Arquivo da categoria: performance

Novos desenhos no tapete

Nivana Silva

Créditos da imagem: Blind light – Antony Gormley

No final do século XIX, Henry James escreveu uma grande novela intitulada O desenho no tapete e que foi apropriada pelo alemão Wolfgang Iser como mote inicial para a discussão empreendida em seu livro O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Narrada em primeira pessoa por um crítico literário encarregado de escrever uma resenha sobre Hugh Vereker (um famoso autor contemporâneo do crítico), o texto de James tematiza a incansável procura do narrador por certo “sentido oculto” no trabalho sobre o qual se debruça, procura essa motivada pelo próprio autor que, num encontro com seu resenhista, diz a ele “há em minha obra uma ideia sem a qual eu não daria um tostão pelo trabalho inteiro. […] é o ponto que cabe ao crítico encontrar”.

Disposto a decifrar “algo como um desenho complexo num tapete persa”, o narrador empreende sua busca incessante nas páginas impressas para captar uma suposta significação que estaria nelas, o que se revela infrutífero ao longo da narrativa. E é a partir daí que a novela dá espaço para que Iser, décadas depois, endosse seu argumento a respeito da apreensão do sentido como imagem, que não está dada de antemão, pois se materializa no ato da leitura e é resultado de um efeito experimentado pelo leitor. Sendo assim, o texto literário estaria aberto a diferentes preenchimentos de significados, colocando em xeque as visões imanentistas e as crenças em possíveis interpretações “corretas” daquilo que se lê.

Recentemente, pensando a relação entre autor e leitor na literatura contemporânea, a discussão de Iser me chamou a atenção por um motivo pouco enfatizado em sua análise: em O desenho no tapete, a procura do narrador pelo “verdadeiro sentido” impresso na obra é impulsionada pelo próprio Vereker, cuja fala, já citada, funciona como um gatilho para a investigação desenrolada em seguida. Quero dizer com isso que, para o resenhista, ouvir a declaração do autor foi fundamental para, mesmo sem sucesso, tentar perseguir “o ponto que cabe ao crítico encontrar”, questão que me remete aos modos como a recepção, atualmente, tem sido impactada pelas inúmeras exposições autorais.

Antes de qualquer coisa, é preciso levar em conta que o leitor, especializado ou não, exerce um importante papel na circulação de um nome de autor, pois a obra também vai sendo moldada com a influência do público, ou seja, à medida que a figura autoral vai construindo uma recepção, uma assinatura vai sendo forjada. É como se o autor, quando começasse a escrever, não tivesse uma ideia precisa de qual é a sua marca, porém ela pode se consolidar concomitantemente à ampliação da obra, porque o público contribui para que esse “estilo” seja delineado, sendo “fruto das avaliações dos leitores, dos pares e da crítica” (como afirma o crítico francês Jèrôme Meizoz) e não apenas de uma autocriação. Dito isso, vale notar como, na literatura contemporânea, as apropriações da obra (ou a produção de sentido como imagem, se quisermos usar os termos de Iser) são bastante influenciadas pelos posicionamentos autorais fora dela, pela performance do autor por meio de suas aparições físicas e virtuais.

Para exemplificar, voltemos aos últimos posts aqui do blog. Em “A autora, a entrevista e o romance”, Caroline Barbosa sinaliza a recorrência de análises literárias baseadas na performance autoral, atentando para o fato de que entrevistas de Carola Saavedra e resenhas sobre ela lançam mão de suas falas como norte para sugerir uma aproximação entre vida e obra da autora. Algo semelhante tem acontecido por ocasião da publicação de A ocupação, de Júlian Fuks, cujas entrevistas, como a citada por Luciene Azevedo em “O que é uma literatura ocupada?”, têm funcionado como chave de leitura para muitas análises sobre o último romance do autor. E ainda sobre as declarações dos autores fora da obra, Carolina Coutinho não deixa de mencionar em seu comentário sobre Algum lugar, de Paloma Vidal, que, a partir das entrevistas concedidas pela autora, tomamos conhecimento de um dado biográfico que se estende para o texto.

Dessa maneira, é possível arriscar que as exposições dos três autores são, de algum modo, apropriadas pelo público para estabelecer uma relação entre o que é dito nas aparições midiáticas e questões acionadas nos livros, ou seja, parece não bastar que a obra forneça elementos para que o leitor “preencha” seu sentido, porque os posicionamentos do autor também têm operado como porta de entrada para as formas como seu trabalho é lido e avaliado pela recepção. Nesse caso, ainda que o papel do leitor continue sendo imprescindível para “desvendar” o desenho no tapete dos textos literários, a figura autoral está, hoje, cada vez mais realçada nesse processo.

Publicidade

A autora, a entrevista e o romance

Caroline Barbosa

Créditos da imagem: O dentro e o fora , 1963, Lygia Clark.

Tem se tornado muito comum encontrarmos análises em que a performance pública do escritor é trazida como um elemento para analisar sua produção literária. As perguntas elaboradas pela Bondelê, um canal de resenhas e entrevistas da internet, para a  entrevista realizada, em 2018, com Carola Saavedra insistiam que a autora relacionasse elementos biográficos para comentar aspectos de seu romance, Com armas sonolentas. Apesar de a obra não poder ser considerada uma autoficção (não há correspondência entre o nome da autora, da narradora ou de nenhuma personagem), inúmeras entrevistas e resenhas insistem em aproximar a autora (suas opiniões, mas também dados biográficos) a seus personagens.

