Arquivo do mês: junho 2018

O autor, o crítico, a ficção e o ensaio

Marília Costa

Yoko Ono2c “Sky TV for Hokkaido” (photo de Yoshihiro Hagiwara)

Créditos da Imagem: Yoko Ono – “Sky Tv for Hokkaido” – Yoshihiro Hagiwara

Durante muito tempo, o autor de literatura e o crítico literário assumiram papéis diferentes no campo literário brasileiro. Em linhas gerais, ao autor cabia o papel de tecer a obra e ao crítico a tarefa de comentar, analisar e teorizar sobre as narrativas. Alguns desses indivíduos realizavam as duas atividades em paralelo, porém em espaços distintos. O autor publicava seus textos em livros denominados como romances, contos ou poesias. O crítico transitava pelos jornais, revistas, blogs, livros teóricos, artigos e demais textos acadêmicos. Desse modo, não era muito comum que a ficção e o discurso teórico dividissem o mesmo espaço em uma obra literária.

Na contemporaneidade há indícios de um rompimento das fronteiras que separavam ficção e crítica literária. Eneida Maria de Souza, em seu texto “Notas sobre a crítica biográfica”, salienta que os limites entre as principais áreas de estudo da literatura não estão bem definidos pelas teorias contemporâneas. Desse modo, a literatura deixa de ser objeto de análise e passa a ser também espaço para analisar e teorizar sobre si mesma, “o próprio sujeito teórico se inscreve como ator no discurso e personagem de uma narrativa em construção”, afirma Souza. A crítica biográfica encontra-se delimitada entre a teoria e a ficção, o documental e o literário.

No século XXI deparamo-nos com escritores em cujas obras podemos identificar o hibridismo entre a crítica literária e a ficção, como é o caso de Ricardo Lísias, Cristovão Tezza, Silviano Santiago, entre outros. É possível ainda arriscar que o procedimento crítico no registro literário aparece a partir do uso da dicção ensaística e do recurso autobiográfico e autoficcional.

No romance Machado de Silviano Santiago, publicado em 2016, o narrador se apropria da dicção ensaística para tornar-se outro: “Transfiguro-me. Sou o outro sendo eu. Sou o tomo V da correspondência de Machado de Assis: 1905-1908”. Ao mesmo tempo, podemos notar uma aproximação entre narrador e personagem, principalmente em comentários críticos sobre o campo literário do final do século XIX e início do século XX, que lembram um ensaio, quando por exemplo tematiza-se a forma como Machado de Assis se concebe, se desenvolve, se aprimora e se estabelece como um dos maiores escritores brasileiros.

Em Machado de Santiago podemos perceber uma característica comentada pelo crítico argentino Reinaldo Laddaga em seu livro Estética de Laboratório e também presente em outras obras da literatura contemporânea. Ao resgatar o caminho que o conduziu a escrever o livro, Santiago forja a si mesmo e ao processo de escrita (aí emerge o que identificamos como uma dicção ensaística) aproximando-se do que Laddaga chama de uma “visita ao estúdio” de produção do autor e que torna possível aos leitores “formar uma ideia da pessoa e do pensamento do autor”. Embora saibamos que se trata de mais um artifício, pois, como o próprio Laddaga aponta “um artista se expõe enquanto realiza uma operação em si mesmo. O que mostra não é tanto ‘a vida (ou sua vida) como ela é’, mas uma fase da vida (ou da sua vida) que se desenvolve em condições controladas.” Desse modo, não deixa de ser interessante pensar que a dicção ensaística presente no romance Machado pode ser pensada como um artifício para reinventar a literatura.

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A crônica, o cotidiano e a intimidade

Vanessa Ive

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Créditos da imagem: Autorretrato, 1979, Saint Tropez, França, de Elliott Erwitt

Os cronistas vivem à espreita de um acontecimento trivial, de um detalhe que pode passar despercebido em meio ao ritmo da vida cotidiana. É como um flâneur que percorre as ruelas boêmias das cidades para captar ‘instantes’ e revesti-los de palavras.  Nos áureos tempos da crônica, o gênero estava marcado por poesia e contemplação. O lirismo reflexivo de Rubem Braga descobre a borboleta amarela, o mar, o conde e o passarinho. Contudo, no século XXI, como sobrevive esta tradição?

