Arquivo do mês: setembro 2023

Entre exposição e recolhimento

Luana Rodrigues

Créditos da imagem: Imagem registrada pela fotógrafa Mariana Vieira Elek e retirada do perfil no Facebook da autora Natalia Timerman.

No final de 2022, investi em uma pesquisa de iniciação científica que se propunha a explorar as nuances da autoria contemporânea, com um foco particular na escritora Natália Timerman. Além de sua carreira como psiquiatra, ela já havia dado vida a três obras: Desterros: histórias de um hospital-prisão, publicado pela Editora Elefante em 2018; Rachaduras, pela Editora Quelônio em 2019, e seu primeiro romance Copo Vazio, pela Todavia em 2021). Desde o início dessa investigação, a pesquisa teve como objetivo observar os trânsitos entre a atuação da autora na internet e  a  construção de um mundo ficcional acompanhando suas publicações (sobre isso falo em algumas outras publicações aqui no blog). A análise  indicou uma possível guinada autobiográfica, ou seja, uma mudança em direção a uma narrativa mais autobiográfica, na qual a autora se aventuraria a explorar aspectos mais pessoais e biográficos em sua exposição pública.

Durante o período de criação de seu mais recente romance, intitulado As Pequenas Chances, mudanças sutis se desenharam em sua trajetória. Timerman passou a compartilhar, de maneira mais frequente, fotografias e relatos acerca de seus pais, com um foco especial em seu pai, que já havia falecido. A partir desse momento, uma clara transição se delineou, tanto no tom de suas publicações, que se tornaram mais pessoais, quanto no gênero literário do novo livro que estava por vir. Hoje, estamos cientes de que o livro em questão se insere no universo do romance autoficcional, abordando temas de família e luto, com um enfoque especial na experiência de Natália, a autora que também assume o papel de personagem/narradora, diante das complexidades da perda e da memória.

Essa transformação nas postagens nas redes sociais e na temática de suas obras revela também uma interação entre elementos de sua vida pessoal e sua criação literária. É um mergulho profundo na fusão da realidade e da ficção, um território onde a narradora e a personagem se entrelaçam em uma dança intrincada, criando uma rica tapeçaria de reflexões sobre a vida, a morte e as histórias que tecemos a partir delas.

A análise sobre a atuação da autora em suas redes e de sua trajetória literária aponta para uma percepção muito consciente de Timerman de questões que são as de nosso tempo e também estão presentes no campo literário: não apenas a exposição autobiográfica do autor, mas também a exposição da intimidade na internet. Como pesquisadora doutoranda que se dedica ao estudo de autores que colocam em xeque o nome do autor, como Knausgård e Ferrante, Timerman expõe suas inquietantes dualidades: o anseio pela exposição e o desejo pelo recolhimento. Poderíamos pensar que sua incursão no terreno da autoficção em sua mais recente obra é mais um elemento que confirma essa ambivalência, já que o termo é calcado no pacto ambíguo que pede aos leitores para identificar e ao mesmo tempo não identificar autor e narrador/personagem.

Assim, publicando uma autoficção, Timerman parece ter encontrado um terreno fértil que acomoda as ambiguidades que permeiam sua jornada autoral. Este movimento representa, igualmente, um gesto de negociação em relação à exposição de sua própria imagem como autora, como se ela estivesse buscando um equilíbrio delicado entre o revelar e o ocultar, o pessoal e o ficcional, na construção de sua obra e também na construção de seu nome como autora.

A perda da noção de urgência do HIV/aids em relação à produção narrativa brasileira

Ramon Amorim

Créditos da imagem: Kia LaBeija, Negotiating, 2018

Durante a pesquisa para a confecção da tese, tenho me deparado com uma gama de caminhos possíveis para discutir a questão do HIV e da aids na produção narrativa brasileira. Chama a atenção a reflexão sobre a perda da noção de urgência relacionada à crise de saúde pública que emergiu com a epidemia da década de 1980.

Visando discutir questões relacionadas à produção literária oriunda dos primeiros anos da epidemia, Italo Moriconi estabelece o conceito de “escrita da aids”, tendo a noção de literatura de urgência, associada a uma experiência extrema, como um dos pilares para entender o termo. Nesse texto, publicado em 2006, momento em que já havia a aplicação de Terapia Antirretroviral com relativo sucesso, Moriconi calca seu comentário sobre a morte do autor Caio Fernando Abreu e sobre sua novela Pela noite, primeira produção nacional a fazer referência à aids, ainda no ano de 1983, referindo-se, no  entanto ao período de emergência do HIV e da aids.

