Arquivo do mês: julho 2020

A internet, a ficção, a vida

Luciene Azevedo

Créditos da imagem: Robert Polidori – Señora Faxas Residence, Miramar, Havana, No. 1, 1997.

Kenneth Goldsmith, professor na universidade da Pensilvânia, criador da famosa Ubuweb e inventor da escrita não criativa, relaciona o que chama de “obsessiva documentação de nossas vidas” ao modo como a internet, nossas cotidianas atividades digitais (mais presentes do que nunca em tempos de pandemia) potencializam nossa pulsão para formar arquivos. Segundo ele, movidos por uma natureza obsessiva, nós nos tornamos autobiógrafos e também biógrafos dos outros quando somos compulsivamente levados a coletar fatos, impressões, textos, imagens de tudo o que possa ser captado no imenso arquivo da web. Talvez, ele arrisca, esse modo cumulativo, documental de lidar com a vida seja um indício de que a ficção não é mais suficiente para lidar com uma concepção de vida que está sendo modificada hoje de um modo tão complexo que mal chegamos a compreender.

Estamos cansados da ficção?

Em um excelente ensaio-verbete escrito para uma espécie de enciclopédia do romance, Catherine Gallagher afirma que uma das marcas essenciais, delimitadoras da ficção como modalidade discursiva é o reconhecimento da diferença entre pessoa e personagem. Gallagher afirma que para leitores competentes “A acessibilidade à vida interior [garantida pelo narrador] é sinal evidente de que nos achamos diante de uma personagem ficcional”. Dado que ninguém é capaz de se inteirar por completo da consciência de outrem ou sequer da sua própria, a ficção se desvendaria por transpor essa barreira, oferecendo a exposição da interioridade de um personagem, marcando assim um território próprio: o da invenção. Desenvolvendo essa caracterização, Gallagher observa que “Se a personagem realmente existisse, também existiriam os limites destinados a extinguir a realidade criada pela ficção”.

Para Gallagher, “Não existiria modo algum de ‘entrarmos’ em outra pessoa e não poderíamos experimentar aquele sutil alívio que sentimos ao pensarmos em nossa imperscrutabilidade” se não pudéssemos contar com a certeza de que estamos em um mundo inventado, de que a “realidade criada pela ficção” é palpável por meio do personagem que atua como uma máscara para nos lembrar do quanto somos desconhecidos de nós mesmos.

Mas não seria exatamente essa sutil e sofisticada ligação que é posta em xeque, dá sinais de superação quando nos encontramos com livros nas quais as vozes narrativas parecem desistir de armar mundos ficcionais e desejam investir no mergulho de um mundo pessoal, sem se importar com a aproximação com o nome do autor que aparece na capa do livro, sem recair no pieguismo ou no narcisismo absolutos (embora isso também seja possível no vasto modo de produção artístico atual)? Não seria possível especular que essas vozes criam de si mesmas um “efeito-personagem” sem esperar nenhum “alívio” ao se deparar com a própria imperscrutabilidade, que é transferida também ao olhar lançado ao mundo e, por tabela, força o leitor a experimentar esse olhar?

Se consideramos a provocação de Goldsmith, poderiamos pensar que as minúcias da “vida real” que encontramos em tantas histórias hoje são uma maneira de inventariar uma subjetividade dispersa e cacofônica que se interroga sobre o que a vida tem a oferecer ao leitor do século XXI.

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Estratégias da autorrepresentação na literatura brasileira contemporânea

Samara Lima

Créditos da imagem: “Birth of Oshun”, de Harmonia Rosales

Há cerca de um ano, iniciei um projeto de iniciação científica intitulado “A autorrepresentação do negro no conto brasileiro: o retorno do recalcado”.

