jornalismo cultural e também com os leitores que estão na internet e que ao comentarem obras e autores em blogs, vloggs e redes sociais, criam um espaço de circulação para suas produções.

Embora a crítica especializada seja tida como relevante, não é incomum encontrarmos posições que comentam a presença de um jargão tão específico à teoria utilizado nas resenhas e comentários sobre a produção literária que acaba contribuindo para certo isolamento da própria literatura. Ainda assim, é possível afirmar que a produção analítica produzida nas universidades é uma instância de legitimação, para utilizarmos o conceito de Pierre Bourdieu, ainda fundamental, na profissionalização do autor, na medida em que promove e avalia a produção artística.

No entanto, se a crítica não-especializada parece mais próxima do leitor que está fora da universidade, mas se interessa pela literatura, muitas vezes o que encontramos no jornalismo cultural (que cada vez mais tem reduzido o espaço dedicado à literatura, ao comentário crítico sobre arte de um modo geral) ou na internet, destina-se apenas à divulgação e não à análise das obras, constituindo apenas um release do lançamento do momento.

Com o reconhecimento da internet como uma instância de legitimação, quero sugerir que a separação entre a crítica especializada e a não-especializada pode não ser assim tão evidente. Já que uma instituição cultural não acadêmica pode promover eventos, debates e mostras com a participação de especialistas e estimular o diálogo com jornalistas e críticos não especializados.

Assim, seria possível considerar que as condições de recepção e difusão da literatura na contemporaneidade transgridem, até certo ponto, os limites que separam a crítica especializada daquela produzida pelos demais agentes da indústria cultural.

Um autor que atrai a atenção da crítica, seja por se tornar objeto de estudo de uma tese universitária, seja por ter sua obra resenhada em jornais de grande circulação, encontra na recepção à sua obra um caminho para a conquista da legitimação de seu nome. Quando um autor conquista capital simbólico, consegue usá-lo a seu favor, conquistando também uma posição no campo literário.

Dessa forma, poderíamos arriscar dizer que a recepção crítica de um autor é um elemento fundamental para a aquisição do capital simbólico, outra noção de Bourdieu, e que a crítica tanto especializada quanto não especializada por auxiliar a construção da imagem do autor perante o público e demais agentes do campo literário, constitui-se um importante elemento de profissionalização do escritor.

O Ideal de sujeito e O Ensaio

Allana Emilia

four quarters

Créditos da imagem: Kang, Young Min – Four Quarters (2016). Disponível em: https://artsandculture.google.com/asset/four-quarters/BAE306BgufvHzw

 

No meu post anterior, comentei sobre a escrita de si em Montaigne e os efeitos que essa escrita traz para a forma do gênero. De acordo com Erich Auerbach, em “A condição Humana”, Montaigne parece dar conta de um ideal de sujeito que passa a ser o modo fundamental como a modernidade trata a questão. Para Auerbach, o caráter tateante e incerto da captura do eu em Montaigne, sua inconstância, é superado pela “unidade da pessoa” e tudo termina na “unidade e na verdade”.

Entretanto, Thelma de Souza Birchal, ao comentar em seu livro O eu nos Ensaios de Montaigne, produto de da tese de doutorado da autora, mais especificamente no capítulo “Sou eu mesmo a matéria de meu livro: a pintura de si”,  afirma não existir em Montaigne a expressão dessa condição humana ideal e única. Ao refletir sobre esse aspecto, Birchal toma a investigação sobre a representação do eu como o ponto de partida para discutir a leitura que Auerbach faz da obra do francês. Para a autora, o que é válido na leitura de Montaigne é a experiência reflexiva como fundamental para a construção desse sujeito, experiência essa elaborada através da escrita e da  investigação sobre como o “eu”, a subjetividade, se comporta frente aos acontecimentos da vida.

Embora concorde com a autora sobre a importância da experiência reflexiva na obra de Montaigne, não compro de todo a sua proposição de falha na construção desse ideal. No tocante à construção desse ideal de sujeito, prefiro a contribuição que Costa Lima dá sobre esse aspecto, em “Pressupostos para o estudo do retrato”, um dos capitulos do livro Limites da Voz.