É o aumento da eficácia dos medicamentos antirretrovirais que demarca uma nova forma de abordagem dos produtos estéticos na sua maneira de discutir o HIV/aids. As chamadas “Narrativas pós-coquetel”, termo cunhado por Alexandre Nunes de Sousa e apresentado em artigo publicado no ano de 2015, passam a ser a tônica da produção cinematográfica e literária. Considerando os anos finais do século passado como marco histórico que dá início a essa nova forma de ocupar-se da temática aqui citada, o pesquisador cita obras, sobretudo de autores norte-americanos, para indicar como essa nova abordagem aparece.

O que se vê na produção literária a partir da percepção da perda de urgência da abordagem temática da epidemia, é também a perda de centralidade das questões sobre HIV e aids. A partir do momento em que se estabelece que o vírus pode ser controlado com medicação e que assim a doença deixa de se manifestar, transformando-se em uma patologia crônica, como tantas outras, a questão passa a ser abordada de forma colateral, quando não é apagada ou mesmo tratada como temática superada.

Essa discussão ainda carece de reflexão, pois a mudança no manejo do HIV e da aids, com o uso da PREP e da PEP, por exemplo, quase não foi colocada em perspectiva em relação a como a produção narrativa tem abordado a questão. Se a emergência da epidemia e a literatura de urgência, produzida como resposta a esse fato, ofereceram imagens tão contundentes, principalmente pelo protagonismo do vírus e da doença nas obras e nos discursos sobre essa temática, que tipo de imagens estão sendo e serão ainda produzidas diante da perda de centralidade do HIV/aids e da sua perda da noção de urgência, marcada também pelos avanços farmacológicos?

Elena Ferrante, crítica

Allana Emilia

Créditos da imagem: Daniel Garcia, Siirena. Acrílico sobre tela, 2022.

Seguindo os rastros do post anterior,continuo a discutir a atuação de Elena Ferrante sobre a crítica de seus escritos ficcionais. Mas, dessa vez, quero partir do comentário sobre uma obra específica mencionada pela autora, que alterou o curso de sua escrita a partir de sua segunda leitura. Esse processo foi marcado pela (re)leitura de  Non credere di avere dei diritti (Não pense que você tem direitos), um volume coletivo publicado em 1987 pela Livraria Feminina de Milão, obra que se tornou muito importante para o feminismo italiano.

Nesse livro, a história de Emilia e Amalia se entrelaça porque, frequentando a  mesma escola, ambas mantêm uma relação mediada pela escrita. Amalia é falante e tem facilidade com a escrita, mas Emilia não consegue a proficiência da amiga, por isso Amalia presenteia-lhe com um texto no qual escreve a vida de amiga: «uma vez escrevi-lhe a história da sua vida real, porque já a sabia de cor”.

Em Tu che mi guardi, Tu che mi racconti (Você que olha para mim, você que me diz), Adriana Cavarero, filósofa italiana,  retoma a história das duas meninas para compará-las às narrativas épicas de Ulisses. Nos subúrbios milaneses, a trajetória de duas meninas se entrelaça: «a primeira escreve a história da segunda porque esta a conta continuamente e de forma desordenada, mostrando-lhe a sua obstinada vontade de narrar», diz Cavarero em seu livro.

É a própria Ferrante quem desata esses fios em inúmeras oportunidades, não deixando dúvida sobre a importância que a leitura de Cavarero teve para a composição de suas protagonistas, Lila e Lenu: “Para simplificar: eu conto a você a minha história para que você a narre para mim’. Entusiasmei-me. Era o que eu – de forma despretensiosa – estava tentando criar no meu esboço de romance interminável centrado em duas amigas que entrelaçavam, de maneira menos edificante que Emilia e Amalia, os relatos de suas vivências.”

Essa clareza na exposição de suas rotas de composição desvenda um outro movimento: a forte intervenção que Ferrante faz sobre sua fortuna crítica. Em alguns trabalhos, – a exemplo da tese de doutorado de Victor Zarour Zarzar e o livro Finding Ferrante, de Alessia Riccardi –  a menção a Cavarero e a seu livro torna-se central para a  análise da amizade entre Lenu e Lila e da intensa mediação que mantêm com a escrita, o saber, ao longo de suas vidas.