Arriscaria a dizer que o tópico mais comentado nas resenhas e entrevistas que a autora compila em suas redes sociais diz respeito à relação que mantém com sua filha, já que o romance trata também de relações filiais. O tema da maternidade, que diz respeito à personagem Anna, é quase infalível nas perguntas lançadas a Saavedra que é solicitada a expor sua opinião, sua posição sobre o tema. Para a autora, o desejo de ser mãe era mascarado por concepções patriarcalistas que colocam a mulher em um local de precisar escolher entre a maternidade e a carreira e por esse motivo, maternar se tornou uma questão complexa em sua vida até a chegada da filha:

É porque tem a ver com a minha trajetória, pra te falar da questão da Vitória, e quando a minha filha nasceu, aí eu que passei anos da minha vida, tipo, eu não queria ser mãe, sabe, porque eu me colocava totalmente nesse lugar “não, eu não vou ser mãe porque eu tenho que escrever” e aí nisso tudo eu comecei a querer ser mãe eu falei ‘porque que eu tenho que escolher ou escrevo ou sou mãe’ então nesse momento poder dizer ‘não, eu quero ser mãe e quero poder escrever’, enfim essas coisas acontecem.

Drama semelhante é vivido pela personagem Anna no romance, pois ela sonhava em ser atriz e ao engravidar sente que a criança não faz parte dela “Quando soube que estava grávida, fingi que não era comigo (…) A mulher não grávida se olhava no espelho e não se reconhecia”.

Nas entrevistas, aparece também o comentário sobre a relação entre Maike e a Avó que tematiza a questão da identidade e da ancestralidade. Para a autora esse romance de formação das mulheres lhe atravessa e nas entrevistas é possível ver traçada uma linha quase reta entre a narrativa que aborda questões sobre a condição da mulher e a maternidade e a escritora Carola Saavedra, mulher e mãe.

O que me interessa ao fazer esse comentário é compreender porque mesmo não se tratando de uma obra que explora recursos autoficcionais, a autora continue sendo interpelada a falar em primeira pessoa, não apenas como autora, pessoa pública, “fora” da obra, mas a se responsabilizar também pelos temas, pela forma como lida com eles dentro da obra e como constrói seus personagens. Talvez um passeio pelos lançamentos mais recentes do mercado editorial (lembro obras como O peso do pássaro morto de Aline Bei, Maternidade de Sheila Hei e Contos ordinários de melancolia de Ruth Ducaso que abordam de distintas maneiras a representação da condição da mulher hoje) possa nos levar a pensar, como o sugeriu Josefina Ludmer, que a literatura hoje é um “dentrofora” (importam a posição do autor, as discussões que movimentam a sociedade) e por isso a obra de Saavedra seja relacionada com sua opinião pública como autora, mulher e mãe.

Teatro ou literatura?

Nivana Silva

Créditos da imagem: Mask of day by day – Paulo Zerbato (2011)

No meu último post, citei uma fala de João Paulo Cuenca, numa mesa da FLIP de 2016, em que declarava: “O que estou fazendo aqui agora é teatro, uma performance teatral, não tem nada a ver com literatura…”. Se no texto anterior o trecho me serviu para ilustrar o modo como o autor divulgou seu último romance, também de 2016, gostaria de utilizá-lo aqui como mote para o desenvolvimento da relação entre performance e assinatura.

  A declaração de Cuenca faz referência à própria performance e talvez essa declaração possa ser pensada em relação à atuação de autores que em entrevistas ou aparições públicas comentam a própria obra e, como uma espécie de “farol” para os leitores, “iluminam” ou orientam a leitura de suas obras. Cuenca, ao contrário, parece chamar a atenção do público para o fato de que o autor quando fala sobre sua própria obra também pode estar utilizando uma máscara, construindo uma persona autoral. Há ainda um outro aspecto que gostaria de realçar: não deixa de ser curiosa a ênfase dada, na afirmação, à dissonância entre performance e literatura. Se o autor está falando sobre seus livros, se está teatralizando “ao vivo” sobre sua obra literária, mas fora dela, não está mais fazendo literatura?

A questão me remete à outra, que vai além da exposição de Cuenca na FLIP: será que a performance dos autores contemporâneos é apenas uma espécie de apêndice desnecessário e nada tem a ver com literatura? Uma resposta negativa pode parecer óbvia, porém o que tenho pensado ultimamente é que talvez exista uma diferença, ainda que sutil, entre a performance operar como “efeito” de uma obra ou de uma assinatura e ser, por outro lado, utilizada como ponto de partida para a fatura do texto, configurando um elemento criador da assinatura.