Não é que o ideal de um eu estável não exista, afirma o crítico.  Entretanto, a tensão existente entre a busca por esse ideal de ser (que não é abandonado de todo por Montaigne) e a percepção da impossibilidade da descrição desse ideal traz à tona as dúvidas que o próprio autor possui acerca de sua empreitada. É o próprio Montaigne que chega a admitir a falha desse ideal em um de seus ensaios – “Do arrependimento” (2, III). E, ao questionar a possibilidade de alcançar a unidade e a verdade de quem se é, questiona se, de fato, vale a pena deixar essas reflexões tateantes no papel.

Dessa forma, acredito encontrar uma possível solução para essa tensão, entre um eu estável, capturável pela escrita e o fracasso da empreitada,  no próprio método utilizado pelo autor. Ao avaliar a si mesmo frente às questões elaboradas por outros, e refletir sobre sua postura a partir de suas próprias experiências, Montaigne constrói sua identidade em relação ao que é proposto pelo outro, escrevendo-se para os leitores. Sendo assim, sua obra é validada por possibilitar que seus leitores estabeleçam (quem sabe) a mesma postura que o autor: a de analisar a si frente a experiência de outro. E, claro, essas questões aparecem no procedimento adotado pelo autor ao tatear esse “eu” em meio às incertezas e está diretamente ligada à forma do ensaio.

Saindo da ficção?

Luciene Azevedo

olafur eliasson waterfall 2016

Olafur Eliasson, Waterfall, 2016

 

          Acho que não é possível negar que nós, leitores, estamos cercados por lançamentos literários que acolhem gêneros não literários como matéria prima das narrativas contemporâneas.  Em muitas obras atuais podemos encontrar o flerte com a dicção ensaística que tem o próprio autor como personagem principal do relato ou ainda a exposição processual de construção da obra que parece inacabada e que se expõe precariamente, oferecendo-nos o que parece ser anotações de preparação para a escrita da narrativa. Os exemplos são muitos. Podemos pensar em Machado de Silviano Santiago, que acolhe tranquilamente as duas caracterizações brevemente delineadas acima, mas também em obras que oscilam entre o auto-ensaio e uma dicção tateante em busca de uma forma para contar e que muitas vezes dão a impressão de estarem saindo da ficção, como é o caso de O Impostor do espanhol Javier Cercas.

            Essa impressão já se materializou ao menos ao olhos da indústria editorial e do jornalismo cultural que fazem circular, por exemplo o rótulo  “romance sem ficção” para nomear as produções de Patrick De Ville, que trabalha a partir de uma ampla pesquisa bibliográfica sobre personagens reais. É assim em Viva! em que explora o affair entre Frida Kahlo e Trotsky, por exemplo, ou ainda em Peste e Cólera quando esquadrinha e revela para o leitor as aventuras e a vida de um discípulo de Pasteur, o médico Alexandre Yersin,  mesclando-as às reviravoltas históricas e políticas da passagem do século XIX para o século XX.

            Esse hibridismo nem sempre é bem visto teoricamente. Muitos estudiosos alegam que a aproximação da literatura e mais especificamente do romance com outros gêneros é uma marca da própria ideia de literatura moderna entendida como ficção e não uma caracterização válida para o que chamamos, imprecisamente, de o contemporâneo.

            Para fazer um breve exercício, vamos pensar aqui em um romancista bissexto, Edgar Allan Poe e em sua  A narrativa de Arthur Gordon Pym.  Poe tateia em meio ao momento de afirmação do romance como gênero e da ficção como sua característica legitimadora. Tal como Defoe e seu Robinson Crusoé, Poe precisa se equilibrar entre o livre jogo com a imaginação, ainda encarado com desconfiança, e o fetichismo referencial de seus leitores. É por isso que ora enfrentamos o ritmo alucinado da narração de aventuras mirabolantes, ora somos reféns da certificação, exaustiva, da verdade, do testemunho do narrador que entremeia aí verdadeiras ilhas de informação obcecadas com latitudes e precisões geográficas. Assim, é possível manter o flerte com os relatos de viagem, tão comuns à época, e ao mesmo tempo abrir espaço à ficção e à legitimação do romance como gênero.

