No contexto da produção teatral do século XXI, percebe-se a presença de diversos espetáculos teatrais que acionam experiências traumáticas baseadas em episódios biográficos vividos por atores, diretores ou mesmo espectadores. Dramas familiares, doença e traumas como em Espontaneamente – genealogia da memória com a Cia. de teatro Improviso Salvador; abandono parental e estupro em Conversas com meu Pai de Janaína Leite; a experiência de viver nas ruas e a convivência com as drogas, a violência e prostituição e o abandono materno em Rosas no Jardim de Zula com a Cia. de Teatro; traumas ligados à escravidão como em Fonte de Cura (2021) dirigido por Denise Pedron e Fala (2021) que tem como tema o estupro. Esses são apenas alguns exemplos de produções que no contemporâneo desafiam a crítica especializada a repensar seus instrumentos e métodos de análise.
Um desses desafios está centrado na análise do modo como realidade e ficção disputam o espaço da cena contemporânea. Essa disputa pode ser percebida tanto no número de espetáculos nos quais atores representam suas próprias histórias no palco, como no biodrama, quanto também na própria dimensão espacial do teatro com o palco que se expande na direção da audiência, do público, que, muitas vezes, é convidado a participar mais ativamente da encenação compartilhando histórias pessoais como comentei em meu último post. Essas criações parecem estar mais preocupadas em examinar o território das subjetividades de si e do outro do que em se manter dentro de uma tradição de teatro dramático.
Por que tantas experiências pessoais e traumáticas estão sendo levadas para o palco do teatro que durante muito tempo foi um espaço próprio da ficcionalidade? Nas peças que mencionei acima, por exemplo, é comum encontrar parte do processo criativo dentro da cena, a presença de várias versões dos acontecimentos, comentários analíticos sobre os limites da representação. Será possível pensar que essa exposição da subjetividade autobiográfica no espaço da teatralidade pode apontar também para uma certa virtualidade, um certo modo de explorar o desconhecido desse mesmo sujeito que se dramatiza? E que consequências isso tem para a própria forma do teatro no presente?
Créditos da imagem: “Decomporsi per ritrovarsi”, 2023 – Laetitia Farellacci (self-portrait artist), www.diluceeombra.com
No post anterior comentei um pouco sobre a atuação de Natália Timerman nas redes sociais e uma performance própria à condição de autoria no presente. Neste texto quero, portanto, continuar utilizando a presença de Timerman, tanto dentro quanto fora das obras que produz.
Em A máquina performática: a literatura no campo experimental, Aguilar e Cámara vão se debruçar sobre dois termos, a “máscara” e a “pose”, para pensar o que chamam de “dispositivos da modernidade literária”. Com base nas reflexões de Antonio Candido sobre as “máscaras” criadas pelos escritores românticos, os autores referem-se aos elementos de textualidade ou elementos discursivos, à assinatura textual que é construída como projeção da obra, que é pensada como uma performance que envolve, para além da criação textual, os gestos, as imagens, os trejeitos e toda corporeidade que marca a presença do autor na cena pública. A essa performance os autores chamam “pose”, com base na reflexão da crítica argentina Sylvia Molloy.
O exemplo comentado por Aguilar e Cámara é o do escritor Paulo Leminski. Segundo os críticos, o “caráter de poeta maldito e erudito ao mesmo tempo” foi alimentado pelo próprio Leminski através de suas produções, mas também, porque era uma figura bastante midiática, “fez um efetivo desenho de sua pose, que a canonização retrospectiva de sua obra continuou utilizando depois de sua morte”. Como exemplo a fixação de sua imagem representada pelo grande bigode, que em 2013 estampou a capa de uma das reedições de sua poesia completa publicada pela Companhia das Letras: “Esse bigode basto parece encarnar o signo de uma vida exuberante que combinou o excesso e a tragédia, mas também uma espécie de assinatura singular para uma produção singular”.
Mas como pensar esses “dispositivos”, hoje? Natália Timerman já tem uma assinatura autoral? Se consideramos que desde os anos 2000 há uma exigência cada vez maior da presença física do escritor nos espaços literários e também da sua presença virtual nas redes sociais, podemos arriscar que isso resulta em um impacto que torna mais complicadas as relações entre o que está fora e dentro do texto? Seria possível separar tão claramente os elementos textuais, a assinatura da obra, o que Candido e Aguilar e Cámara chamam de “máscara”, da “pose” de uma performance autoral que se constrói por meio da intensa presença dos autores junto à sua obra nos espaços públicos da cena literária contemporânea?