No primeiro caso, acredito que a figura autoral, posicionando-se publicamente sobre o trabalho literário, revela um autor que se constitui fora do texto como projeção dele, isto é, como consequência de uma assinatura que está se formando ou que já circula. Referindo-se ao que chamam de a “máscara” e a “pose” de Paulo Leminski, Aguilar e Cámara, em A máquina performática: a literatura no campo experimental (2017), aludem à performance do poeta, destacando que ele “foi uma figura midiática [e] fez um efetivo desenho de sua pose […]. Durante sua vida, esculpiu-a em jornais, programas de televisão, entrevistas, leituras e recitais.[…]. O bigode basto parece encarnar o signo de uma vida exuberante que combinou o excesso e a tragédia, mas também uma espécie de assinatura singular para uma produção singular”, ou seja, uma performance  singular como desdobramento de uma assinatura singular, poderíamos dizer.

Sendo assim, como pensar a singularidade da performance num cenário no qual um bom número de autores lança mão dela, como um procedimento comum para aproximar-se do público leitor, divulgar a obra e aparecer comentando o texto? Se a “saída do papel” para ganhar os espaços midiáticos da contemporaneidade é algo que resulta da obra de vários autores hoje, então a performance, nesse contexto, não pode ser tomada como uma marca de exclusividade que detém a mesma singularidade da assinatura, como no caso de Leminski. Mas se formos para o outro lado da sutil diferença que expus e consideramos que a performance pode ser um dispositivo criador de uma assinatura e, em sentido mais amplo, “fazer parte” da literatura?

O que estou querendo dizer é que a performance do autor, suas poses e máscaras, podem contaminar a obra, como se impregnasse o texto e contribuísse para a circulação da assinatura. Essa, então, não seria apenas o estilo autoral, a marca identificatória que emerge com o texto, de dentro do texto, mas algo forjado também como resultado da movimentação do autor em torno e fora da obra, o que muitas vezes repercute numa performance textual.

Um bom exemplo disso é a série Delegado Tobias (2014), de Ricardo Lísias, para a qual o autor diz ter se aproveitado das repercussões sobre seu livro anterior, Divórcio (2013): “Me ensinaram como fazer um boato. […]. Eu incorporei o boato a minha criação artística”. Mais do que isso, é possível arriscar que Lísias incorpora a própria performance à “criação artística”, uma vez que sua disposição em “bagunçar o coreto” entre fato e ficção, catalisada pela extensão da história no Facebook, repercute na confusão narrativa que é Delegado Tobias, que leva ao extremo uma sátira sobre, nada menos do que, a autoficção. A série, não custa lembrar, culminou na suposta denúncia anônima sofrida pelo autor por “falsificação de documentos”, bastante disseminada por ele nas redes sociais e levada para as páginas de Inquérito policial: família Tobias (2016).

Desse modo, a performance fora do texto e, ao mesmo tempo, a propagação desse fora dentro da “obra”, demonstram uma estratégia do autor para  ser visto, lido, para chegar ao público, em nome de uma assinatura. Em outras palavras, demonstram uma forma de “fazer literatura” não restrita ao teatro autoral apenas como extensão dos livros, quando quem assina sai do papel para falar a uma plateia, o que reforça a porosidade das fronteiras do literário neste século XXI.

Notas sobre assinatura e performance

Nivana Silva

Créditos da imagem: imagem do filme A Morte de J.P. Cuenca, 2015.
 - Será que você vai escrever um livro sobre isso aí? 
-Não.
(Descobri que estava morto, João Paulo Cuenca)

Considerando o “retorno do autor” e a emergência das novas tecnologias, podemos dizer que a formação de um nome de autor hoje se dá não somente por meio da obra, mas também encontra solo fértil fora dela, especialmente quando o autor se dispõe a lançar mão de estratégias para alcançar leitores, firmar-se no mercado editorial e ganhar reconhecimento da crítica. Nesse contexto, acredito que a performance autoral contribui, de maneira significativa, para a promoção de uma assinatura ou para mantê-la ativa no campo literário.

Muitos exemplos da produção literária atual apresentam narradores-personagens cujas identidades se confundem com as do autor empírico, trazendo-o para a trama textual como matéria prima da ficção e arrastando de roldão referências factualmente rastreáveis, o que não deixa de ser uma performance que dialoga com um certo fetiche exibicionista próprio da contemporaneidade. O leitor que quer ser espião da “vida real” de quem escreve e do processo de criação daquilo que lê coloca-se como um “cúmplice voyeurista” (SIBILIA, 2015) do autor, que, por sua vez, parece capitalizar essa demanda em prol da performance dos “eus” para explorar o limiar entre realidade e ficção.

Para além disso, a performance também extravasa o nível do texto, pois manifesta-se na disposição autoral para usar as tecnologias, as mídias sociais, participar de eventos literários e divulgar a obra. Assim, a exposição do autor ao lado e fora da obra é, muitas vezes, o ponto de partida para a leitura do próprio texto.

João Paulo Cuenca, nesse cenário, pode ser chamado de um autor “midiático”. Colunista, roteirista e muito ativo nas redes sociais, Cuenca, desde o início de carreira, apoia-se no suporte tecnológico para performar vozes e aproximar-se da recepção. Com a publicação de seu primeiro romance, Corpo presente (Planeta, 2003), o autor alimentava um blog, hoje fora do ar, de nome “Carmen Carmen” – alusão à personagem do livro – no qual trazia os bastidores da escrita e que funcionava como uma primeira janela de divulgação do romance de estreia. Nesse mesmo ano, Cuenca também ganhou visibilidade ao participar de uma mesa na primeira edição da Festa Literária Internacional de Paraty, devido ao lançamento do livro Parati para mim (Planeta, 2003), em que há um conto seu. Voltando à FLIP em 2016, dessa vez para falar do seu livro Descobri que estava morto (Tusquets Editores, 2016), o autor declara que: “O que eu estou fazendo aqui agora é teatro, uma performance teatral, não tem nada a ver com literatura. Estou falando de livros…”.