            Já que, então, o romance, desde o início, pode ser caracterizado como um gênero sem forma associado a essa capacidade de incorporar outros gêneros (diários, crônicas de viagem e tantos outros), cujo surgimento está intimamente associado à legitimação da literatura moderna entendida como ficção, como poderíamos pensar o hibridismo das formas narrativas contemporâneas?

            Se o argumento de que no momento inaugural do romance o flerte com as formas não ficcionais era necessário para a legitimação da ficção for válido, podemos pensar que no presente a expansão do romance na direção de formas não ficcionais caracteriza uma saída da ficção e implica  um redefinição da ideia de literatura moderna para renovar os impasses à representação?

            Considerando a lição de Borges, e a possibilidade de reconhecer no Quixote de Pierre Menard um outro Quixote, talvez valha a pena investir no escrutínio das  particularidades históricas, sociais e literárias associadas a esse hibridismo em nosso momento atual debruçando-se sobre obras que imbricam projeto literário, a forma do romance e a vida do eu que se conta ensaisticamente, expondo obra e sujeito de forma processual, esboçada, como se a narrativa fosse a preparação da própria obra a fim de considerar se a literatura pode sair da ficção.

 

 

Fanfics e antropofagia

André Neves

Usar a cultura europeia não mais como modelo ou padrão, mas como combustível para colocar em movimento outra cultura repleta de elementos próprios foi uma das características mais marcantes da proposta antropofágica de Oswald de Andrade no início do século passado. Sua proposta desdobrou-se em movimentos posteriores que tentam abstrair, deglutir e devorar os elementos constitutivos das estruturas da cultura com a finalidade de reconfigurá-los para a constituição de uma nova estética.

Proponho aqui pensar no que seria a antropofagia hoje e quais implicações da cultura de apropriação para a literatura no contexto atual. Como a cultura da apropriação possibilitou dar forma a um corpus literário a partir de desdobramentos tanto teóricos/conceituais quanto estéticos?

Reconheço que as questões são complexas para serem tratadas no espaço deste post, mas mesmo assim, me arrisco a propor que a leitura de algumas narrativas atuais podem ajudar a começar a pensar em respostas que apontam para outras formas de pensar a literatura. As narrativas contemporâneas, sobretudo nas redes sociais, subvertem e “antropofagizam” a cultura e a literatura e nos fazem pensar sobre um leitor/espectador como um sujeito mais independente das formas e conteúdos da tradição e da crítica.

Em entrevista em programa especial intitulado “Oswald de Andrade em cena” no Canal Saúde, disponibilizado no youtube, João César de Castro Rocha autor e organizador do livro Antropofagia hoje afirma que “a antropofagia no sentido oswaldiano sempre quer dizer a capacidade de apreender experiências simultaneamente, experiências diversas […], é, em parte, a capacidade de lidar de maneira produtiva com a simultaneidade sem estabelecer hierarquia e sem estabelecer exclusões a priori”. O crítico afirma ainda que os antropófagos de hoje são os “devoradores” de livros, os usuários da internet, o leitor cibernético que faz sempre uma releitura do mundo ao redor, na condição de um internauta.

A apropriação inventiva de mídias já existentes como ferramenta de comunicação e divulgação são reutilizadas e reinventadas pelos fandoms, os fãs que compartilham interesse por uma obra literária, um filme, uma história em quadrinho, reapropriando-se delas. É importante pensar como novos atores e consumidores culturais entram em cena na contemporaneidade mais precisamente a partir da explosão da cultura de mercado, da cultura de consumo, como cada vez mais produção e consumo parecem caminhar juntos quando falamos de cultura.

Seria possível pensar as fanfictions como uma produção que trabalha com a operação básica da antropofagia, a apropriação, e que mantém vivo o lema do Manifesto Antropofágico “Só a

ANTROPOFAGIA nos une […] Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago”?

