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Autoria e construção de carreira literária nas redes

Luana Rodrigues

Créditos da imagem: “Fusion”, Ziqian Liu, 2020

Em meu post anterior, expus um pouco dos objetivos de minha pesquisa atual de iniciação científica. Durante os próximos 12 meses, pretendo analisar a relação entre a construção de uma trajetória autoral e a participação dos escritores nas redes sociais. Selfies, postagens de divulgação das obras ou participações em eventos, compartilhamentos de comentários de leitores e alguns detalhes do próprio processo de escrita criativa: essas são algumas das muitas facetas que podemos encontrar nos perfis de muitos e diferentes autores presentes nas redes sociais hoje.

Natália Timerman é a autora que passei a ler e a acompanhar virtualmente. Conheci a autora a partir da leitura de Copo Vazio, que é também  seu primeiro romance publicado por uma grande editora, a Todavia, em 2021. Atualmente, Timerman anunciou que está preparando a escrita de um novo livro com alguns elementos autobiográficos que se misturam ao ficcional. Em uma selfie postada na sua conta pessoal do Instagram, no dia 24 de setembro de 2022, a escritora Natália Timerman posa para câmera com olhar aparentemente sonolento e como legenda podemos ler o seguinte texto: “Eu entendi, tomando esse sol, na pausa da escrita do meu livro, que só vou conseguir dormir depois que terminá-lo, só vou conseguir acordar depois das 05:30 da manhã de novo depois que tiver colocado o ponto final. Só então deixarei de abrir os olhos de repente, pro escuro ainda, inquieta, com o livro inteiro na cabeça e no corpo”.

A reflexão sobre a rotina da escrita associada à foto da própria autora é um indício de como a busca por um certo equilíbrio entre a exposição da intimidade e a construção de um universo ficcional é uma preocupação que funciona não apenas como mote da produção literária, mas também da performance pública dos autores. Em sua coluna semanal para o site Uol, Timerman escreveu: “Por que postar? Por que refletir dessa forma, em público, com textos escritos no Instagram e não nas páginas do meu diário? Porque mostrar o rosto dos que amamos a quem não conhecemos, ou a quem conhecemos de longe, essas pessoas, os seguidores, que não partilham do nosso cotidiano? (…) Em que momento a declaração pública em um post virou uma espécie de medida de afeto, de garantia de apreço, de asseguramento de existência?”.

Ainda em outro texto, na mesma coluna semanal citada anteriormente, dessa vez sobre a ambiguidade entre o silêncio e a agitação inerentes ao ofício do escritor contemporâneo, Timerman diz: “(…) Para escrever –e também para ler– eu necessito não só de tempo, mas principalmente de silêncio. E por mais que eu goste do burburinho literário, de participar de debates, festas, lançamentos e conversas, literatura é quase sempre silêncio. Mas como é difícil dizer não”.

O silêncio e a quietude indicados como imperativo para a escrita parecem, no entanto, incompatíveis com o burburinho do movimento on-line. A interação, quase em tempo real com os leitores, facilita a comunicação e cria um fluxo próprio de informações e atuações, típico das dinâmicas interativas das redes. Na foto, postada em 7 de fevereiro de 2022, Timerman posa ao lado do companheiro e na legenda anuncia: “Outro dia fui procurar um texto meu na internet e, ao digitar meu nome, apareceu como uma das opções de busca do Google ‘Natália Timerman Marido’. É esse aqui, gente, o @eder_camargo, que vai ficar bravo comigo por fazer essa postagem, com quem amo dividir a vida, e quem me faz tomar as melhores decisões há exatos 6 anos”.

A observação dos movimentos no campo literário hoje sugere que a presença dos autores na internet funciona como uma forma de circulação importante para o nome do autor (em especial, para aquele que está se apresentando ao campo, publicando suas primeiras obras). Essa presença também sugere outros aspectos a serem observados: o modo como se dá essa auto-exposição, o modo como as redes funcionam como escritórios de promoção e autogerenciamento da própria imagem e da obra que vai sendo construída. Para minha pesquisa, observar esses movimentos significa interrogar como se constrói um autor hoje.

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Autoria, dentro e fora da obra

Luana Rodrigues

Créditos da imagem: “2 Anillos” – Pablo Tamayo, 2015

Como mencionei no post anterior, atualmente estou interessada em analisar a performance pública de autores que tentam inscrever seu nome e sua obra na cena literária atual, considerando como leitores e crítica se comportam diante da importância que a figura autoral assume no presente. O apelo ao autobiográfico e o autogerenciamento da própria imagem nas redes são recursos dos quais os escritores têm lançado mão e são indícios da importância que o tema da autoria assume para a teoria hoje.

Minha investigação vai se concentrar em traçar um panorama da trajetória de construção da carreira literária de Natália Timerman, que publicou seu primeiro romance, Copo Vazio, em 2021. Aí, ela explora uma série de temáticas próprias a nosso presente, como o ghosting (de ghost, fantasma), um comportamento que surge nas redes sociais e se caracteriza pelo “sumiço” de alguém com quem se construiu uma relação por meio dos aplicativos de relacionamentos.