Enquanto no livro de estreia, a performance do “eu” fora do papel foi importante para chegar ao público e inserir seu nome de autor no campo literário, no último romance de 2016, Cuenca potencializa uma estratégia semelhante para manter a assinatura ativa. O livro, assim como seu contraponto, o filme A morte de J.P.Cuenca (2015) – com direção e atuação do autor – foram muito divulgados por ele no facebook, tanto em seu perfil pessoal, quanto numa página dedicada ao longa.

O investimento na performance percorre o livro cuja história, ambientada no Rio de Janeiro pré-olímpico, é contada pelo narrador-personagem João Paulo Cuenca, que também é escritor e toma conhecimento de “sua própria morte”, pois um corpo foi identificado e reconhecido com os dados pessoais do próprio Cuenca (nome, data de nascimento): “Descobri que estava morto enquanto tentava escrever um livro”, diz ele. O enredo de ficção que o autor garante ter realmente vivido em 2011 culminou na narrativa “baseada em fatos reais”, na qual são apresentados documentos oficiais, como o registro de ocorrência e o guia de remoção do cadáver, e alusões biográficas ligadas a Cuenca. A história não se resume a isso, porém é notável o jogo performático que pulveriza a(s) voz(es) do autor num procedimento de mise en abyme e que envolve o leitor, talvez menos interessado nas pistas sobre o cadáver do que em “procurar o autor” e ouvir essas vozes performadas que falam dentro e fora obra, forjando personas, trazendo referências “reais” e embaralhando as expectativas de quem lê.

As estratégias utilizadas, portanto, vão flertando com o público e fomentando um trânsito que não é apenas de fora para dentro da obra, mas da própria obra para fora: um dentrofora criado por uma performance do autor. Assim, o binômio performance e assinatura parece ter sido exitoso no caso Cuenca, ainda que encontremos, na literatura contemporânea, exemplos não tão bem sucedidos, mas isso fica para outra reflexão.

O não literário da literatura

Nivana Silva

Créditos da imagem: “Phase of Nothingness—Cloth and Stone” – Nobuo Sekine

A noção de “inespecificidade” da arte contemporânea, discutida por Florencia Garramuño, é recorrentemente acionada aqui no blog, a exemplo das reflexões acerca do diálogo da literatura com as artes plásticas e com as novas tecnologias, do encontro das narrativas ficcionais com a dicção ensaística, ou ainda, do estreitamento entre vida e obra.

Embora não mencione diretamente a expressão da crítica argentina, Luciene Azevedo alude ao tema ao apresentar, em um de seus posts, alguns títulos da literatura atual que, analisados na clave de uma suposta saída da ficção, com o hibridismo das formas narrativas e a exposição da obra inacabada durante o exercício de escrita, levam ao questionamento se esse pretenso esvaziamento do ficcional “implica [ou não] uma redefinição da ideia de literatura moderna para renovar os impasses à representação”.

Fazendo referência ao meu objeto de investigação a partir dessas questões, penso no trabalho mais recente de Ricardo Lísias, a série de e-books Diário da catástrofe brasileira, sobre a qual já falei, introdutoriamente, em outro post. Quando o primeiro volume ficou disponível para download, e o autor divulgava a proposta do material, o leitor concluía que não se tratava de uma narrativa de ficção, afinal de contas, a própria voz de Lísias estava sendo impressa no texto que buscava entender como chegamos ao resultado das urnas de outubro de 2018, indo ao encontro dos posicionamentos do autor nas redes sociais.

No entanto, mesmo configurando-se como um trabalho não ficcional, é possível arriscar a hipótese de que os e-books apresentam certa continuidade do modus operandi presente em livros anteriores do escritor paulistano, sobretudo porque, de alguma maneira, ainda estão inscritos no limiar entre vida e obra. O engajamento do “eu” Lísias diante do atual cenário político e social brasileiro, sua crítica e resistência materializadas em Diário da catástrofe brasileira, não deixam de estar relacionados, especificamente, a um investimento na sua própria literatura e na reafirmação do seu nome de autor no campo literário e, de forma geral, à reflexão sobre os modos de produção e circulação dos textos no contemporâneo.

Se a “inespecificidade” dos livros que traziam o nome próprio de Lísias e referências biográficas como parte fundamental das histórias, como O céu dos suicidas (2012), Divórcio (2013) e Delegado Tobias (2014) – sempre chanceladas por ele como ficcionais – estava justamente na performance que embaralhava as fronteiras entre o real e ficcional e entre autor e narrador, nos e-books, o jogo entre o literário e não literário sai da ficção, porém volta-se para questões caras à literatura produzida hoje e que reiteram algumas marcas autorais de Lísias.