Minha pesquisa vem tentando refletir sobre o entrelaçamento desses dispositivos, a máscara e a pose. Um forte indício de que vale a pena aprofundar essa discussão diz respeito ao fato de que a “pose”, a atuação de Timerman em suas redes sociais, é também motivo de reflexão sobre como a convivência com o virtual impacta nossa subjetividade hoje na própria obra, já que muitos contos-crônicas e seu romance, Copo Vazio, propõem pensar a dinâmica das redes.
Mas não apenas isso. Se pensarmos que hoje a circulação da imagem do autor ganha quase tanto espaço quanto o comentário sobre sua obra, é interessante observar como Timerman vai criando uma identidade visual ou uma “pose”, segundo o uso que Aguilar e Cámara fazem do termo. Destaco em especial as fotografias registradas pela profissional Mariana Vieira (encontradas no catálogo do site dela) que se apresenta como “curator, visual explorer, creative strategist”. Em muitas fotos, a imagem de Timerman aparece borrada, a autora está de braços cruzados, ora olhando diretamente pra câmera, ora de olhos fechados. Essa ambivalência entre o esconder e o mostrar, entre a sessão de fotos para promoção da imagem e fotografias que driblam a transparência do “apenas” mostrar, está presente também no modo como a autora lida com a exposição de sua vida nos textos publicados, como já comentamos aqui no blog e me estimula a aprofundar a investigação sobre os intensos trânsitos entre o dentro e o fora do texto na construção de uma trajetória literária.
Créditos da imagem: Christian Boltanski, The reserve of Dead Swiss, 1990.
Tradicionalmente, a autobiografia é entendida como um gênero narrativo que conta a vida de quem escreve, sempre escrito em primeira pessoa. Embora possa haver nas autobiografias algum grau de “invenção de si”, seja por vontade do autor de se inventar ou por falhas na memória, as regras do gênero dizem que devemos confiar na honestidade do autor. É o que defende o teórico francês Philippe Lejeune, que reconhece esses “deslizes”, mas recusa transformá-los em um fator que inscreva o texto no campo da ficção.
As autobiografias também são marcadas pela autoridade de quem escreve. Afinal, costuma-se acreditar que não há melhor pessoa para dar testemunho de sua vida senão o próprio autor. Mas o que significa a vida nessa modalidade de representação literária? Que procedimento para a elaboração textual do gênero autobiográfico é mais autêntico e mais fiel à reconstrução da vida que se conta?
O importante estudioso da autobiografia, Georges Gusdorf, afirma que a autobiografia “autêntica” exige um exame de consciência manifesto no relato por parte do narrador que pretende contar sua vida. Assim, diz Gusdorf, uma autobiografia não deve deixar de “se perguntar, se desmentir, se encontrar e se perder, em meio à busca de um sentido da vida que, mesmo não sendo alcançado, não é também abandonado”.
Gusdorf reconhece os deslizes não só como uma parte natural do processo de elaboração da autobiografia, mas como algo necessário para validar o exame de consciência: “a busca de si quer ser uma participação na constituição de si”. Nisso, o autor também critica a “ilusão biográfica”, pois afirma que contar uma vida não é apenas revisar informações, datas, documentos ou garantir a exatidão das memórias, tomando uma perspectiva de si inequívoca para assegurar ao leitor uma coerência inquestionável na exposição do que se passou.
É possível pensar as posições de Gusdorf em diálogo com outro nome fundamental da teoria da autobiografia, o belga Paul De Man. No texto “Autobiografia como Des-figuração”, De Man entende que toda autobiografia é des-figuração, pois ao tentar narrar sua própria vida, o autobiógrafo acaba criando uma outra figuração de si – é como se, no gesto de remover uma máscara para revelar uma “verdade”, se colocasse outra máscara no lugar.
Gusdorf parece concordar com De Man sobre o entendimento do que é uma autobiografia, pois não ignora que no relato de si autobiográfico existem várias camadas de vida, mas discorda das conclusões dele, já que acredita que as des-figurações constituem o gesto propiciador do que Gusdorf chama de “autenticidade” da autobiografia. Não deixa de ser curioso o fato de Gusdorf redimensionar o significado da autenticidade para instituí-la como traço fundamental à autobiografia.
Créditos da imagem: Frances Kearney, Five people thinking the same thing, IV, 1998.
Em “Quando as imagens tocam o real”, Georges Didi-Huberman pontua a força sem precedentes com que a fotografia vêm se impondo no nosso universo, considerando os deslocamentos e as formas de reorganização técnica, como também sua capacidade de sobrevivência, ainda que ao longo do tempo tenha sofrido tantos dilaceramentos, reivindicações contraditórias e tantas […] manipulações imorais.
Didi-Huberman discute imagens que se referem a registros de diversas situações inimagináveis, como foi a experiência dos campos de concentração da Alemanha Nazista, sendo consideradas então atos de resistência e um objeto de memória contra a maquinaria da “des-imaginação”.