O cotidiano continua sendo a matéria-prima dos cronistas cuja tarefa básica é mostrar o grandioso dentro do miúdo, o inesperado dentro do óbvio. Os cronistas contemporâneos continuam a enxergar as miudezas e a transformam o pormenor em texto literário. Aquilo que de tão miúdo só parece render um comentário curto vira uma crônica sagaz, dotada de graça e leveza. Nesta habilidade de inverter o tamanho das coisas, Antônio Prata tem se apresentado como mestre. A compra de uma meia, o gesto de tocar uma guitarra imaginária, o sustinho após ouvir uma pergunta imprecisa, a vontade súbita de abraçar uma árvore. Tudo isso virou tema de crônicas do quinto volume do autor dedicado ao gênero, Trinta e poucos, de 2016, que reúne os principais textos publicados no jornal Folha de São Paulo.

Talvez pela necessidade de estarem próximas ao leitor, as crônicas, em grande parte, são escritas na primeira pessoa do singular a ponto de Carlos Heitor Cony brincar ao dizer que o pronome corresponde ao único personagem do gênero. Como a proposta do cronista é narrar o fato sob a sua própria ótica, durante o processo, muito de si é desprendido no gesto da escrita, o que levou Afrânio Coutinho, desde o início, a definir o gênero como altamente pessoal, como uma reação individual, íntima, ante o espetáculo da vida. Ao perceber essa exposição do gênero, Clarice Lispector endereçou uma carta a Rubem Braga, indagando: “O que escrevo está se tornando excessivamente pessoal. O que eu faço?”, e recebeu a seguinte resposta: “É impossível, na crônica, deixar de ser pessoal”.

Na crônica contemporânea, a dicção é ainda mais pessoalizada e a intimidade  pode ser observada. Nos escritos de Antônio Prata, as narrativas se passam em ambientes comumente frequentados no dia a dia: a casa, o trabalho, a padaria, o supermercado, o bar, a clínica médica ou, até mesmo, o armário da cozinha – cenário da Crônica de quatro faces, sem esquecer-se do reduto da intimidade, o banheiro – cenário principal da crônica Dente por dente. Assim, os principais fatos das crônicas do autor não estão na arena norte-americana, no Planalto, nos acontecimentos mais debatidos da semana, mas na banalidade aparente da vida da qual extrai significado e humor.

A lupa do cronista para ampliar as sutilezas da vida circula na órbita da intimidade. As temáticas das crônicas de Trinta e poucos parecem acompanhar a cronologia da vida do autor: as inseguranças do primeiro encontro, os transtornos para decorar a casa, os impasses da vida a dois, a espera do primeiro filho, a dificuldade em conciliar trabalho e família, a espera do segundo filho, o avanço da idade e os típicos dilemas de quem tem trinta e poucos anos. Em uma época em que as redes sociais estimulam a exposição de si e a criação do próprio “eu”, o tratamento que a intimidade e a notação cotidiana encontram nas crônicas contemporâneas pode oferecer uma perspectiva de compreensão não apenas para a renovação do gênero, mas também uma reflexão sobre como pensamos a exposição da subjetividade no presente.

Ruína de anjos: formas de experimentação urbanas e artísticas

Milena Tanure

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Créditos: Diney Araújo

Para uma primeira experimentação nesse formato de escrita, proponho-me a dar breves notícias sobre as minhas inclinações de pesquisa. As pesquisas, como a vida, são feitas de atravessamentos, talvez por isso, não só os objetos literários interessam como vias de inquietação e de repensar os aparatos teóricos (e vice-versa), mas também as próprias vias de encontros e desencontros acabam auxiliando no processo de dar forma a um corpus/corpo.

Nesse processo de encontros e desencontros, na busca pelas produções literárias contemporâneas que se projetam a partir da Bahia e que colocam em cena formas de experimentação e representação do urbano, discussão que começo a forjar como pesquisa, deparei-me com a peça teatral Ruína de Anjos.

A montagem do grupo A outra companhia de teatro rompe os extremos do espaço teatral e nos leva para a rua. A experiência urbana tem o poder de surpreender os espectadores que experimentam as espacialidades e trafegam pelas narrativas que se desenrolam na rua ao longo da peça. As cenas, personagens e leitores se entrelaçam entre os carros, lojas e transeuntes que povoam as ruas do Politeama, bairro do centro antigo de Salvador.