Longe de pretender fazer um retrato totalizante, a investigação pretendia mostrar a complexidade da ideia de autorrepresentação e a pluralidade do fazer literário dos escritores atuais que escolhemos para o corpus de análise: Cidinha da Silva, Geovani Martins e Cristiane Sobral. Assim, a investigação teve como mote a seguinte pergunta: quais foram os artifícios literários utilizados pelos autores negros para inscreverem a complexidade das maneiras de conceber a negritude?

bell hooks, em seu ensaio o olhar opositor: mulheres negras espectadoras (2019), tece uma discussão sobre como muitas produções fornecem “representações positivas ‘realistas’ que surgem […] como resposta à natureza generalizante das narrativas existentes”. Dentro desse cenário, a partir das leituras ficcionais e teóricas sobre a autorrepresentação foi possível perceber que muitas textualidades produzidas pelos escritores afrodescendentes propunham questionar as representações desumanizantes criadas pela branquitude impostas à sua raça, como a visão da mulher negra enquanto um corpo-objeto, por exemplo. Essa estratégia consiste, então, em tomar os valores da  branquitude para desconstruí-los. A narrativa constrói-se assim num diálogo cerrado entre o preconceito e a afirmação.

Durante a investigação, também nos deparamos com produções que, sem evocar ou se referir diretamente aos preconceitos da branquitude, optava pela atitude afirmativa, de inscrição dos valores capazes de fortalecerem uma (auto) representação positiva da negritude. O objetivo é o mesmo, mas há uma mudança na forma como alcançá-lo.

 Em meu último post, por exemplo, analisei o conto Metal-Metal, de Cidinha da Silva e comentei como os deuses e mitos que perpassam o universo da religião de matriz africana são recorrentes na poética da autora. É curioso notar como Cidinha da Silva não põe em tensão a imagem da religião de matriz africana com a representação negativa, que associa essa religião ao mal, um lugar comum do que há de pior no imaginário coletivo. Neste conto e em muitas outras de suas produções, da Silva produz uma maneira de pensar política e literariamente que explora diretamente o universo das simbologias e expressões africanas. Assim, não encontramos na narrativa nada que evoque os preconceitos correntes contra o candomblé, por exemplo, mas somos apresentados diretamente à lógica de representação de suas entidades, lógica que é incorporada pelos personagens e representada pela narrativa. A incorporação de divindades das religiões de matriz africana em sua literatura não é mero adereço, os deuses interferem na construção do sentido da narrativa e são motores de sabedorias ancestrais, como o encontro, no conto, entre Ogum e a protagonista, no post anterior.

Seja confrontando as representações estereotipadas sobre a negritude ou dando menos importância a essa tensão, o fato é que os autores, através da literatura e de diferentes recursos, questionam as problemáticas do negro na sociedade brasileira e buscam criar imagens humanizadas de suas identidades que, durante muito tempo, foram representadas de forma estigmatizada. 

Autoficção = realidadeficção?

Marília Costa

Créditos da imagem: Antony Gormley, Blind Light, 17 May – 19 August 2007, Hayward Gallery. Image © Stephen White 

Nas últimas postagens aqui no blog, Antônio Caetano e Ramon Amorim comentaram sobre o romance O pai da menina morta de Tiago Ferro.  Antônio discutiu a recusa do termo autoficção por muitos autores e Ramon falou sobre o romance desmontável. Hoje, pretendo trazer para a conversa mais uma perspectiva sobre o livro que venceu o prêmio Jabuti em 2019 na categoria romance.

Embora o livro tenha sido festejado pela crítica e premiado por esferas importantes do campo literário, é notório o estranhamento dos leitores diante da escrita fragmentária e híbrida. Mesmo sendo o romance, desde o seu surgimento na era moderna, caracterizado como um gênero amorfo por natureza porque é uma forma rica em experimentações formais, o fato de a obra de Ferro tomar como mote central da narrativa um episódio trágico da vida do autor, levanta suspeitas sobre se o livro pode ser chamado de romance.

Do ponto de vista da crítica contemporânea, podemos pensar o livro O pai da menina morta a partir da ideia do “fora-e-dentro” desenvolvida pela crítica argentina Josefina Ludmer ao descrever o que ela chama de literaturas pós-autônomas. Segundo Ludmer, muitas produções criadas a partir do século XXI são textos que “não só atravessam a fronteira da ‘literatura’, mas também da ‘ficção’, permanecendo fora-e-dentro das duas fronteiras.”

