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Os tais caquinhos do contemporâneo

Marília Costa

Créditos da imagem: Falconeira, de Julia Debasse, 2013

Hoje, gostaria de comentar Os tais caquinhos da escritora Natércia Pontes, lançado em 2021 pela Companhia das Letras. O livro mobiliza fragmentos compostos por diários, bilhetes e anotações com títulos desconectados das temáticas dos capítulos, embora algumas vezes sejam retomados em outros momentos, numa espécie de repetição e neurose. Esse traço aponta para o caos em que os personagens estão mergulhados, mas também para a desorganização e o amontoamento de palavras, objetos e sentimentos que fazem parte do cotidiano das personagens e são representados pelo procedimento formal e discursivo utilizado na composição do romance.

A narrativa trata das desventuras da adolescente Abigail que vive com o pai Lucio e a irmã Berta em um apartamento imundo, cheio de tralhas, insetos, lixo e todo tipo de objetos que são acumulados compulsivamente pelo pai da personagem. A relação familiar é marcada pelo abandono da mãe que foi embora com as duas irmãs mais novas e pela falta de cuidado adequado do pai com as duas filhas adolescentes. O pai não é presente e age com estranha passividade diante de todas as demandas das filhas. Logo o leitor percebe, então, que os fragmentos amontoados no livro de modo caótico funcionam como uma espécie de junção entre forma e conteúdo, um espelhando o outro.

A narrativa é muito marcada pela falta: “Eu não tenho corpo. Eu não tenho quem me conheça tanto. Eu não tenho pulso. Eu não tenho mãe há muito tempo. Eu não tenho mãe.” É também a ausência do pai que nunca está em casa e parece sempre alheio às necessidades e problemas das filhas. É a ausência da irmã que está sempre na casa de uma amiga, com a qual a relação é pouco explorada no livro. É a falta de limpeza do ambiente e higiene pessoal, e por fim, a falta de comida que é explorada através do lixo, dos restos, em um ambiente onde falta tudo, o lixo ocupa o espaço. A narradora nunca chama o pai de pai, mas sempre de Lucio, nunca chama o apartamento de casa, mas sempre de apartamento 402, nota-se aí uma ausência de pertencimento.

O estranhamento e a desautomatização sempre estiveram associados à literatura. Esse procedimento tem relação com a representação e o conceito de ficção que se consolidou com o gênero romance e que ainda se sustenta atualmente. Mas o que entendemos por estranhamento também é afetado historicamente. Na contemporaneidade, muitas narrativas “impulsionam a literatura em direção de uma deriva estética que desestabiliza as convenções (…) para levar a literatura para além do limite, empurrá-la permanentemente para o abismo que se abre quando se renuncia à tranquilidade das linguagens ordenadas e as certezas de seus fundamentos”, como afirma a professora e pesquisadora Ana Olmos.

A leitura da obra de Pontes oferece ao leitor uma experiência de estranhamento, sem dúvida. Muitas obras publicadas recentemente são lidas na clave do esvaziamento do literário, da representação e do não desenvolvimento adequado dos personagens, como aconteceu com  Os tais caquinhos, que recebeu críticas nesse sentido (como a resenha de Luís Augusto Fischer para a Folha). Aí, a questão do valor é um tema central. O livro de Pontes falha como romance ou o que parece falha é apenas um deslocamento da noção de estranhamento que experimentamos na leitura de muitas contemporâneas?