Em Copo Vazio, acompanhamos a história de Mirela, uma jovem arquiteta bem sucedida que, por incentivo de sua irmã, utiliza um aplicativo de namoro por meio do qual encontra Pedro, um jovem doutorando de ciências políticas. Durante três meses tudo parecia correr bem até que num dia qualquer, sem aviso algum, Pedro some: “Um dia ele tá lá, no outro — puf, um passe de mágica — sumiu, e ficam os resquícios, os livros que tavam comigo, uma camiseta velha no armário, como se fossem provas, como se precisasse ter provas de que ele realmente existiu na minha vida, porque eu mesma passo a duvidar”. O ponto de vista é sempre da protagonista, o que leva o leitor a uma imersão na atmosfera psicológica de Mirela e no vazio deixado pelo “fantasma” de um relacionamento sem ponto final. Mergulhamos, segundo Fabiane Secches, “nas profundezas de suas carências e projeções, de seus temores mais íntimos”.

Mas o que me interessa comentar é o fato de que a maior parte das análises, resenhas e entrevistas sobre o livro de Timerman se concentra sobre o tema do ghosting ligando-o à vida pessoal da autora, aproximando o drama de Mirela, a personagem, à própria Timerman, ainda que não haja qualquer indício na obra que pudesse supor algum traço autobiográfico no romance.

Como resposta a essa aproximação entre a ficção e a autobiografia, Timerman escreveu um comentário na sua coluna semanal para o site Uol intitulado O ghosting real que virou livro de ficção: o que é verdade em ‘Copo Vazio’ no qual relata sua resistência inicial ao que  chama de “demanda incessante pela intimidade de um eu”: “Copo Vazio é um livro de ficção, sobre uma personagem que não existe. Eu acho graça que já tenha sido chamada de Mirela algumas vezes, em debates, lives, conversas sobre o livro; acho graça também que o que eu inicialmente quis esconder, que havia de fato levado um perdido, tenha saído em manchetes através da palavra autobiográfica.”

É interessante perceber como a reflexão de Timerman afasta a simplificação de ler a “verdade” por trás da ficção, mas, ao mesmo tempo, confirma o mote autobiográfico da narrativa. Essas voltas em torno do autobiográfico não deixam de ser uma forma de alimentar o desejo contemporâneo pela intimidade, em especial porque é a própria autora que é demandada a falar em entrevistas de divulgação do livro, expondo-se “fora da obra” para  estabelecer diálogos com a recepção. Essa atuação dos autores junto a suas obras merece mais atenção do que a mera crítica negativa a tais posturas e é essa atuação que interessa a minha investigação.

O retorno do autor: dentro e fora do texto

Luana Rodrigues

Créditos da imagem: “Double Gong” – Alexander Calder, 1953

Todos sabemos que em seu ensaio “A morte do autor” Barthes, ainda filiado a vieses estruturalistas,  pretendia eliminar os aspectos biográficos do literário como forma de conceder autonomia ao texto e ao leitor.  No entanto, na contemporaneidade, as investigações acerca das noções de autoria parecem indicar outras direções. Segundo Ana Cláudia Viegas, “assistimos hoje a um ‘retorno do autor’, não como origem e explicação última da obra, mas como personagem do espaço público midiático”. O tema já foi tratado aqui no blog, nos posts de Fernanda Vasconcelos e de Caroline Barbosa.

É possível pensarmos um texto sem seu autor hoje? Acredito que “a literatura hoje é um ‘dentrofora”, como postula Josefina Ludmer, pois importam tanto forma e tema dentro do texto quanto a figura autoral “fora” da obra em entrevistas, aparições em eventos e atuações nas  redes sociais. Sabemos ainda que a crítica ocupa um papel importante na legitimação de obras e autores, mas com o advento da internet, as redes sociais e os influencers digitais, este lugar da crítica também se desloca ou se flexibiliza, embora não a salvo de controvérsias. Essas movimentações me interessam para pensar os novos lugares que a autoria do século XXI ocupa dentro dos rearranjos do campo.

Foi pensando nestas questões que elaborei meu plano de trabalho para desenvolver minha iniciação científica. Acredito que as mídias digitais constituem hoje importantes canais de mediação entre autores, leitores e críticos e, considerando o retorno do autor, gostaria de investigar quais estratégias discursivas compõem e constroem a identidade autoral, dentro e fora do texto, na contemporaneidade. Para tanto, pretendo observar a performance de autores que desejam inscrever seu nome e sua obra na cena literária do presente. Penso em observar, em especial, em escritores e escritoras que estão publicando suas primeiras obras, como Natália Tiimerman, psiquiatra, doutoranda em literatura e autora de “Desterros” (2017), “Rachaduras” (2019) e “Copo Vazio” (2021).

Timerman é uma autora bastante ativa nas redes sociais, concede muitas entrevistas, oferece cursos online e participa de eventos. Em todos esses canais, atua também como divulgadora de sua obra. Acompanhar a atuação dos autores nas redes sociais, então, tem como pressuposto realizar a análise do modo como a  identidade autoral vai se construindo por meio do “autogerenciamento”, como sugere a professora Milena Britto, que os autores fazem de sua imagem pessoal e profissional se dividindo entre produzir e divulgar seu nome e suas produções através dos meios em que eles atuam. É pensando nessa atuação que me interessa compreender o papel que as mídias digitais exercem sobre a construção da carreira dos autores, como essa presença dos autores na rede atua para a inserção de seus nomes e obras no campo literário. Não me interessa discutir a espetacularização ou de antemão julgar como negativa essa presença do autor, pois me interessa mais pensar a dinâmica do campo literário, uma noção de Bourdieu, e a maneira como essa atuação e as novas posturas autorais podem significar também uma forma de subverter os lugares de poder na cena literária contemporânea e influenciar o modo como o mercado faz circular a literatura.