Além de expor a descrição sobre a forma do material e como atualizá-lo, o autor reitera o inacabamento do Diário, referindo-se ao processo de escrita e ao próprio texto. Nesse sentido, a voz autoral sinaliza a necessidade de atualização para o acesso à “obra” em andamento que tensiona o lembrar e o esquecer, pois, de um lado, capta o caos político da atualidade para registrá-lo e reprisá-lo, ainda que de forma reinventada e, de outro, apaga o que já escreveu, apoiando-se na volatilidade que o suporte tecnológico pode proporcionar. E aqui é inevitável mencionar a escolha do gênero diário que, tradicionalmente, deveria arquivar a memória, mas é explorado – pelo menos à primeira vista – a partir da efemeridade.

À primeira vista porque, a despeito da performance em torno do apagamento e da isenção da responsabilidade autoral das versões substituídas, muito presente no início do trabalho, Lísias registra, revisa, relembra e, assim, vai criando um arquivo. Esse, apesar do nome, parece querer simular um “ao vivo” da literatura, apelando à receptividade do espectador não só quando o convoca a atualizar o e-book, mas também quando o conduz a refletir sobre a realidade na qual estamos imersos e sobre o contemporâneo.

Dialogando com o público leitor e aproveitando-se das tecnologias, Lísias reafirma algumas de suas marcas autorais, ao lado de um interesse genuíno em temas de cunho político e social que caracterizam sua assinatura desde o início da carreira, quando ainda separávamos em seus primeiros livros, com certa segurança, autor e narrador, realidade e ficção. A disposição em atuar, explicitamente, no limite entre vida e obra se consolida depois, mesmo com a defesa do caráter ficcional dos textos. Com Diário da catástrofe brasileira, nos deparamos com uma espécie de saída radical da ficção, mas é mesmo uma saída? Em nome de quê? Da necessidade do registro documental porque o que estamos vivendo parece ser tão fictício que a literatura não dá conta? Ou não está mais claro hoje o que é o literário da literatura?

As perguntas se multiplicam à medida que seguimos tateando as possíveis respostas, mas, enquanto as antigas certezas não podem ser completamente renovadas, talvez seja frutífero explorar o que o “gesto de sair e estar na literatura ao mesmo tempo, um estar foradentro”, para citar Josefina Ludmer, pode nos oferecer.

“Um e-book não é um livro”

Nivana Silva

Créditos da imagem: Wen Fang – The female book , 2011

Em A máquina performática: a literatura no campo experimental, Gonzalo Aguilar e Mario Cámara (2017) apontam que a performance “transcorre no tempo presente e seu registro é sempre pálido em relação ao aqui e agora que propõe”, ainda que seu caráter efêmero possa ser fundamental para a produção de sentido. Dentre os desafios de fazer pesquisa e escrever sobre o contemporâneo está o de acompanhar obras que podem surgir, atualizar-se e até mesmo serem apagadas de modo bastante veloz, resistindo à conservação e à reprodução.

Em tempos de tecnologias e de mídias sociais, a natureza duradoura e resistente da escrita está sujeita à efemeridade. Quando publicou a série de plaquetes Delegado Tobias (E-galáxia, 2014), Ricardo Lísias utilizou o facebook como suporte ficcional da história, criando um perfil fictício para um dos protagonistas da série, Paulo Tobias, fazendo circular postagens relativas à narrativa – como a também fictícia decisão jurídica que teria proibido a circulação dos e-books – e estimulando uma interação virtual com os leitores. No entanto, quem lê a série hoje não pode acessar mais o perfil do delegado, pois ele foi retirado da rede e, assim, algumas das possibilidades de apropriação do texto oferecidas pela tecnologia, que funcionava como uma espécie de extensão do texto, se perdem.

Apostando novamente no formato e-book, Lísias encerra 2018 com Diário da catástrofe brasileira I – transição, um trabalho in progress que utiliza como suporte a plataforma de autopublicação do Kindle (Amazon), projetado para ser o “primeiro [volume] de uma série que se estenderá até o final de 2022”. Trata-se de um texto não ficcional, que, como o próprio título indica, traz as entradas de um diário escrito por Lísias a partir de 28 de outubro de 2018, data do segundo turno das últimas eleições presidenciais. O exercício de “rememoração” a respeito de como chegamos ao início da catástrofe nacional é feito por uma voz autoral que apresenta informações e análises organizadas com o intuito de refletir sobre a atual situação político-social do país, bem como direcionar uma crítica ferrenha e irônica aos intelectuais que falharam em seus diagnósticos pré-eleitorais. A despeito do conteúdo pertinente, é notável a atenção dada pelo autor à forma do material – não só no texto, mas nos posts de divulgação nas redes sociais – com referências ao processo de escrita e, sobretudo, ao funcionamento do e-book.

A proposta de Lísias é que, a cada mês, o e-book seja atualizado e, de três em três meses, ocorra a publicação de um novo volume. Sendo assim, ao publicar a segunda versão de Diário da catástrofe brasileira I – transição, em janeiro de 2019, a primeira deveria ser automaticamente apagada, ou seja, o leitor que adquiriu o volume de número um teria seu exemplar atualizado, enquanto os novos leitores apenas poderiam ter acesso ao texto mais recente. Conforme esse planejamento, o autor se isenta da responsabilidade autoral do e-book que foi substituído, afirmando, em nota na segunda versão, que “a primeira foi publicada há um mês. Já não me sinto seu autor. Se você está lendo essa nota, continua no âmbito da criação. Quem não atualizar o Diário está fora do meu trabalho e portanto torna-se o único responsável pela versão anterior. Ela já não me diz respeito”.