O filósofo comenta que os possíveis saberes que as imagens revelam partem de sua relação cruzada com muitos outros dados, com as palavras e os contextos, por exemplo. É nesse contato com o real que a imagem arde. Para o filósofo francês, importa realçar a relação lacunar que a imagem mantém com a realidade e que faz da imagem, sempre faltante, um material “ardente” e inexato, que deve ser pensado em um duplo regime: ao mesmo tempo como documento e como objeto de sonho, objeto de ciência e não saber.
Mas toda imagem arde?
Para Didi-Huberman, se uma imagem mantém-se no completo preenchimento de sentido e no clichê visual, não gera pensamento crítico. O que o filósofo chama de imagem ardente preza as lacunas, o desconforto e busca encontrar as cinzas. Neste sentido, o autor aponta a importância de saber olhar uma imagem, uma vez que vivenciar uma experiência de ardência é uma ação complexa, pois para senti-lo, é preciso atrever-se, é preciso acercar o rosto à cinza. E soprar suavemente para que a brasa, sob as cinzas, volte a emitir seu calor, seu resplendor, seu perigo.
No post anterior, comentei que gostaria de estudar, na nova pesquisa que proponho ser desenvolvida no mestrado, a relação entre texto e foto nas obras L’usage de laphoto e Os anos de Annie Ernaux. A escritora francesa utiliza em suas produções a imagem como objeto material e estrutura sintática como parte de um projeto estético que rejeita a ficção. Pensando na discussão proposta por Didi-Huberman, me interessa investigar de que maneira a autora francesa lida com a complexidade da inexatidão da fotografia em sua narrativa, mas também de que maneira faz arder o real, o lugar onde a cinza não esfriou e como a relação entre texto e imagem constrói sentidos sobre sua vida e sobre a sociedade francesa que também atuam contra a maquinaria da “des-imaginação”.
Créditos da imagem: Joe De Hoyos, Spitting Image, 1987
Seja em séries, longas e curtas-metragens, documentais ou ficcionais, maneiras diversas de representar as questões relativas ao HIV/aids estão presentes nas telas. É possível localizar obras, a partir do ano de 1985, que já discutem a epidemia, como AIDS: Aconteceu comigo (1985), Filadélfia (1993), As horas (2002), Angels in America (2003), Cazuza – O tempo não para (2004) The Normal Heart (2014), Pose (2018), entre tantas outras.
Várias dessas realizações audiovisuais estabelecem uma relação direta com a literatura. Muitas são adaptações de textos literários, enquanto outras levam para a tela a vida de escritores ou personagens importantes das letras. Também há casos em que essa aproximação se dá de maneira indireta, na forma de alusões ao universo da literatura.
Duas obras recentes do cinema brasileiro chamam a atenção pela maneira como dialogam com a literatura: o documentário Carta para além dos muros (2019) e o drama em longa-metragem Os primeiros soldados (2022). No filme de 2019, dirigido e produzido por André Canto, a referência mais evidente diz respeito ao título, baseado no conjunto de crônicas que o escritor Caio Fernando Abreu publicou entre os meses de agosto e setembro de 1994 no jornal O Estado de S. Paulo. Além disso, um dos entrevistados do documentário é um homem identificado com o nome fictício de Caio, em referência ao autor gaúcho. Há também neste filme depoimentos de autores fundamentais à discussão sobre HIV/aids, como João Silvério Trevisan, Drauzio Varella, Jean-Claude Bernardet, entre outros.
Já em relação ao longa-metragem Os primeiros soldados, dirigido e escrito por Rodrigo de Oliveira, as referências ao universo literário não são tão evidentes quanto no documentário de Canto. Aqui a aproximação entre cinema e literatura é construída a partir de exercício de especulações e aproximações. A começar pelo momento em que se passa a narrativa, o ano de 1983. Há aí uma “coincidência’, pois é o mesmo em que Caio Fernando Abreu lança a novela Pela noite, o primeiro texto literário a abordar a temática do HIV/aids.
É possível ainda observar formas e procedimentos comuns à literatura sobre HIV/aids no longa dirigido por Rodrigo de Oliveira. Narrar a si, de maneira autoficcional, ou de modo autobiográfico, como muitos escritores fizeram, principalmente nos primeiros anos da emergência da epidemia, é uma dessas estratégias de que o filme se vale.
Por fim, é preciso chamar a atenção ainda para o fato de que não se nomeia o vírus ou a doença, procedimento também comum nas produções literárias sobre o tema. Em Os primeiros soldados, embora os personagens com HIV façam registros minuciosos sobre sintomas, remédios, efeitos adversos, associados ao vírus e à doença, não há qualquer designação explícita ao HIV/aids, procedimento que está presente também em grande parte da obra de Caio Fernando Abreu e Bernardo Carvalho, por exemplo.
