Arquivo do mês: outubro 2022

Autoria e construção de carreira literária nas redes

Luana Rodrigues

Créditos da imagem: “Fusion”, Ziqian Liu, 2020

Em meu post anterior, expus um pouco dos objetivos de minha pesquisa atual de iniciação científica. Durante os próximos 12 meses, pretendo analisar a relação entre a construção de uma trajetória autoral e a participação dos escritores nas redes sociais. Selfies, postagens de divulgação das obras ou participações em eventos, compartilhamentos de comentários de leitores e alguns detalhes do próprio processo de escrita criativa: essas são algumas das muitas facetas que podemos encontrar nos perfis de muitos e diferentes autores presentes nas redes sociais hoje.

Natália Timerman é a autora que passei a ler e a acompanhar virtualmente. Conheci a autora a partir da leitura de Copo Vazio, que é também  seu primeiro romance publicado por uma grande editora, a Todavia, em 2021. Atualmente, Timerman anunciou que está preparando a escrita de um novo livro com alguns elementos autobiográficos que se misturam ao ficcional. Em uma selfie postada na sua conta pessoal do Instagram, no dia 24 de setembro de 2022, a escritora Natália Timerman posa para câmera com olhar aparentemente sonolento e como legenda podemos ler o seguinte texto: “Eu entendi, tomando esse sol, na pausa da escrita do meu livro, que só vou conseguir dormir depois que terminá-lo, só vou conseguir acordar depois das 05:30 da manhã de novo depois que tiver colocado o ponto final. Só então deixarei de abrir os olhos de repente, pro escuro ainda, inquieta, com o livro inteiro na cabeça e no corpo”.

A reflexão sobre a rotina da escrita associada à foto da própria autora é um indício de como a busca por um certo equilíbrio entre a exposição da intimidade e a construção de um universo ficcional é uma preocupação que funciona não apenas como mote da produção literária, mas também da performance pública dos autores. Em sua coluna semanal para o site Uol, Timerman escreveu: “Por que postar? Por que refletir dessa forma, em público, com textos escritos no Instagram e não nas páginas do meu diário? Porque mostrar o rosto dos que amamos a quem não conhecemos, ou a quem conhecemos de longe, essas pessoas, os seguidores, que não partilham do nosso cotidiano? (…) Em que momento a declaração pública em um post virou uma espécie de medida de afeto, de garantia de apreço, de asseguramento de existência?”.

Ainda em outro texto, na mesma coluna semanal citada anteriormente, dessa vez sobre a ambiguidade entre o silêncio e a agitação inerentes ao ofício do escritor contemporâneo, Timerman diz: “(…) Para escrever –e também para ler– eu necessito não só de tempo, mas principalmente de silêncio. E por mais que eu goste do burburinho literário, de participar de debates, festas, lançamentos e conversas, literatura é quase sempre silêncio. Mas como é difícil dizer não”.

O silêncio e a quietude indicados como imperativo para a escrita parecem, no entanto, incompatíveis com o burburinho do movimento on-line. A interação, quase em tempo real com os leitores, facilita a comunicação e cria um fluxo próprio de informações e atuações, típico das dinâmicas interativas das redes. Na foto, postada em 7 de fevereiro de 2022, Timerman posa ao lado do companheiro e na legenda anuncia: “Outro dia fui procurar um texto meu na internet e, ao digitar meu nome, apareceu como uma das opções de busca do Google ‘Natália Timerman Marido’. É esse aqui, gente, o @eder_camargo, que vai ficar bravo comigo por fazer essa postagem, com quem amo dividir a vida, e quem me faz tomar as melhores decisões há exatos 6 anos”.

A observação dos movimentos no campo literário hoje sugere que a presença dos autores na internet funciona como uma forma de circulação importante para o nome do autor (em especial, para aquele que está se apresentando ao campo, publicando suas primeiras obras). Essa presença também sugere outros aspectos a serem observados: o modo como se dá essa auto-exposição, o modo como as redes funcionam como escritórios de promoção e autogerenciamento da própria imagem e da obra que vai sendo construída. Para minha pesquisa, observar esses movimentos significa interrogar como se constrói um autor hoje.

O retorno do autor e a volta à biografia

Carolina Coutinho

Créditos da imagem: Sally Mann, “A Thousand Crossings,” “The Turn,” 2005, Larry Mann, the photographer’s husband, is in the foreground.

No post anterior, comentei um pouco a respeito da minha experiência no estágio docente que estou realizando neste semestre. Um dos aspectos que nos propomos a abordar nas aulas foi a conexão entre a maior incidência das escritas de si no presente e a transformação da noção de sujeito.

Klinger propõe um “retorno” do autor, figura que havia sido sepultada no contexto estruturalista. Como se sabe, Barthes foi o grande nome desse momento. Em “A morte do autor”, Barthes adere à tendência de recalcar o autor para valorizar o leitor e a linguagem, rechaçando a figura do autor empírico, suas manifestações sobre a vida, sobre os entornos da obra, da “vida de escritor”. Assim, a rejeição à existência biográfica do autor, a suas “opiniões” sobre a própria obra, também colocava de uma vez por todas, assim se desejava, uma pá de cal na possibilidade de que o autor atuasse como uma espécie de farol privilegiado para a “decifração do texto”.