Em As Margens e o Ditado, um conjunto de conferências escritas por Ferrante, suas “influências” são reiteradas, mas agora também aparecem reafirmadas pela menção a obras que analisam seu trabalho e reforçam a importância da leitura de Cavarero para a composição da tetralogia. Esse reforço é interessante porque sugere, por parte de Ferrante, uma certa supervisão e julgamento dos procedimentos interpretativos sobre seus textos ficcionais. Se for assim, não é possível deixar de notar uma certa ambivalência em relação ao desprezo que atribui à revelação de sua identidade como autora, como reafirma em Frantumaglia, ao negar a importância da revelação de seu nome verdadeiro para a leitura de sua obra: “eu a escrevi; se o livro for de algum valor, isso deve ser suficiente”.

Resenha de As pequenas chances, mais recente livro de Natalia Timerman

“é preciso estar pronta para escutar as pequenas chances que o passado dá…”

Luana Rodrigues

Créditos da imagem: Ana Elisa Egreja. Natureza morta com ovos, 2023. Obra de arte concebida especialmente para a capa do livro As pequenas chances.

 “A morte é abstrata mas dói em detalhes concretos, e essas duas instâncias, a concreta e a abstrata, nunca se encontram, daí a estranheza”.

Após imergir nos sentimentos que permeiam os relacionamentos contemporâneos em Copo Vazio, Natália Timerman agora se aventura por um outro caminho, narrando em seu novo livro uma ausência ainda mais difícil. Em As Pequenas Chances, Timerman explora a tensão entre a ficção e a vida, desfiando as lembranças que envolveram a morte de seu pai e o nascimento de seu primeiro filho: “parir é partir: ir embora de si mesma, e então poder chegar de novo depois de morrer”. As páginas desta obra esculpem um caminho sinuoso que vai do luto profundo à celebração da vida, no qual as lembranças e o amor se entrelaçam como fios de um tecido emocionalmente denso.

As Pequenas Chances se desdobra em três capítulos que adotam uma tonalidade por vezes ensaística, tecendo uma intricada mescla do pessoal e do coletivo. Nas duas primeiras partes da obra lemos a intensidade dos sentimentos de luto, acompanhamos a autodescoberta de Natália e o retorno angustiado da irmã Gabi que, do outro lado do mundo, espera chegar a tempo de ver o pai com vida. A terceira parte vai ao encontro da dimensão coletiva da narrativa. Nessa etapa, a trama desloca-se para o panorama mais abrangente da história judaica, numa tentativa de traçar as linhas que conectam não apenas a família de Natália, mas também diversas outras famílias judias que encontraram abrigo no Brasil no início do século. Através dos emaranhados da realidade e da ficção, as lacunas da história coletiva e as memórias do pai de Natália podem tornar-se presença viva.

A narrativa nos conduz, então, desde as tentativas da protagonista de encontrar uma ordem interna diante da inescapável realidade da morte de seu pai até a jornada de Natália, personagem central, através de terras romenas e ucranianas em busca de uma possível reconstrução das memórias de seus avós. Esses avós, judeus que emigraram para o Brasil antes da Segunda Guerra Mundial, surgem como figuras que continuam a ecoar no tecido de sua existência e nas páginas desta narrativa multifacetada.

Assim, a autora, através de sua escrita, encontra uma voz que ressoa na intensidade de seu próprio luto, uma voz que reverbera na tessitura das palavras que constrói. O eu narrativo se manifesta como um agente ativo, utilizando a escrita não apenas como um meio de expressão. A narrativa explora os matizes da perda e reelabora a própria subjetividade da protagonista a partir da consciência brutal da mortalidade: “A morte é abstrata porque nunca vivemos o tempo todo na presença de alguém. A ausência das pessoas faz parte da vida, sempre se dá, cotidianamente; nada indica que seja definitiva dessa vez. A pessoa estava longe porque ia trabalhar, viajava, ficava na sua casa ou dormia. Tudo está mais ou menos no mesmo lugar, vive-se na mesma cidade, a mesma rotina, então a consciência repentina e aleatória que nos assalta de tempos em tempos, de que a ausência agora é definitiva, causa também algum tipo de culpa, como se, ao nos depararmos com o definitivo da morte, a estivéssemos provocando de novo”.

