Marília Costa
Créditos da Imagem: Yoko Ono – “Sky Tv for Hokkaido” – Yoshihiro Hagiwara
Durante muito tempo, o autor de literatura e o crítico literário assumiram papéis diferentes no campo literário brasileiro. Em linhas gerais, ao autor cabia o papel de tecer a obra e ao crítico a tarefa de comentar, analisar e teorizar sobre as narrativas. Alguns desses indivíduos realizavam as duas atividades em paralelo, porém em espaços distintos. O autor publicava seus textos em livros denominados como romances, contos ou poesias. O crítico transitava pelos jornais, revistas, blogs, livros teóricos, artigos e demais textos acadêmicos. Desse modo, não era muito comum que a ficção e o discurso teórico dividissem o mesmo espaço em uma obra literária.
Na contemporaneidade há indícios de um rompimento das fronteiras que separavam ficção e crítica literária. Eneida Maria de Souza, em seu texto “Notas sobre a crítica biográfica”, salienta que os limites entre as principais áreas de estudo da literatura não estão bem definidos pelas teorias contemporâneas. Desse modo, a literatura deixa de ser objeto de análise e passa a ser também espaço para analisar e teorizar sobre si mesma, “o próprio sujeito teórico se inscreve como ator no discurso e personagem de uma narrativa em construção”, afirma Souza. A crítica biográfica encontra-se delimitada entre a teoria e a ficção, o documental e o literário.
No século XXI deparamo-nos com escritores em cujas obras podemos identificar o hibridismo entre a crítica literária e a ficção, como é o caso de Ricardo Lísias, Cristovão Tezza, Silviano Santiago, entre outros. É possível ainda arriscar que o procedimento crítico no registro literário aparece a partir do uso da dicção ensaística e do recurso autobiográfico e autoficcional.
No romance Machado de Silviano Santiago, publicado em 2016, o narrador se apropria da dicção ensaística para tornar-se outro: “Transfiguro-me. Sou o outro sendo eu. Sou o tomo V da correspondência de Machado de Assis: 1905-1908”. Ao mesmo tempo, podemos notar uma aproximação entre narrador e personagem, principalmente em comentários críticos sobre o campo literário do final do século XIX e início do século XX, que lembram um ensaio, quando por exemplo tematiza-se a forma como Machado de Assis se concebe, se desenvolve, se aprimora e se estabelece como um dos maiores escritores brasileiros.
Em Machado de Santiago podemos perceber uma característica comentada pelo crítico argentino Reinaldo Laddaga em seu livro Estética de Laboratório e também presente em outras obras da literatura contemporânea. Ao resgatar o caminho que o conduziu a escrever o livro, Santiago forja a si mesmo e ao processo de escrita (aí emerge o que identificamos como uma dicção ensaística) aproximando-se do que Laddaga chama de uma “visita ao estúdio” de produção do autor e que torna possível aos leitores “formar uma ideia da pessoa e do pensamento do autor”. Embora saibamos que se trata de mais um artifício, pois, como o próprio Laddaga aponta “um artista se expõe enquanto realiza uma operação em si mesmo. O que mostra não é tanto ‘a vida (ou sua vida) como ela é’, mas uma fase da vida (ou da sua vida) que se desenvolve em condições controladas.” Desse modo, não deixa de ser interessante pensar que a dicção ensaística presente no romance Machado pode ser pensada como um artifício para reinventar a literatura.