Embora minha pesquisa não tenha como objetivo realizar um mapeamento exaustivo sobre as aproximações possíveis entre as produções literárias e cinematográficas que abordam a temática do HIV/aids, não deixa de ser curioso observar como em ambos os circuitos circulam representações semelhantes do vírus e da doença .
Em seu último livro, As Margens e o Ditado (Intrínseca, 2023), Ferrante se vale de um trecho de Os diários de Virginia Woolf para comentar seu processo de escrita, que considera verdadeira a partir do momento em que se vale do “depósito da literatura” para buscar o necessário para escrever. E então, continua: “Quem escreve não tem nome. É pura sensibilidade que se nutre de alfabeto e produz alfabeto em um fluxo irrefreável”.
Pensando nessa escrita sem nome, me recordo da discussão elaborada por Foucault em “O que é um Autor?”, texto que aprofunda a discussão sobre autoria e que tem como marco o texto de Barthes. Nessa palestra, Foucault discute sobre as condições de funcionamento dos discursos e afirma que a autoria funciona como uma função, como um operador que caracteriza um modo de ser do discurso. Dessa forma, o nome do autor funciona como um limite textual, que manifesta uma característica do discurso. Esse limite é demarcado a partir de quatro características: A apropriação, a necessidade dessa presença para o texto, a construção de um ser que escreve – entre o autor “real” e o texto – e a presença de signos que identificam esse autor.
A importância do autor como função, como funcionamento junto ao texto, é um caso interessante para pensar a autoria de Ferrante. Ao insistir no anonimato, apesar das revelações de Claudio Gati, apontadas como pouco éticas pelos meios adotados, Ferrante parece não apenas contrariar as premissas do filósofo francês, mas também esvaziar o lugar da presença que os autores contemporâneos têm ocupado na cena atual.
Por isso mesmo, não deixa de ser curioso observar como essa ausência volta a ser ocupada pela movimentação crítica que a própria autora mobiliza escrevendo sobre sua obra para estabelecer um movimento interpretativo sobre sua produção e atuar sobre a recepção crítica. Para voltar a Foucault, seria possível dizer que a autora exerce, mesmo no anonimato, um controle crítico sobre a interpretação de sua obra e que, muitas vezes, a recepção atua como se apenas expandisse unidades de sentido dadas pela autora. É o que acontece, por exemplo, com a noção de frantumaglia, explorada por grande parte da fortuna crítica da obra de Ferrante, a partir das reflexões que Ferrante faz sobre a noção:
A frantumaglia é uma paisagem instável, uma massa aérea ou aquática de destroços infinitos que se revelam ao eu, brutalmente, como sua verdadeira e única interioridade. A frantumaglia é o depósito do tempo sem a ordem de uma história, de uma narrativa.
A noção é retomada como central à escrita de Ferrante, por exemplo, por Pamella Oliveira em sua tese sobre a tetralogia, na qual encontramos um inventário do termo e dos modos como a frantumaglia vai sendo modulada à obra ficcional da escritora.
Outro exemplo marcante dessa circulação infinita entre presença e ausência do autor, autoria e crítica é o conjunto de conferências escritas para responder ao convite do Centro Internacional de Estudios Humanísticos Umberto Eco. Embora os textos tenham sido “interpretados” por uma atriz, a leitura das conferências mostra a presença marcante de Ferrante ao apontar, por exemplo, uma origem para a elaboração da relação entre Lila e Lenu, personagens principais de sua famosa tetralogia. Aí, Ferrante comenta o insight que teve ao ler a obra de Adriana Cavarero para retirar dela a dinâmica entre a escritura de LIla e a escritura de Lenu. Quando lemos alguns dos principais comentadores de Ferrante, o episódio é retomado e consolidado como explicação da origem e da dinâmica narrativa da própria Ferrante.
Cŕeditos da imagem: Richard Long, Walking a line in Peru, 1972.
Um indicativo de que há algo distinto na maneira como entendemos o que chamamos de literatura no presente está relacionado ao modo como vamos negociando – às vezes com muita resistência – uma ampliação da maneira como a não ficção vai adentrando o território do literário.
Não é uma questão simples e tampouco é específica de qualquer crise do literário hoje, sequer das artes em geral, porque também é um impasse que vivemos em nosso dia a dia com o enfrentamento às fake news ou com a surpresa meio divertida com o acesso fácil às ferramentas da Inteligência artificial.
A observação de um caso recente pode ser um exemplo instigante para remexer as diversas e problemáticas camadas dessa expansão da literatura em direção à não ficção.