“Alguém sabe quem eu sou, alguém espera por mim”

Lílian Miranda

Créditos da imagem: Cena do filme “Marte um” de Gabriel Martins

Meu primeiro contato com o termo afropolitanismo foi durante o desenvolvimento do meu último projeto de pesquisa da iniciação científica, que terminou no ano passado. O pensamento filosófico do autor camaronês Achille Mbembe em sua obra Crítica da Razão Negra põe em xeque a noção de raça e a compreende como “uma ficção útil de uma construção fantasista ou de uma projeção ideológica cuja intenção é desviar a atenção dos conflitos antigamente entendidos como mais verossímeis”.

 A crítica construída por Mbembe sugere que, enquanto construção social, negro é uma classificação relacionada a uma condição de existência subalternizada, uma categoria a quem foi negada humanidade. Para o autor, essa percepção econômica se inicia quando o negro é transformado em mercadoria , “a cripta viva do capital” e segue firme diante do curso neoliberal globalizado. A terminologia “negro” é uma invenção que só significa para simbolizar o “ser-outro”, ligado principalmente à relação de senhor e escravo. 

O trabalho teórico de Mbembe aponta para saídas possíveis a esse cenário que apostam numa realidade futura sem a carga negativa atribuída à raça, “mas isso só seria possível por meio da justiça, da restituição e da reparação”. Atrelado a isso, a noção de afropolitanismo é entendida como uma forma de ser no mundo, uma estilística ou tomada de posição política e cultural que recusa a identidade vitimizadora.

Desde que pensei o afropolitanismo como uma chave de leitura para o livro Um Defeito de Cor, tenho buscado outras obras que optem por um deslocamento da condição de negro vinculada a uma epistemologia branca e colonializada. Nas últimas semanas, pude ler e assistir dois trabalhos que contam histórias centradas em explorar subjetividades, sonhos e personagens-sujeitos negros e desejantes.  

 Sonhei com o anjo da guarda o resto da noite, de Ricardo Aleixo, autor e poeta intermídia, é um livro de relatos pessoais que contam sua infância em Campo Alegre, bairro periférico de Belo Horizonte, mas também narram experiências que o formaram como artista, relações e influências que foram fundamentais para sua identidade como poeta. Embora tenha explicitado na capa o subtítulo “Memórias”, o livro se apresenta quase como um conjunto de ensaios que reúnem reflexões teóricas, interpretações de poemas do próprio autor, e não dispensa uma linguagem literária e poética para relatar os acontecimentos de sua própria vida.

Em entrevista ao podcast “Página cinco”, episódio 148 “o menino que o sistema literário não conseguiu deter”, Aleixo explica que o livro foi resultado de uma sugestão do editor. Seu processo de escrita de uma “memória imaginante” tratou de selecionar os acontecimentos que ele considerou que seriam interessantes para seus leitores e o representavam enquanto artista que se considera afropolita e faz parte do que chama de áfricas dispersas, num sentido de dispersão, como utilizado na botânica (noção próxima à ideia de áfricas espalhadas, que ele atribui a Sheila Walker).  Ao ser questionado sobre os entrelaçamentos entre memória, realidade e ficção, Aleixo responde: “penso que a própria circunstância de ter me tornado escritor numa família pobre na periferia de Belo Horizonte já tem seu quê de ficcional”

Outra produção a ser lida que pode deixar ainda mais claro o modo como Mbembe  pensa o afropolitanismo é o premiadíssimo Marte um, filme de Gabriel Martins. Lançado originalmente no Festival Sundance 2022, o filme retrata a vida de uma família mineira de classe média baixa vivendo no Brasil de 2018 logo após a eleição do ex-presidente Bolsonaro (embora o filme não tematize em primeiro plano esse evento).

Deivinho quer ser astrofísico, enquanto isso, seu pai Wellington sonha que ele entre para um clube de futebol profissional, ao mesmo tempo Eunice, a filha, vive uma paixão e surge nela o desejo de sair de casa, já a mãe, Tércia, sofre com as consequências de uma experiência traumática que lhe ocorreu numa lanchonete. Ainda que se centre num núcleo familiar composto por pessoas negras que vivem com algumas dificuldades financeiras, esse não é o foco da história, cada personagem tem sua própria trajetória e camadas que os constituem, com dilemas complexos referentes a seus próprios sonhos e desejos, tratados com leveza e sensibilidade, numa trama que não propõe soluções mas desenrola numa teia de relações humanas que simboliza bem o que é a própria vida.