A princípio, a atualização automática da versão do texto pela plataforma não ocorreu, e Lísias tem se empenhado em tentar reverter o problema com a Amazon, munido do argumento de que “um e-book não é um livro”. Contornado o imprevisto tecnológico, o leitor agora tem acesso à versão revisada mediante solicitação à empresa. Assim, há alguns aspectos interessantes que envolvem o empreendimento, sendo que um deles diz respeito à própria disposição do autor em testar a tecnologia e lançar mão da plataforma em prol de um modo de produção específico. Nesse contexto, a mise-en-scène em relação à autoria pode não funcionar, já que, na versão modificada, Lísias estabelece uma ponte com o volume anterior, indicando os trechos em que houve modificações e acréscimos. Logo, existe uma alusão direta à responsabilidade autoral de ambos os textos, sem contar que o leitor também pode encontrar uma maneira de salvá-los e cotejar o conteúdo por conta própria, burlando seu suposto caráter volátil.

Por outro lado, parece haver eficácia em incluir, no “âmbito da criação”, o leitor, pois esse tem diante de si os modos como o material vai sendo escrito, publicado e editado pelo autor, quem sabe outra maneira de lidar com seu manuscrito, que vai se alterando praticamente em “tempo real”. Aqui, então, uma pretensa efemeridade parece ser importante para impulsionar a reflexão em torno da forma, além das condições de produção e circulação do e-book, e talvez nessa reflexão resida um dos grandes interesses de Lísias, embora não esteja tão explícito quanto sua recorrente inclinação para a abordagem de temas de cunho político e social dentro e fora da obra.

Nome próprio, nome de autor

Nivana Silva

Equilibrium - Tim Head - 1975

Créditos da imagem: Tim Head – Equilibrium (1975)

Nomear, conferir um nome a alguém ou a algo, é uma forma de identificação e de referência, sobretudo no caso dos nomes próprios dos seres humanos, que designam e particularizam quem é nomeado, estabelecendo um vínculo específico entre o nome e seu portador. No âmbito da literatura, lidamos, constantemente, com o surgimento, a propagação, a repetição e até mesmo o apagamento de muitos nomes próprios associados a obras literárias, caso em que, para além de um nome próprio, somos colocados diante de um nome de autor.

Em sua famosa conferência “O que é um autor?”, Michel Foucault afirma, a título de exemplo, que uma carta privada possui um signatário, mas não um autor, isso porque pondera que um nome de autor não é um nome próprio como os outros, ou seja, seu funcionamento está imbricado a discursos (não se tratando de um discurso cotidiano, como ressalta o francês), que detêm certo estatuto e devem ser recebidos de determinada maneira em uma sociedade. Sendo assim, poderíamos dizer que um nome de autor estaria entrelaçado a certos tipos discursivos de caráter singular, remetendo, na literatura, a traços de identificação, presentes na obra, que contribuem para construir uma assinatura.

Comumente, esses traços que permitem identificar uma assinatura literária são relacionados a procedimentos de escrita, que estão disseminados, de modo particular, nos textos atrelados a nomes de autores, quer dizer, configuram marcas que se referem a um sujeito autoral, permitindo identificá-lo, especificamente, e distingui-lo em meio a outros nomes. De certa forma, é desse entendimento que parte a reflexão do crítico português Abel Barros Baptista em A formação do nome (2003), quando advoga que na inscrição de um nome de autor ocorre, simultaneamente, a alusão àquele que assina e à sua obra, fazendo emergir o que nela se repete e/ou o que a torna única, ou ainda, em outras palavras, o que nela faz apontar para um determinado autor e não para qualquer outro.

Vale ressaltar que a argumentação de Baptista se desenha de maneira a restringir a obra (e a formação do nome) ao texto literário, isto é, às manifestações escritas assinadas por um autor, questão que parece ser revista na literatura contemporânea. Nesse sentido, tenho apostado na hipótese de que a construção de uma assinatura, dizendo respeito a um nome próprio e, mais do que isso, a um conjunto de marcas identificatórias atinentes à autoria, transpõe os limites do “dentro” do material textual.

O que quero afirmar é que em um contexto no qual o autor está propenso a se envolver com a mídia e manter uma comunicação pública, como um modo de se engajar na “vida real” e de seduzir uma audiência maior (como trouxe em outro post), temos um sujeito que se dispõe, intencionalmente, a atuar não só no texto – quando, por exemplo, cria personagens homônimos, ou fragmenta sua voz autoral em múltiplas personas– mas também no engendramento de um eu, que transita também fora do material textual,  que cria e influencia as interpretações e especulações críticas vindas do público leitor (abarcando também uma parcela ampla e indistinta oriunda da Internet), cujo papel pode ser determinante para a formação do nome de autor e de sua obra.