Talvez uma resposta possa se delineada a partir do pensamento do crítico João César de Castro Rocha quando afirma que “antropofagia é uma imaginação teórica de apropriação de alteridade”, pois se existe algo de que necessitamos no mundo contemporâneo globalizado e assimétrico, cujas relações de poder são cada vez mais evidentes, é desenvolver uma estratégia teórica que permita a apropriação criativa do outro.

O autor, o crítico, a ficção e o ensaio

Marília Costa

Yoko Ono2c “Sky TV for Hokkaido” (photo de Yoshihiro Hagiwara)

Créditos da Imagem: Yoko Ono – “Sky Tv for Hokkaido” – Yoshihiro Hagiwara

Durante muito tempo, o autor de literatura e o crítico literário assumiram papéis diferentes no campo literário brasileiro. Em linhas gerais, ao autor cabia o papel de tecer a obra e ao crítico a tarefa de comentar, analisar e teorizar sobre as narrativas. Alguns desses indivíduos realizavam as duas atividades em paralelo, porém em espaços distintos. O autor publicava seus textos em livros denominados como romances, contos ou poesias. O crítico transitava pelos jornais, revistas, blogs, livros teóricos, artigos e demais textos acadêmicos. Desse modo, não era muito comum que a ficção e o discurso teórico dividissem o mesmo espaço em uma obra literária.

Na contemporaneidade há indícios de um rompimento das fronteiras que separavam ficção e crítica literária. Eneida Maria de Souza, em seu texto “Notas sobre a crítica biográfica”, salienta que os limites entre as principais áreas de estudo da literatura não estão bem definidos pelas teorias contemporâneas. Desse modo, a literatura deixa de ser objeto de análise e passa a ser também espaço para analisar e teorizar sobre si mesma, “o próprio sujeito teórico se inscreve como ator no discurso e personagem de uma narrativa em construção”, afirma Souza. A crítica biográfica encontra-se delimitada entre a teoria e a ficção, o documental e o literário.

No século XXI deparamo-nos com escritores em cujas obras podemos identificar o hibridismo entre a crítica literária e a ficção, como é o caso de Ricardo Lísias, Cristovão Tezza, Silviano Santiago, entre outros. É possível ainda arriscar que o procedimento crítico no registro literário aparece a partir do uso da dicção ensaística e do recurso autobiográfico e autoficcional.

No romance Machado de Silviano Santiago, publicado em 2016, o narrador se apropria da dicção ensaística para tornar-se outro: “Transfiguro-me. Sou o outro sendo eu. Sou o tomo V da correspondência de Machado de Assis: 1905-1908”. Ao mesmo tempo, podemos notar uma aproximação entre narrador e personagem, principalmente em comentários críticos sobre o campo literário do final do século XIX e início do século XX, que lembram um ensaio, quando por exemplo tematiza-se a forma como Machado de Assis se concebe, se desenvolve, se aprimora e se estabelece como um dos maiores escritores brasileiros.

Em Machado de Santiago podemos perceber uma característica comentada pelo crítico argentino Reinaldo Laddaga em seu livro Estética de Laboratório e também presente em outras obras da literatura contemporânea. Ao resgatar o caminho que o conduziu a escrever o livro, Santiago forja a si mesmo e ao processo de escrita (aí emerge o que identificamos como uma dicção ensaística) aproximando-se do que Laddaga chama de uma “visita ao estúdio” de produção do autor e que torna possível aos leitores “formar uma ideia da pessoa e do pensamento do autor”. Embora saibamos que se trata de mais um artifício, pois, como o próprio Laddaga aponta “um artista se expõe enquanto realiza uma operação em si mesmo. O que mostra não é tanto ‘a vida (ou sua vida) como ela é’, mas uma fase da vida (ou da sua vida) que se desenvolve em condições controladas.” Desse modo, não deixa de ser interessante pensar que a dicção ensaística presente no romance Machado pode ser pensada como um artifício para reinventar a literatura.