Entendo que histórias como essas enunciam um discurso em que a raça não se dissocia dos eventos narrados mas deixa de ser o foco principal. Tanto em Um defeito de cor e Sonhei com o anjo da guarda o resto da noite  quanto em Marte Um emergem gestos autorais que podem ser entendidos como afropolitanistas e desejam contar histórias que subvertem o determinismo ditado pela lógica colonial que ainda insiste em imperar sobre o imaginário brasileiro.

À leitora com o livro na mão: um ano sem Sylvia Molloy

Ludine Alves1

Créditos da imagem: Imagem retirada da entrevista “Retazos – Una conversación con Sylvia Molloy” realizada pela University of Bergen em 2019. (https://vimeo.com/357527188)

Considerei pela primeira vez a escrita de uma autobiografia quando li Citas de Lectura, de Sylvia Molloy. Neste livro, publicado em 2017, a escritora argentina narra sua vida através dos momentos marcantes que compartilhou com os livros e com a leitura. Não quer dizer que em todos os pequenos ensaios que compõem o volume a autora trate exclusivamente de histórias marcantes que leu nos livros, ou de como determinada narrativa lhe incutiu este ou aquele sentimento. Antes, aborda a maneira como a leitura lhe formou a personalidade e, sobretudo, como o objeto livro e o ato de ler, tão fundamentais em sua trajetória pessoal e profissional, são indissociáveis do contar de sua própria história.

Me pareceu genial a ideia de escrever memórias cujo fio condutor fosse a literatura: o fato é que já li muitos livros e, assim como Molloy, poderia escrever sobre o primeiro romance que li, sobre alguém importante que me presenteou com um livro há muito desejado, sobre um personagem do meu livro favorito, sobre aquela vez em que peguei um livro emprestado na biblioteca da escola e, por ter gostado muito, nunca devolvi. Quando quis escrever essa minha autobiografia de livros, lembrei de uma frase que li certa feita no prefácio da edição brasileira de Léxico Familiar de Natália Ginzburg, escrito por Alejandro Zambra: “É impossível lê-lo sem imaginar este outro livro próprio que ainda não existe, mas que deveríamos, por pura gratidão, escrever.”

No último 14 de julho, completou-se um ano do falecimento de Sylvia Molloy. De herança, ela nos deixou riquíssimas contribuições no que diz respeito à crítica literária hispano-americana, dois romances, além de uma porção de livros com teor autobiográfico/memorialístico, pequenos em extensão, mas de profundidade e complexidade inquestionáveis. Sua obra é marcada por questões de identidade, pertencimento, memória, gênero e sexualidade, e, claro, pelo amor pelos livros. No prefácio de Vale o escrito: a escritura autobiográfica na América Hispânica, uma das publicações mais conhecidas da autora, Silviano Santiago diz que a obra de Molloy é “um elogio ao livro, à literatura e à leitura, independentemente das considerações sobre barreiras geográficas ou linguísticas.”

Por pura gratidão, como disse Zambra, quis escrever meu próprio Citas de Lectura, mas não levei o projeto adiante. Apesar disso, inicio em breve a execução de outro projeto que parte da leitura de Molloy: uma pesquisa de mestrado cujo objetivo é investigar de que maneira o livro e o ato de ler aparecem na obra autobiográfica da autora argentina, como essa “solicitação do livro” se relaciona com sua própria produção crítica acerca da autobiografia hispano-americana, e de que forma esta estratégia textual instala sua produção em meio às possibilidades para a produção autobiográfica contemporânea.

Apesar da sua partida há um ano, triste aniversário que motivou a escrita desse texto, sinto grande contentamento pela possibilidade de trabalhar com uma obra tão valiosa e relevante, que contribuiu e seguirá contribuindo não apenas para a análise e compreensão da literatura e da autobiografia contemporânea, mas sobretudo para a sua apreciação. Ao dar os primeiros passos na minha jornada como pesquisadora, em meio às inseguranças e incertezas, encontro algum conforto na ideia de que estudarei a obra de quem se dedicou à literatura, primeiro, por amor: Sylvia Molloy, que antes de ser crítica literária, escritora, professora, foi, e em seus livros será para sempre, a leitora com o livro na mão.

1 Ludine Alves é mestranda do Programa de Pós-graduação em Literatura e Cultura da UFBA,e seu projeto investiga a solicitação do livro na obra autobiográfica de Sylvia Molloy. É bacharel em Letras (Língua Estrangeira Moderna) pela mesma universidade. Durante a graduação, foi bolsista de iniciação científica (FAPESB), tendo desenvolvido uma pesquisa sobre práticas inespecíficas no espaço biográfico contemporâneo.