Não posso deixar de mencionar, nesse cenário, o nome de Ricardo Lísias, que remete não somente ao sujeito que assina os romances (?), mas à performance do autor nas redes sociais, à sua atuação marcante como divulgador do próprio trabalho e, é claro, aos imbróglios jurídicos e políticos, que atravessam a sua literatura. Esse conjunto de traços que ultrapassam o texto, amalgamados ao próprio material textual (que, de maneira recorrente, lança mão do “fora”), é relacionado, quase de imediato, ao nome de Lísias, permitindo que identifiquemos e façamos referência ao seu nome de autor para além dos limites das manifestações escritas e da assinatura impressa na capa dos livros.

 

 

 

Literatura e performance: um “dentro-fora”¹ do texto

Por Nivana Silva

Bound Figures - Daniel Arsham

Créditos da imagem: Daniel Arsham – Bound Figure

Pauta recorrente na literatura contemporânea, o tratamento da performance autoral, muito mencionada aqui no blog, costuma estar imbricado às “atuações” midiáticas dos autores, como a participação em eventos literários, as entrevistas concedidas para canais televisivos e Web, o uso expressivo de redes sociais como meios de divulgação do trabalho e/ou como suporte ficcional para as obras, para citar alguns exemplos. Ao que parece, esses deslocamentos autorais tendem, dentre outras coisas, a indicar um trânsito entre literatura e vida “real”, configurando uma lógica de agenciamento do nome de autor, que circula por diferentes espaços do campo literário e torna notável o seu diálogo com o público leitor.

A chamada performance autoral, nesse caso, estaria relacionada a um movimento que vai além da obra literária e aponta para um “fora” dela – se é que podemos falar assim – mas o que acontece quando a performance se desdobra na perspectiva do próprio texto, do seu “dentro”, como uma espécie de estratégia narrativa/estratégia representacional? É diante desse questionamento que gostaria de arriscar algumas considerações sobre o tema.

Quando Wolfgang Iser (1996) observa o conceito de performance sob a ótica do “fim da representação”, na compreensão moderna da literatura, seu argumento aponta para a não restrição do modelo representacional a simples cópia de um real antecedente e empírico, o que coloca em suspensão o paradigma clássico da verossimilhança. Sendo assim, na lógica da performance, há uma outra configuração para a problemática da representação que se desenrola no texto, pois não se trata, por exemplo, de representar o outro, presentificando a ausência de uma voz que não pode falar, ou de mimetizar uma pretensa autoridade/autenticidade autoral, mas de trabalhar, engenhosamente, a linguagem, de modo a repeti-la com uma margem de diferença transgressora, que dissimula vozes, escancara a realidade e, simultaneamente, reitera e ironiza as suas normas.

No caso dos empreendimentos literários do contemporâneo, os gestos performáticos que compõem o material textual, o “dentro” do texto, abalam qualquer ideia de autenticidade autoral, principalmente se consideramos as atuações performáticas de “fora”, empreendidas por quem assina a obra. Quero dizer com isso que a fragmentação da voz autoral em múltiplas subjetividades, engendrando personas – uma delas sendo a própria “voz” do autor por trás das máscaras – e a reconfiguração das (re)apresentações/representações do vivido parecem estar ligadas às atuações midiáticas do autor , à sua atuação marcante como divulgador da própria produção. O que quero afirmar é que a performance não se desenha apenas no nível do texto, mas ensaia um “dentro-fora” , numa sobreposição muitas vezes difícil de ser separada.

Nesse cenário, A vista particular, de Ricardo Lísias (Alfaguara, 2016), pode ser emblemática para pensarmos a questão. Nela, o autor apresenta uma experiência literária que, via performance, instaura desvios no texto e abre espaço para a ruptura com um discurso apenas representativo, ruptura essa que transborda da obra. Em um post publicado aqui, antes do lançamento oficial do livro, eu dizia que, mais do que trazer um jogo sutil entre ficção e realidade, o livro, nos dois capítulos iniciais (lembro que Lísias fez a divulgação do pré-lançamento da obra, o que considero um investimento massivo no “fora”), tratava da espetacularização do sujeito, da superexposição às câmeras, dos seguidores desconhecidos, dos vídeos que viralizam em um curto espaço de tempo, em suma, do cruzamento do público com o privado.

Ao promover um desvio em relação ao caráter representacional da narrativa e forjar encenações, o autor se vale da própria lógica na qual está imerso para fazer sua crítica à “sociedade do espetáculo”, apostando no exagero, na caricatura e na “avacalhação”, repetindo estereótipos e delineando sua sátira. Essa “encenação autoral”, que se desdobra em vozes e máscaras – uma delas a própria voz ferinamente crítica do autor, Lísias, sobre o panorama contemporâneo das artes – transita entre a exposição/reiteração e a dissimulação/satirização de discursos e imagens do presente, uma zona precária que contamina a performance textual. Creio, portanto, que o desvio no caráter representacional instaurado pelo jogo performático no texto está indissociavelmente vinculado aos trânsitos do autor, aos seus posicionamentos nas mídias sociais e aos acontecimentos “reais” da contemporaneidade, vide, na obra, as asserções sobre o caráter confiável da história, as alfinetadas à alienação e aos fatos cotidianos, a crítica ao estatuto da arte na contemporaneidade, para me limitar a alguns exemplos que aparecem na narrativa e estão amalgamados à performance de Lísias para além do texto literário.