Apesar de o livro de Tiago Ferro estar inserido no sistema literário (foi lançado por uma grande editora, recebeu prêmios e seu autor defende que escreveu um romance, apesar do dado biográfico), talvez não possa ser lido considerando critérios válidos para as obras modernas, pois é marcado por uma ambiguidade própria à autoficção: ao mesmo tempo é e não é ficção e talvez pudéssemos dizer: é e não é literatura, pelo menos tal como nos acostumamos a ler as obras durante a modernidade.

Antes de publicar o romance pela Todavia, Ferro escreveu um ensaio para a Revista Piauí contando os momentos que antecederam à morte da filha e a experiência do primeiro mês de luto pela perda. Nesse mesmo texto, ele conta que, logo após a morte da filha, publicou diversas fotos e relatos no facebook, criando todo um imaginário sobre os acontecimentos. Em O pai da menina morta encontramos um conteúdo muito próximo ao que lemos no ensaio. Esse gesto do autor de publicar nas redes sociais, e também em uma revista de grande circulação, relatos sobre o acontecimento real da vida do autor que serve de mote para a imaginação narrativa do livro pode ser compreendido como o que Ludmer chama de saída da literatura e entrada na “realidade” e no cotidiano.

A repercussão da morte da filha, veiculada pela imprensa, mas também comentada como um processo de luto nas redes sociais pelo próprio Ferro são elementos “de fora”, mas ao mesmo tempo integram a matéria da ficção. Assim, o doloroso episódio biográfico não deve simplesmente ser confundido com a realidade factual opondo-se à ficção, mas já faz parte da esfera da representação. Considerando o argumento de Ludmer, o livro de Ferro torna difícil para o leitor distinguir o que está  “fora” da ficção (a biografia? a tragédia pessoal?) e o que está “dentro” (a elaboração do luto por meio da linguagem, a experimentação com a forma fragmentária). E é isso o que faz a obra ser tão desafiadora para o leitor.

A literatura no presente

Nilo Caciel

Créditos da imagem: ‘‘Tenho medo que sim’’ de Regina Parra

Mulheres empilhadas, romance de Patrícia Melo publicado pela editora Leya em 2019, narra a trajetória de uma advogada paulistana que parte para o Acre a fim de acompanhar os trabalhos de um mutirão criado pela justiça para solucionar casos de feminicídios. A escolha do Acre não foi por acaso: o estado lidera o ranking nacional de crimes contra a mulher. Lá, a jovem se vê diante das complexidades legais, econômicas e culturais que cercam a violência de gênero.

A violência doméstica e a condição das mulheres na sociedade brasileira permeiam toda a obra. A mãe da protagonista foi assassinada pelo marido. A princípio os leitores são levados a acreditar que vamos conhecer a própria experiência da protagonista, já que o ponto de partida da narrativa é o relato de seu relacionamento abusivo com Amir. Depois de ser agredida pelo namorado, que no começo do relacionamento não parecia encarnar o papel do macho violento, a narradora decide aceitar o trabalho de sua agência de advocacia e viajar para o Acre.

Ao mostrar as diferentes formas nas quais o machismo se manifesta na vida das diferentes personagens é que a obra ganha nuances, já que o livro mostra o caráter ‘‘democrático’’ do machismo: ele não poupa mulheres oriundas de classes privilegiadas.

Patrícia Melo declarou ao Correio Braziliense: ‘‘Não acredito que a literatura tem uma função social’’. No entanto, ao falar sobre o livro ao Estado de Minas, a autora expressa a urgência de falar sobre o tema no momento atual: “É algo que temos que falar. No Brasil, matam-se onze mulheres por dia. São números que assombram, que nos incomodam, nos intimidam. É uma estatística inaceitável. Dentro desta sociedade violenta em que vivemos, o feminicídio é a ponta do iceberg. Mas, quanto mais a gente debater isso com profundidade, mais vamos tentar encontrar um mecanismo para erradicá-lo”.