Trata-se de Ioga, último livro de Emmanuel Carrère. Logo no início, fica evidente a habilidade narrativa do escritor francês. Parece que começamos a ler um livro sobre práticas meditativas e de autoconhecimento, mas o narrador, que pretende ser “honesto”, apresenta os conceitos dessa filosofia de vida e também os questiona. Dessa forma, o leitor vence com tranquilidade as cento e poucas páginas iniciais do livro. Depois, vem a escuridão. O livro avança pelo período de convívio do narrador com uma violenta crise depressiva que o leva à internação e aos eletrochoques e mergulha na vida dos refugiados que chegam às costas das ilhas gregas, para onde Carrère vai a fim de fazer um trabalho voluntário. Aí, a narrativa passa a ouvir outras histórias de vida.
E o livro se desmantela ou – se deslocamos um pouco nossa perspectiva- ganha novos arranjos de leitura.
O narrador diz que tem inveja de quem não “desnaturaliza” o que conta, a vida que deseja capturar por escrito. Mas esse pacto é cortado de súbito, quase ao final, quando o narrador afirma que inventou muito: “Frederica é um personagem de romance. Quero dizer: se baseia em um modelo distante de quem é a pessoa com quem compartilhei cursos em Le Pikpa, me embebedei de forma memorável e com quem escutei a “Polonesa heróica” de Chopin, mas todo o resto é inventado. É o que acontece fatalmente quando se começa a mudar os nomes próprios: a ficção toma o poder”.
Algo dessa virada, já tinha sido anunciado antes: “não posso dizer deste livro o que disse orgulhosamente de outros: “tudo o que escrevi é certo”. Ao escrevê-lo devo desnaturalizar um pouco, transformar e apagar um outro tanto porque […] não tenho o direito, nem o desejo de contar uma crise que não é o tema deste relato, e por isso vou mentir por omissão”.
Ioga foi lançado como romance, já que a ex-mulher do escritor identificou passagens que chamou de “um espetáculo apresentado como sincero”, mas que se distanciava muito do que tinha sido vivido. Na carta pública que escreveu para o Le monde afirmou não apenas que Carrère não havia estado sequer uma semana em Leros, a ilha grega na qual encontra com Atiq e Hamid e outros meninos refugiados, como restaura a ordem verdadeira da sequência narrativa afirmando que a depressão relatada por Carrrère é consequência da viagem à Grécia, e não como está no livro, pois quando o narrador chega à ilha, já está recuperado.
E é então que as condições de emergência do livro ganham destaque, invadem o relato e o alteram. A declaração da ex-mulher de Carrère é uma reação ao descumprimento de um pacto formal assinado por ambos que garantia que o escritor não mencionaria mais, a partir do divórcio consumado meses antes do lançamento do livro, esse vínculo afetivo ou circunstâncias privadas que a envolvessem.
Comenta-se ainda que o livro perdeu a indicação ao prêmio Goncourt em 2020, pois a premiação exclui obras de não ficção e o comitê de seleção queria evitar controvérsias. Depois que a polêmica veio a público, muitos críticos encontraram nas exigências contratuais a explicação para o modo como o romance parece mal costurado e caminha para um final que soa inverossímil.
Mais do que encontrar a explicação para o desarranjo narrativo, meu interesse está concentrado em especular sobre a associação, quase natural entre literatura e ficção que o episódio deixa ver. Menos interessante me parece a dimensão, digamos, privada dos bastidores da publicação ou a insinuação maliciosa de Mario Sergio Conti na Folha de que tudo tenha se transformado em autoficção.
Carrère já se referiu ao livro como uma “autobiografia psiquiátrica” e se orgulha de ser um autor de não ficção, mas o imbroglio envolvendo o contrato jurídico com a ex-mulher parece empurrá-lo para o que chama de “desnaturalização” do que narra, o força a cruzar a fronteira da invenção: “Existe um critério que nos permita adivinhar se uma história é verídica ou fictícia? […] Não tenho uma resposta, mas me parece que, sem que possa explicar, intuímos. Eu ao menos o intuio.”
Se a hipótese é válida, a explicação para esse deslizamento, então, está em um elemento externo que atua sobre a autonomia da obra, mas que ao mesmo tempo tenta tirar do episódio um benefício, uma espécie de bônus.
A que me refiro? Já que foi impelido à invenção, Carrère encontra aí a oportunidade de pleitear um prêmio na categoria “melhor volume de imaginação em prosa”. A reação da ex-mulher retira-lhe essa possibilidade, mas o texto tira proveito dessa injunção: se não é autobiografia, é invenção, “não consegui escapar da ‘desnaturalização’ de minha própria vida”, diria Carrère.
E a maquinaria desnaturalizadora, o flerte com a ficção, pode ser notado no fecho da narrativa, que arma um arco-íris de felicidade: o narrador reencontra um novo amor (que também é adepta da prática da ioga!), restaura seu equilíbrio psíquico – o lítio equilibrou seu humor e amenizou sua dor- Hamid e Atiq seguem suas vidas – acompanhadas pelo narrador pelas redes sociais.