Mas um aviso prévio é dado por uma das personagens antes que se comece o trânsito: “Fiquem atentos. Não há a nada a assistir. A palavra de ordem é ENXERGAR”.

Ruína de Anjos, criação de Vinícius Lírio e Luiz Antônio Sena Jr, desenvolve-se a partir da possibilidade da reabertura de um antigo cinema de rua e a esperança de retorno a um passado de efervescência do centro antigo. Nesse cenário, as personagens vão saindo de suas sombras por entre os transeuntes/espectadores ao longo do trajeto que faz um percurso pelas ruas do bairro. Ou, em sentido contrário, os transeuntes/espectadores adentram as sombras para acessar aquilo que não era visto com atenção. Em um jogo entre realidade e ficção, nos deparamos com figuras muito possíveis nos centros antigos das cidades: uma artista de rua que solta fogo nas sinaleiras, uma velha moradora de rua, um cadeirante vendedor de “cafezinho”, um jovem homofóbico opressor que impõe um discurso burguês, uma travesti que faz ponto nas esquinas e um jovem pastor que, com sagacidade, prega e trafica drogas.

As cenas se desenvolvem na possibilidade de se pensar o abandono dos espaços públicos, a mendicância, a gentrificação, as violências urbanas, a ausência de acessibilidade e os atos de homofobia. No caminhar, quase que não há cenas prontas ou estanques, uma vez que não há a alteração do cenário urbano para a realização da produção cênica, assim, é preciso esperar o sinal fechar para seguir o trajeto e a encenação, do mesmo modo, algum dos materiais usados pode cair pelo chão e ser pego por um dos espectadores, sendo ele próprio chamado a atuar/experimentar a errância urbana que é ali teatralizada. O espectador é convidado a partilhar e testemunhar a intervenção desses personagens que passam por um processo de invisibilidade no dia-a-dia, mas que, dentro da obra, extrapolam suas barreiras e se mostram a um leitor/espectador que não sabe o que esperar ao se deparar com aquilo que sempre vê ao transitar pela cidade, mas, por vezes, não enxerga. Entra em cena a produção de sentidos de alteridade na trama da encenação e a própria ideia de experiências contemporâneas.

Contrapondo-se à ideia proposta por Agamben de estarmos vivendo a expropriação da experiência na contemporaneidade, Paola Berenstein Jacques problematiza que talvez estejamos vivenciando um processo de esterilização da experiência, e, em especial, da experiência da alteridade na cidade. Tal processo de esterilização não geraria a total destruição da experiência, mas a domesticação, o anestesiamento oriundo, sobretudo, de uma espetacularização da cidade e pacificação do espaço público por meio de falsos consensos que escamoteiam as tensões inerentes a esses cenários. É nesse contexto que se torna mais relevante a valorização da alteridade urbana e desse Outro urbano que resiste à construção dos “pseudoconsensos publicitários”. Segundo Jacques, “são sobretudo os habitantes das zonas opacas da cidade, dos ‘espaços do aproximativo e da criatividade’, como dizia Milton Santos, das zonas escondidas, ocultadas, apagadas, que se opõem às zonas luminosas, espetaculares, gentrificadas. Uma outra cidade, opaca, intensa e viva se insinua assim nas brechas, margens e desvios do espetáculo urbano pacificado. O Outro urbano é o homem ordinário que escapa – resiste e sobrevive – no cotidiano, da anestesia pacificadora. Como bem mostra Michel de Certeau, ele inventa seu cotidiano, reinventa modos de fazer, astúcias sutis e criativas, táticas de resistência e de sobrevivência pelas quais se apropria do espaço urbano e assim ocupa o espaço público de forma anônima e dissensual.”