Na oscilação entre a reiteração e a crítica da realidade, na dinâmica da performance, o texto estabelece a possibilidade da transgressão discursiva por meio da ficcionalização, da pulverização de vozes, encenando e, ao mesmo tempo, satirizando o real e o presente. Esse movimento “de dentro”, conectado aos gestos performáticos “de fora”, não só em Lísias, mas em outras expressões literárias da contemporaneidade, culminam em um funcionamento específico da noção de autor e influenciam sua relação com o leitor, abrindo espaço para pensarmos a performance autoral sob a perspectiva do “dentro-fora” do texto.

 

[1] Ao se referir às chamadas “literaturas pós-autônomas”, Josefina Ludmer (2007) utiliza a expressão “dentro-fora” para caracterizar textos nos quais as fronteiras entre a realidade e a ficção não estão mais tão claras/definidas como costumavam estar.

 

 

 

Lemebel e a crônica

Lemebel e a crônica - imagemPedro Lemebel.

Por Eder Porto

“Ligada ao tempo (chrónos), ou melhor, ao seu tempo, a crônica o atravessa por ser um registro poético e muitas vezes irônico, através do que se capta o imaginário coletivo em suas manifestações cotidianas. Polimórfica, ela se utiliza afetivamente do diálogo, do monólogo, da alegoria, da confissão, da entrevista, do verso, da resenha, de personalidades reais, de personagens ficcionais…, afastando-se sempre da mera reprodução dos fatos. E, enquanto literatura, ela capta poeticamente o instante, perenizando-o”.

Considerando a descrição de Angélica Soares (2007), podemos considerar a crônica um gênero fronteiriço.:

Em geral, o que se observa é que a crônica se desloca na fronteira do jornalismo estilizado e da literatura referencialista, enraizando o seu discurso na urbanidade moderna. Centra sua força contingente no instante e no fragmento para dar conta de toda a diagramação “periódica” da urbe, em crise com seus significados e carente de novos significantes e possibilidades de representação.

Pedro Lemebel, escritor chileno performativo, chama a maioria de seus escritos de crônica:

“Eu digo crônica por ter que chamar de alguma coisa, talvez porque não queira delimitar ou cercar meus retalhos escriturais com uma receita que imobilize minha pluma ou a assinale uma categoria literária. Posso querer definir o que faço como um caleidoscópio oscilante, onde cabem todos os gêneros ou subgêneros que possibilitem uma estratégia de escrita, como a biografia, a carta, o testemunho, a canção popular, a oralidade, etc. . Acho que escolhi a escrita pelas distintas possibilidades que me oferece de inventar. Para dizer em linguagem travesti, é como ter o guarda-roupa da Lady Die no computador”.

Podemos conectar essa espécie de amorfia que caracteriza a crônica e, mais especificamente, a crônica escrita por Pedro Lemebel com as reflexões empreendidas por Julio Ramos no seu livro Desencuentros de la Modernidad en América Latina. Aí, o crítico observa o contexto de surgimento da crônica moderna e afirma que o gênero estabeleceu novos padrões de criação para Literatura. Na crônica de Lemebel, por exemplo, pode-se observar a justaposição fragmentária dos despojos capitalistas na percepção do caos citadino, tal como realça Ramos em sua argumentação. Nas crônicas de Lemebel, é fácil perceber a presença de personagens empurrados para as margens, que desafiam a ordem estético-moral de uma fantasiosa integridade urbana. Também é possível vislumbrar uma representação da cidade que quer virar pelo avesso a lógica do consumo e do mercado – uma “retórica da vitrine” que insiste em expôr o que não tem valor ou que não é passível de ser exibido, segundo os critérios daquela mesma lógica-, constituindo-se o narrador a partir de uma atitude flaneur e convidando o leitor a olhar Santiago a partir dos seus espectros socialmente obliterados.

Abaixo, segue um trecho traduzido por mim da crônica “La loca del carrito (o el trazo casual de un peregrino frenesí)”. Aí podemos perceber que a maleabilidade do gênero acopla-se ao olhar escrutinador do narrador, atiçando a atenção do leitor:

“Ali, pela rua Lira, Carmen ou Portugal, perto do antes glorioso bairro de prostituição travesti San Camilo, sua silhueta desmantelada desequilibra a lógica do apressado transeunte em hora de almoço. Ou melhor, é um reflexo onde o olhar do bom cidadão desconhece com rubor, na desordem de sua peregrina paródia sexual. A bicha do carrinho conduz o seu bote de supermercado colecionando cacarecos que Santiago dejeta em sua flamante modernidade. Por aí agarra uma boneca sem braço, a veste com ternura, pondo-a em sua barca rodoviária. Por aquí se encanta por trapo desfiado que recicla como lenço de cabeça. Com o paninho amarrado em seu queijo sem barbear, toda uma velhinha camponesa ou uma grotesca Mãe da Praça de Maio, desaparece do fragor do tráfico, deixando seu alucinado delírio como uma estampa irreal que esfumaça entre as buzinas neuróticas do Centro.”