Há aí muitas e diferentes versões de como a ficção está sendo compreendida. Meu interesse por esse episódio está na defesa do próprio autor de uma literatura de não ficção e na maneira como parece ter sido encurralado exatamente por essa nomenclatura, pois a repercussão da polêmica e do parti-pris entre os ex-amantes está calcada na ideia de que há uma separação clara entre a ficção e a autobiografia, de que a não ficção é um elemento estranho- e incômodo- à literatura.
Talvez o final do livro de Carrère, que soa inverossímil, perfeito demais e deixa uma mensagem de felicidade seja apenas uma forma de vingança, um revide que expõe a inadequação de uma visão compensatória da literatura, que limitando-a à ficção a toma como fórmula para aliviar-nos da realidade.
Ian Wallace, Contact Sheet for L’Après-Midi, 1977/2012
Para dar conta do modo como o interesse pela autobiografia está presente mesmo em nichos mais comerciais, escolhi investigar o livro Rita Lee: uma autobiografia, escrito pela cantora Rita Lee e lançado no ano de 2016. Após o sucesso estrondoso de sua primeira autobiografia, a cantora anunciou recentemente o lançamento de uma outra autobiografia, que se concentra na jornada da cantora durante o tratamento do câncer de pulmão diagnosticado em maio de 2021 e promete ser um novo best-seller.
Em Rita Lee: uma autobiografia, a cantora se propõe a construir um relato que abarque toda sua vida: infância, trajetória musical e algumas informações sobre sua vida privada. Não há nada de “incomum” até aqui, considerando o entendimento mais tradicional do que significa contar uma vida, que aparece escrita sempre em primeira pessoa e, no caso desse relato, é documentada por muitas fotografias.
No entanto, o projeto editorial apresenta uma curiosidade. Ao longo do relato, encontramos “correções” ao texto por meio de inserções de um elemento gráfico que funciona como uma espécie de personagem tratado na autobiografia como “Phantom”, a representação de um fantasma que interrompe o relato para corrigir as informações dadas na própria autobiografia. No final do volume, o leitor pode identificar esse “personagem”. Trata-se do jornalista e editor de livros Guilherme Samora, apresentado como grande conhecedor da trajetória profissional e pessoal da cantora.
“Não se assuste, sou Phantom, sabe como é. Sabemos que algumas “autobiografias” de artistas são obras de ghost writers. A autora deste livro, entretanto, fez questão de escrever tudo. Sabemos, também, que a memória dela pode trair. E que sua autocrítica (também conhecida como ‘chatice com ela mesma’) pode interferir ou, quem sabe, fazer com que se esqueça de alguns fatos. Então, vou assombrar este livro desembaralhando umas cronologias, apontando dados deixados de fora…”
Mas que interesse esse elemento tem para a investigação sobre a autobiografia? A importância desse recurso no livro chama a atenção não só pela grande quantidade de vezes em que aparece no texto, mas também por supostamente “desmentir” a autora quando necessário, retificando o retrato autobiográfico que se constrói.
Para meus propósitos investigativos, essa intervenção ajuda a especular sobre a representação da autobiografia em nichos mais comerciais, mas aponta também para um impasse decisivo hoje quando pensamos a tensão entre autobiografia e ficção, pois podemos pensar que as correções feitas pelo jornalista retificam as imprecisões da memória, alinham os fatos, capturam a “verdade” do que foi vivido.
Poderíamos ler aí, então, um exemplo persistente da crença na “ilusão biográfica”, tal como descrita por Pierre Bourdieu. Segundo o sociólogo francês, o senso comum acredita que a narrativa de uma vida pode organizar um conjunto coerente e orientado de acontecimentos, presentes no relato a partir de uma ordem cronológica, visando estabelecer uma ordem lógica “coerente” à vida contada.
Por outro lado, ao longo da narrativa, Rita Lee reconhece que o que é contado está contaminado por seu olhar, é modificado pela memória, reconstruído pela narração da própria vida: “Com minha memória já queimada pelos incêndios existenciais que eu mesma ateei, dificilmente lembraria dos bailes da vida onde dancei não fosse meu ‘Colecionador de Mim’, Gui Samora”.
É possível ler aí também uma sugestão de que Rita Lee suspeita da própria capacidade de reconstituir uma inteireza em relação a sua própria experiência, colocando em xeque, portanto, a “ilusão biográfica” (ainda que a reafirme ao solicitar a ajuda de seu “Phantom”). No entanto, segundo o também francês Philippe Lejeune, os eventuais deslizes não chegam a comprometer a noção de “pacto autobiográfico” e a transformar a autobiografia em ficção. Ou seja, para Lejeune autobiografia e romance são gêneros distintos. Assim, apesar das correções de Samora, ou melhor, por causa delas, o pacto de veracidade está mantido com o leitor.