Extrapolando bordas de representação, a peça teatral nos fala de degradação social, espacial e humana, mas nos leva a pensar, ainda, o trânsito urbano e as formas de experimentação urbanas e artísticas. É pelas vielas, esquinas e paralelepípedos, no meio do que vive ou agoniza, que experienciamos, pela arte, a vida urbana. Nesse sentido, a experiência estética com a narrativa cênica-dramaturgica coloca-me diante do fato de que, para pensar o urbano no literário, preciso experimentar linguagens e, mais do que isso, tal como um cartógrafo, ser, antes de tudo, uma antropófaga, que a tudo devora pela potência e os atravessamentos que tais experiências podem gerar no meu corpo, e consequentemente, no corpo da pesquisa que proponho.

Montaigne, o ensaio e a escrita de si

Allana Emilia

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Créditos da Imagem: Portrait Relief of Claude Pascal – Yves Klein (1962).

Ao falarmos sobre a forma do ensaio não é possível deixar de lembrar de Montaigne, talvez um dos primeiros a arriscar-se na aventura de tomar a si mesmo, a sua experiência, como objeto de análise. Até hoje, a ação de retratar a si mesmo foi um mérito alcançado por poucos escritores, ao menos se consideramos o que Virginia Woolf afirmou sobre o empreendimento do autor: “esse falar de si mesmo, seguindo as suas próprias veleidades, fornecendo o mapa inteiro, o peso, a cor e a circunstância da alma em sua confusão, sua variedade, sua imperfeição – essa arte pertenceu a um homem apenas”. Uma tarefa aparentemente simples (afinal, falar de si mesmo não é tão complicado, de acordo com a autora), que aos poucos se revela extremamente complexa.

Existem alguns empecilhos naturais a essa empreitada. Woolf ressalta, inicialmente, a dificuldade de expressão. Existe um certo abismo entre o que se pensa e o que se fala, que se torna ainda mais evidente quando nos propomos a escrever. A expressão pela fala apresenta algumas vantagens, principalmente se complementada pelos gestos e expressões faciais. Porém, a escrita apresenta protocolos próprios, que tornam essa expressão um tanto limitada. “[a escrita] Está sempre transformando homens comuns em profetas, e transmutando o andar naturalmente indeciso da fala humana na marcha solene e majestosa das penas”. Além da dificuldade de expressão, existe a complexidade inerente a ser o que se é, ou seja, ao tentar explicar como a alma se comporta, como muda, oscila, a cada momento se comportando de uma forma.

Para melhor expressar-se, Montaigne se vale da observação da própria experiência mesmo que esse “método” o leve a contradições.  Ao comentar sobre o procedimento de um pintor, afirma que ele escolhe o melhor lugar de cada parede para pintar um tema da melhor maneira possível, e depois preenche os vazios com efeitos outros que acrescentam variedade e originalidade à pintura. Então comenta: “O mesmo ocorre neste livro, composto unicamente de assuntos estranhos, fora do que se vê comumente, formado de pedaços juntados sem caráter definido, sem ordem, sem lógica e que só se adaptam por acaso uns aos outros” (I, 26). Além disso, parece deixar subentendido que sua proposta de escrever sobre variados assuntos serve a um outro propósito que não ao mero comentário: “Não os encaro apenas do ponto de vista do partido que deles tiro: comportam, por vezes, independentemente de minha intenção, a semente de uma matéria mais rica e ousada e revelam, indiretamente, algo mais requintado, tanto para mim que não quero exprimir mais, como para os que se encontrarem comigo” (I, 40).  Montaigne afirma empregar o juízo como um instrumento para avaliação de temas. Então, descreve novamente como se expressa sobre os temas: “Entre cem aspectos da mesma coisa, tomo um. E ora o debico apenas, ora o mordisco, ora vou até o osso. Escruto-o, não em larga superfície, mas tão profundamente quanto mo permite o meu saber, e as mais das vezes me comprazo em o encarar por um ângulo diferente do habitual” (I, 50).

Retratar a si mesmo é retratar um processo de mudança constante, das mudanças de comportamento inerentes ao sujeito que se é: “Meu estilo, espontâneo e familiar, não convém ao trato dos negócios públicos, mas é bem meu, de acordo com minha maneira de falar, que é substancial, desordenada, sincopada, de um tipo muito particular” (I, 40). Nasce aí um casamento ideal entre a forma do ensaio e o retrato de si? Montaigne tateante de si mesmo, parece responder que sim.

 

 

  • As referências das citações dos Ensaios vêm na ordem livro, ensaio, respectivamente.