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Crítica e ficção sem nostalgias

Luciene Azevedo

Créditos da imagem: Edward Burtynsky. Phosphor Tailings #5, Near Lakeland, Florida, USA, 2012. (Escombros de fósforo #5, cerca de Lakeland, Florida, EE. UU.)

Em Uma arte ecológica, Paul Ardenne coloca no centro de seu problema uma pergunta inquietante para a crítica hoje: considerar a arte útil não é fazer desaparecer sua especificidade? Ardenne reconhece a necessidade de “modificar nossa gramática e nosso vocabulário de prazer” e constata uma demanda para que a arte “faça a diferença”, coloque-se em condição de urgência.

A leitura do livro de Ardenne me interessou menos pela investigação sobre a arte ecológica, sobre o que o francês caracteriza como uma guinada afirmativa do meio ambiente como matéria artística, e mais pela reflexão que o crítico faz sobre as transformações no campo da arte.

O livro traz muitos, muitos exemplos, mas pouca especulação teórica.  Chega um momento em que a montanha de referências perde todo o sentido e funciona apenas como um argumento de força da premissa básica: a arte se transformou, é preciso pensar na Natureza, dela depende a sobrevivência do humano, a arte deve ser útil. Embora essa seja a “mensagem” principal do livro, também chama a atenção o modo como à medida que esse mote vai sendo exposto de forma mais assertiva, Ardenne não se furta a colocar na página as perguntas cruciais: Mas a utilidade não é um elemento externo à arte? É possível tamanha transformação? Isso não significa abandonar uma certa história- até anulá-la- para fazer desaparecer a especificidade da arte?

Apesar de fazer parecer fáceis as respostas às questões espinhosas, encontro no livro a ideia de que há uma mudança nos modos de fazer arte, de que há uma transformação em vários campos do saber e uma insatisfação com a ideia de representação para pensar a arte (substituída pela presença, pela exploração do corpo, pela performance). Ardenne defende que esse é o momento em que a arte pode recuperar sua importância social, deixando de lado uma concepção estética alienante que exalta a contemplação e a beleza e que separa arte e política.

Embora concorde que a arte hoje experimente espaços não convencionais e formas de emancipação da criação que negam marcos tradicionais, não estou bem segura se a saída é a preconizada por Ardenne, que defende que a estética e a representação ficaram para trás e que agora é o momento de a arte se engajar na ação, transformação e atuação direta no contexto no qual intervém.

Se por um lado comemoramos a diversidade das perspectivas narrativas que expõem um mundo mais plural a partir da exploração de temas associados à identidade racial e ao gênero, à questão pós-colonial, à pauperização social, não é tão simples concordar com Ardenne quando afirma que “pensar a forma, pensar em termos estéticos é pouco produtivo” e que “representar é demasiado pouco”.

A tensão entre arte e política, ética e estética parece reavivar um debate tão velho quanto essa tensão: a velha oposição entre forma e conteúdo. É o que aparece subjacente, por exemplo, na resenha de Lígia Diniz feita ao último livro de Itamar Vieira Jr., Salvar o fogo: “É curioso que, no empenho de trazer à ficção a realidade de uma população à margem da modernidade ocidental, o autor recorra a expedientes gastos da literatura mais convencional: mistérios revelados pouco a pouco, alternância entre vozes narrativas que se esclarecem mutuamente e uma insistência na produção imediata de sentido.”

Diniz caracteriza como “espirito do tempo”, um desleixo da imaginação, uma desimportância da ficção (e, por tabela, com a forma, com a ambiguidade própria do dispositivo ficcional) que sucumbem diante do “triunfo da narrativa didática e moralizante, que se esquiva da complexidade humana e finca o pé na prescrição de como o mundo deve ser encarado.” Mas o argumento, apesar de parecer lacrador (aliás, como o do próprio Ardenne), impõe muitos desafios críticos: como lidar com a ambiguidade na construção dos sentidos das obras, com a velha oposição entre forma e conteúdo, com a relação entre o ético e o estético, sem voltar a antigas fórmulas, sem remeter apenas a nostálgicos momentos de conservação de tradições?

Prezar a ambiguidade como uma propriedade da arte (e da própria vida) é um empecilho para uma decisão fácil entre as dimensões ética e estética da produção artística.