Mas há outro elemento de interesse para a investigação sobre a condição dos textos autobiográficos. Guilherme Samora reconhece que o livro foi escrito a “quatro mãos”. Pode-se considerá-lo, então, ainda uma autobiografia? É interessante notar como as questões presentes em um produto autobiográfico que se tornou best-seller também fazem parte das tensões que marcam as relações entre a autobiografia e a ficção em muitas outras obras contemporâneas.
Créditos da imagem: Metamorphosis (or evolution) – Esther Ferrer, 2005, 4 kusy, Gandy Galéria, Bratislava, foto: Damas Gruska.
Muitos autores atendendo a uma demanda atual se equilibram entre gerenciar suas imagens pessoais e profissionais nas redes buscando uma inserção ou manutenção de seu nome de autor e a circulação e a divulgação de suas produções. Esse pressuposto ajuda a pensar as estratégias discursivas que compõem as identidades autorais do século XXI.
Em março deste ano, minha pesquisa de iniciação científica completou seis meses. O objetivo, já apresentado em postagens anteriores, é analisar as dinâmicas de construção de uma carreira autoral literária atualmente, tendo como foco a observação da performance da autora Natália Timerman em suas redes sociais e refletir sobre como os temas da exposição a essas redes estão presentes em sua obra.
A partir de então, a pesquisa tem aprofundado as reflexões sobre as movimentações e interações intensas realizadas entre a autora e seus leitores/seguidores a partir do grande fluxo de postagens nas redes sociais (Facebook, Instagram e Twitter), para observar a maneira como a identidade autoral de Timerman vai se construindo dentro e fora do texto.
Através do Instagram, em uma postagem de divulgação do seu texto O ghosting real que virou livro de ficção: o que é verdade em Copo Vazio, publicado na coluna semanal que Timerman escreve no site Uol, um comentário de uma leitora/seguidora tanto da coluna semanal quanto do livro Copo Vazio chama a atenção: “beijo pro Pedro que sumiu”. No texto Timerman explica um pouco sobre a recepção do seu romance e sua surpresa na insistência de leitores e crítica acerca da vida que supostamente estaria por trás da obra. Respondendo a essa demanda, Timerman, confirma o mote autobiográfico de Copo Vazio e afirma que de fato levou um “perdido”, tal qual a protagonista Mirela, e que Pedro tem características de um homem com quem se relacionou. O comentário feito nas redes ganha, então, em ambiguidade: a qual Pedro refere-se? Ao protagonista do livro ou ao suposto Pedro que está fora do texto? A resposta de Timerman, por sua vez, dá uma outra camada ainda mais complexa para esta discussão: “rindo alto, quase marquei o Pedro real aqui”.
A proximidade inédita entre autor e leitor, proporcionada pelas dinâmicas das redes sociais, inflama também o interesse e a curiosidade sobre a vida dos autores e esse episódio ajuda a entender como a presença de muitos autores nas redes sociais é uma forma de responder ao desejo contemporâneo pela intimidade. Junto a isso, é inegável que as redes sociais e a exposição do autor na internet funcionam como instrumentos de profissionalização, já que a presença dos autores nas redes é uma forma de atuação para divulgar e promover suas atividades literárias. Timerman, como muitos outros, utiliza esse recurso para divulgar os textos publicados, as entrevistas concedidas.
Em outubro de 2022, em uma entrevista para o podcast Prazer, Renata cujo tema era O que é responsabilidade afetiva? NatáliaTimerman é apresentada como psiquiatra e as perguntas sugerem que o convite está fundamentado no lugar de autoridade que essa profissão lhe dá para falar a respeito dos temas envolvendo relacionamentos amorosos. Mas é curioso observar a maneira como a autora tenta inserir e reafirmar, sempre que possível, ao longo de sua participação, sua condição de escritora, mencionando seu romance e comentando as atuações de seus personagens na história.
Se nos voltamos para sua obra, é possível pensar que Timerman toma como objeto de especulação uma lógica de funcionamento das redes, valendo-se de sua participação intensa no universo virtual como uma espécie de laboratório de criação, já que muitas narrativas expõem temas que exploram as redes sociais e refletem sobre comportamentos e efeitos do virtual em nossa subjetividade e em nossos afetos. A maior evidência desse procedimento está na forma como tematiza a reação de Mirela, personagem principal de seu romance, Copo Vazio, ao desaparecimento de seu parceiro depois do contato por um aplicativo de namoro. Na crônica Sem Tinder, só vida real: a história de um casal que poderia ter se amado, Timerman explora as possibilidades da vida longe das telas do celular. No conto Uma história real, publicado no livro Rachaduras, a autoro tema reaparece para problematizar como as mediações das redes sociais, muitas vezes, são um obstáculo para a intensidade das relações na vida real.