Contudo, Barthes revisa essa proposição em alguns de seus textos posteriores. É no segundo curso de A preparação do romance, após a publicação de Roland Barthes por Roland Barthes, que Barthes dá corpo ao retorno do autor. Já aí, nessa espécie de autobiografia ensaístico-romanesca, o autor fala de si e tece teorias a partir de diversas formas textuais (fragmentos, fotografias, episódios, reflexões…) para declarar: “Tudo isto deve ser considerado como dito por uma personagem de romance”.

Mas é nas notas de preparação do curso que Barthes se mostra mais interessado em ler a vida do que a obra de alguns escritores, pois está mais envolvido em compreender os hábitos e condições necessárias para a rotina de escrita, recuperar os “planos de vida” que os grandes escritores, como Flaubert e Proust, traçaram enquanto estavam escrevendo. Com essa junção entre vida e obra, Barthes deseja uma nova prática de escrita, uma Vita Nova. Nesse sentido, o “retorno ao autor” é uma “volta à biografia” e a preparação é o laboratório que gesta uma nova forma que quer explorar uma espécie de “nebulosa biográfica”.

Ao anunciar que talvez já fosse possível observar uma mudança em movimento (em si mesmo? em seu próprio presente?), Barthes diz “ver um pouco como certa transformação do Biográfico está em vias de intervir”.

Sabemos que o desejo de escrever uma nova forma (de escrita e de vida), o romance que prepara durante o curso, não se concretizou. Seria possível pensar que Barthes, apesar de seu desejo, luta ainda contra uma interdição contra o retorno do autor, do sujeito, da vida? E se for assim, poderíamos pensar que o movimento de transformação que Barthes vislumbrou em meio às suas considerações sobre a preparação do romance que desejava escrever, ou seja “certa transformação do biográfico”, encontra seu momento propício agora, no início do século XXI?

Um projeto e um olhar sobre Annie Ernaux e sua escrita “foto-sociobiográfica”

Samara Lima

Créditos da imagem: Sophie Calle. Foto: Jean-Baptiste Mondino

Em agosto deste ano, submeti o relatório final da minha última pesquisa no âmbito da iniciação científica, cujo título era “A literatura fora de si e a expansão dos campos das práticas artísticas contemporâneas”. Um dos investimentos teóricos da pesquisa consistia em refletir sobre a expansão das artes para estudar como a literatura está cada vez mais infiltrando-se em outros campos, inserindo em meio ao texto elementos “estranhos”, tornando possível identificar o que poderíamos chamar de uma “saída da literatura”. Para isso, selecionei a obra Os amantes, de Amitava Kumar, na tentativa de analisar como as fotos documentais estão presentes no enredo (auto)ficcional. Em outras palavras: se ainda estão inseridas no discurso da documentação ou se transcendem a noção da foto como ferramenta de confirmação do relato.

Desde então, tenho pensado em realizar uma pós-graduação no programa de Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia a fim de expandir minhas reflexões sobre a relação entre narrativa e imagem fotográfica nas produções do presente, em especial, nas obras L’usage de la photo (O uso da fotografia), co-escrito com o fotógrafo e ex-companheiro da autora Marc Marie, e Os anos da ganhadora do Nobel de Literatura em 2022, Annie Ernaux.

Em Depois da fotografia: uma literatura fora de si, Natalia Brizuela busca pensar o cruzamento entre a prática literária e as outras artes, como a imagem fotográfica. A autora aponta para o esfacelamento das fronteiras entre as diferentes linguagens e como os limites entre elas estão cada vez mais porosos, caracterizando-se como “um espaço e momento sempre de contágio”. A partir de análise de obras de autores latino-americanos como, por exemplo, Mario Bellatin, Nuno Ramos e Juan Rulfo, a crítica argentina analisa “alguns deslocamentos e metamorfoses nessa atividade da arte que chamamos literatura” e como a fotografia aparece em meio à escrita.

Segundo a autora, o cruzamento entre as linguagens pode acontecer por meio da inclusão de fotos em obras literárias ou como paradigma de uma nova sintaxe e de uma nova literatura utilizando certas características do dispositivo fotográfico – como a indexicalidade, o corte, o ponto de vista, o pôr em cena, a dupla temporalidade (passado-presente/o que foi – o agora), o caráter documental, sua função mnemônica, o ser uma mensagem sem código.

Em L’usage de la photo, um projeto íntimo do casal que consistia em fotografar objetos e escrever depois de fazer amor, as diversas imagens da vida cotidiana são reproduzidas em meio à narrativa e parecem manter um diálogo com o texto. Já em Os anos, tendo como norte fotos e memórias deixadas por acontecimentos, a autora evoca o período pós-guerra até os anos 2000, na tentativa de reconstruir os valores e contradições de sua vida, de sua família e de sua sociedade. Aí, o enredo, a sintaxe e a forma parecem guiar-se pelas fotos, ainda que nenhuma imagem esteja materialmente no livro.

É pensando nessas questões que eu gostaria de estudar a relação entre foto e texto na produção de Annie Ernaux. Mas também em como o uso da imagem visual como suporte ou ponto de ancoragem da história parece corresponder ao desenvolvimento de um projeto estético bastante singular por parte da autora, o qual se baseia na recusa da ficção e na tentativa de desenvolver uma “autosociobiografia”.