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Pandemia, epidemias e produção discursiva

Ramon Amorim

Créditos da imagem: © REUTERS/Borut Zivulovic

Diante de uma pandemia, podemos perceber que alguns elementos presentes em outras epidemias que assolaram o mundo se repetem. Do ponto de vista da linguagem, podemos ver que determinados discursos e comportamentos são reiterados sempre que uma doença se espalha de forma irrefreada.  Considerando a polarização política que o mundo observa, eles tendem a ficar mais latentes e agressivos, principalmente se considerarmos as redes sociais, esse universo quase ilimitado de produção discursiva.

O primeiro desses elementos é a epidemia discursiva* que corre em paralelo à doença e diz respeito à produção discursiva que aparece como reação a um problema sanitário emergente. Para se ter uma ideia do poder de repercussão, principalmente nesse universo digital social no qual vivemos, ao pesquisar o termo “coronavírus” no principal site de busca, o Google, são encontrados quase 2 bilhões e meio de resultados. Se a mesma experiência for feita utilizando termos como “AIDS”, “gripe” ou “dengue”, alcançamos algo próximo a 1 bilhão de resultados.

Essa experiência nos dá margem para comprovar a existência de uma epidemia discursiva sobre coronavírus, tal qual como houve em relação a HIV/AIDS no início da década de 1980. O que difere as duas é que a primeira tem na cultura digital sua principal alavanca de discussão, o que não ocorreu com a segunda, que teve nas mídias “analógicas” seu principal meio de difusão. Esses números sugerem ainda que a produção discursiva sobre a atual pandemia cresce junto à polarização política, visto que os principais líderes mundiais a utilizam para capitalizar atenção midiática, principalmente os que relativizam sua gravidade, buscando assim construir narrativas alternativas às mais ponderadas e previsíveis.

O outro elemento que destaco faz parte do que aqui é chamado de epidemia discursiva, porém opera de forma mais específica e diz respeito à produção discursiva sobre a gênese da doença. O dramaturgo francês Antonin Artaud (1896-1948), em O Teatro e seu duplo, aponta que é um comportamento recorrente durante uma epidemia buscar uma origem para o infortúnio. O que também ocorre quase sempre é atribuir essa origem a um país/território considerado, pelos países ocidentais com economia mais desenvolvida, excêntrico e/ou pouco desenvolvido. Assim, o imaginário colonizador/capitalista sempre que possível aponta o mundo oriental e o continente africano como responsáveis pelas doenças que atingem o planeta. Por isso, apontar a China como o “berço” do coronavírus é apenas mais uma faceta habitual da epidemia discursiva em curso.

Diante disso, chamo atenção para o fato de mesmo diante de tantas menções à pandemia em curso, a produção ficcional sobre o tema ainda ser incipiente. Se considerarmos, por exemplo, o que foi produzido sobre HIV/AIDS, Caio Fernando Abreu escreveu uma novela meses antes do primeiro caso de HIV ser confirmado no Brasil. Afora o “Diário do isolamento”, do qual Marília Costa falou aqui neste blog, e de uma parca produção de cordéis, não se tem notícias de contos, novelas, romances ou mesmo biografias sobre o período em que estamos mergulhados. Milton Hatoum, em matéria da Folha escrita por Walter Porto no caderno Ilustrada de 03/04/2020, aponta que “a ameaça é real e palpável”, por isso a dificuldade em dar tratamento literário à pandemia em curso e produzir ficção de uma forma geral.

A conclusão a que se chega diante desses tempos e da falta de material ficcional sobre o tema sobre o qual estamos tanto falando, escrevendo, postando e “ twittando”, é que ou a velocidade de propagação do Covid-19 não tem concedido tempo para essa produção, ou a gravidade da situação não favorece a elaboração de subjetividades.

* O termo é utilizado por Marcelo Secron Bessa ao tratar da produção discursiva sobre HIV/AIDS no Brasil

Pandemia e literatura

Marília Costa

Créditos da imagem: Escritório em uma pequena cidade, Edward Hopper, 1953/ Reprodução Wikiarte

Nesse cenário quase pós-apocalíptico de medos e incertezas diante da pandemia que assola o mundo e das providências para tentar conter a transmissão do covid-19 e evitar o colapso no sistema de saúde, notamos uma movimentação das editoras, dos autores, e dos críticos e teóricos na tentativa de se manterem ativos no campo, adequando-se às novas circunstâncias e ferramentas digitais. Ricardo Lísias tem oferecido um curso de literatura francesa contemporânea através de lives no Instagram. A poeta Marília Garcia vem ministrando oficinas online no youtube de escrita criativa em parceria com a editora Companhia das Letras e o escritor Leonardo Villa-Forte ministra oficinas de criação literária online pelo aplicativo Zoom em colaboração com a Casa Contexto. Além disso, muitas editoras e plataformas como a Companhia das Letras e a Amazon estão disponibilizando parte do seu acervo literário digital gratuitamente a fim de incentivar as pessoas a ficarem em casa.

Eu gostaria, contudo, de comentar mais detidamente o projeto “Leia em casa” do blog da editora Companhia das Letras que vem  publicando periodicamente “Diários do isolamento”, produzidos por autores como Jarid Arraes, Fábio Moon, Luisa Geisler e muitas outras vozes que narram suas experiências no contexto da pandemia e do isolamento social. Os relatos, apesar de multifacetários, dialogam entre si e produzem um discurso coletivo sobre essa vivência nova experimentada não só pelos escritores, mas por toda a sociedade. Esse empreendimento fomentado por uma das maiores editoras brasileiras me levou a recuperar algumas inquietações da deliberação barthesiana sobre a conveniência de manter um diário de escritor, ou seja, o valor daquilo que se escreve nessa condição, se seria digno de publicação ou não. “Deveria escrever um diário com vistas à sua publicação? Poderia converter o diário em uma ‘obra?”, Barthes se interroga.

Um diário de escritor é aquele texto que, sem abrir mão de registrar o íntimo ou o particular, é espaço para mostrar a junção entre vida e anotação. O exercício de manter um diário coloca em xeque para os escritores dilemas inerentes ao procedimento literário, pois combina os impasses da linguagem com o desafio de representar elementos da vida. Barthes percebe na prática do diário um encontro entre a escrita pessoal e a elaboração da obra literária, vendo na prática diária da anotação características comuns à literatura como a imaginação e o fetichismo da linguagem, presentes tanto no exercício biográfico quanto na ficção.

Procedimentos on-line muito utilizados por influenciadores digitais, blogueiras e youtubers são cada vez mais presentes na atuação dos escritores nas redes. Se, na literatura como em outras artes, o século XXI é considerado uma época de grande valorização da intimidade, um período de verdadeira obsessão pelo vivido, em que muitos autores têm investido na exposição da intimidade como matéria literária, como a exposição nas redes no período de isolamento social pode potencializar a criação de poses e transformar a figura do autor e os textos que esses autores produzem?

A anotação diária, o exercício com o fragmento de escrita e o ensaio de si podem ser pensados também como um laboratório que testa novas formas de contar e  funciona como experimentação com a autofiguração do escritor.