Observando a atuação de Timerman em suas redes sociais, é possível dizer que, motivada pela demanda de seus seguidores, a autora arrisca-se mais à exposição pessoal, ao mesmo tempo que segue alerta – como fica claro, por exemplo no texto O difícil equilíbrio entre exposição e recolhimento – refletindo sobre isso também na construção dos universos ficcionais de suas produções.
A autora apresenta-se nas redes, divulga suas obras, revela algo de sua rotina pessoal e elabora sua produção problematizando questões que implicam esse circuito de exposição e produção. Talvez a análise desse circuito possa ajudar a entender melhor uma performance própria à condição da autoria no presente e, por tabela, a desterritorialização do modo como pensamos a literatura hoje.
Créditos da imagem: Foto: Jorge Silva/Reuters. Ilustração: Zé Otávio
“[…] me asombro, como si yo fuera otro (y es lo que soy)” (Ricardo Piglia, em Los diarios de Emilio Renzi)
Ricardo Piglia, um dos maiores escritores argentinos do século XX, registrou sua vida cotidiana em trezentos e vinte e sete cadernos ao longo de cinquenta anos. O escritor os manteve guardados até 2012, quando decide desarquivá-los e dar início a um trabalho de releitura, seleção e reescritura, transcrevendo e organizando seus cadernos, a fim de publicá-los. Assim, os diários do escritor se convertem em uma série intitulada Los diarios de Emilio Renzi, dividida em três volumes– Años de formación (2015), Los años felices (2016) e Un día en la vida (2017) – que trazem em seu interior memórias íntimas e marcas de uma vida atravessada pela obsessão pela leitura e escrita. Os diários, que podem ser lidos como romance de formação, são construídos a partir de fragmentos, recortes, colagens, metalinguagem e duplos (Piglia/Renzi, realidade/ficção, memória/História), mostrando-se híbridos e complexos.
Piglia publica os diários sob a assinatura do assíduo personagem de suas obras, Emilio Renzi, tido pela crítica como seu alter ego, uma vez que o nome do personagem consta no nome completo do autor: “Ricardo Emilio Piglia Renzi”. Além disso, alguns biografemas da vida de Renzi apontam para a persona extratextual de Ricardo Piglia. Com isso, temos o famoso duplo Piglia/Renzi, visível já nas capas dos livros, escritos por um e assinados por outro. Vemos essa cisão eu/outro com mais nitidez na construção do texto de Piglia, que transita entre primeira e terceira pessoa verbal para falar sobre si, resultando em um distanciamento. O autor, que emprega aspas e citação para dar voz a quem escreve o diário, se afasta do texto, descrevendo-se como outro, apresentando-se como um “biógrafo de si mesmo”, o que torna o texto paradoxal. Com isso, Piglia se distancia da autoria e da responsabilidade do conteúdo dos relatos que apresenta, no entanto, não se desvincula completamente, uma vez que ele coloca em cena seu duplo.
Esse jogo textual ambíguo criado por Piglia, que mais se configura como uma espécie de “mascaramento”, confunde o leitor desprevenido que espera ler a história de um “eu” real e aponta para uma performance do autor, que encena um “eu” e se insinua como uma sombra real no texto. Piglia atua em seus diários, como em uma mise en scène. Ele escreve a partir do reflexo que vê em seu espelho, de modo a eleger o que vai ou não inscrever do real que o cerca, algo próprio da escritura performática do diário, segundo o professor e crítico Seligmann-Silva.
Assim, Piglia constrói uma narrativa autoficcional. Ele afasta-se da experiência para refletir sobre ela e atribuir-lhe novos significados, recriando-a e recriando-se como ficção. Desse modo, essas duas personalidades fragmentadas criadas no texto, Piglia/Renzi, se imbricam, se confundem e nos confundem. Com isso, Piglia joga um jogo performático, de afirmação e negação, que afasta o compromisso com a “verdade” e conspira contra a possibilidade de transmitir a realidade, colocando em cena, de maneira mais evidente, o caráter ficcional da obra. Além disso, em Los diarios de Emilio Renzi, Piglia nos apresenta os mecanismos de construção da memória; problematiza a figura do autor; nos mostra a ficção como estratégia de lidar com a realidade; além de nos revelar os bastidores da criação de algumas de suas obras. Assim, ele escreve, também, para manter ativas as lembranças; para que seu testemunho pessoal perdure; para lembrar e ser lembrado, de modo a escrever para si e para outros, “arremessando-se no vazio para que algum leitor o segure no ar”.
Carla Barreto é doutoranda em Teoria e História Literária no Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).