Algumas outras entrevistas chamam a atenção para o fato de que Mulheres Empilhadas é seu primeiro romance narrado por uma mulher ainda que Melo já tenha lançado doze livros, muitos dos quais traduzidos para várias línguas, e de ter sido premiada com o Jabuti por Inferno em 2001.

Será que poderíamos dizer que a obra de Melo e a decisão de, já veterana, dar voz a uma narradora feminina para falar do feminícidio está relacionado a uma tensão que força a fronteira do que chamamos de ficção hoje? Melo quer ocupar a literatura com um problema que ronda nosso dia a dia, amarrando as preocupações de nosso presente às preocupações, temas e personagens da literatura contemporânea. Um artifício da própria narrativa que deixa isso evidente é o jogo entre a história fictícia da protagonista e a menção a histórias reais de feminicídios no texto que lidam com nomes verdadeiros das vítimas e expõem um mínimo contexto de suas mortes. Mas talvez o elemento mais evidente da tensão a que me referi diz respeito aos trechos que remetem às Icamiabas, as míticas índias guerreiras da Amazônia, pois a protagonista se alia, em delírio provocado pela ingestão de bebidas alucinógenas, a um grupo de mulheres justiceiras que lutam juntas contra a violência masculina, punindo os agressores que conseguem escapar impunes da lei. A atmosfera fantástico-maravilhosa destes trechos cria um contraste com o tom realista da narrativa principal, que muitas vezes se assemelha a uma reportagem jornalística.

Esse talvez seja o aspecto mais interessante da obra, pois mostra como escrever e ler ficção hoje significa também apontar para a reflexão sobre o modo como encaramos o que chamamos de literatura.

O “romance desmontável” como experiência radical da narrativa contemporânea

Ramon Amorim

Créditos da imagem: Stephan Balkenhol, Three Hybrids, 1995

O conceito de “romance desmontável” foi primeiramente concebido por Rubem Braga (1913-1990), para tratar do livro Vidas Secas, de Graciliano Ramos (1892-1953). Em linhas gerais, diz respeito à produção narrativa longa em que suas partes possuem certa autonomia e, por isso, podem ser lidas individualmente, sem prejuízo do sentido, ou mesmo fora da ordem proposta pelo autor/editor. Seria então um romance formado por um agrupamento de textos mais curtos que dialogam entre si, de forma mais ou menos independente, dentro de uma estrutura maior.

Rubem Braga aponta que foi a necessidade econômica, visto que Graciliano Ramos vendia trechos da obra à medida que ia escrevendo, que fez com que Vidas Secas tivesse essa disposição. Não havia, portanto, inicialmente, uma finalidade estética, mas sim uma imposição pragmática que explicava o formato desse romance lançado em 1938.

Se pensarmos na literatura produzida nas últimas três ou quatro décadas, podemos observar que muit@s autor@s usam a estrutura do romance desmontável como experiência estética, principalmente. O que leva a essa escolha de forma, portanto, está menos relacionado a questões financeiras e mais a um exercício de linguagem. Considerando isso, recorro a produções de Caio Fernando Abreu, Bernardo Carvalho e Tiago Ferro  para exemplificar o que digo.

Lançado em 1988, o livro de contos (assim é descrito na ficha catalográfica) Os dragões não conhecem o paraíso apresenta uma nota do autor em que ele diz, entre outras coisas que “se o leitor quiser, este pode ser um livro de contos”. Caio Fernando Abreu afirma ainda na nota, porém, que “se o leitor quiser”, pode ler a obra como “espécie de romance-móbile”, ou ainda, “Um romance desmontável, onde essas 13 peças talvez possam completar-se.” Para Abreu, há um tema em torno do qual a/as narrativa/as gira/am, o amor. Portanto, as histórias estão unidas apenas pela temática central que apresentam.

Já em As iniciais (1999), a indicação de que se trata de um romance está na capa e a ficha catalográfica reforça a ideia ao marcar, As iniciais: romance. Não existe, então, qualquer indicação ou nota do autor que explique a estrutura do livro. O que une as duas partes da narrativa de Bernardo Carvalho é a presença um narrador enigmático que conta as duas histórias que compõem a obra. 

Por último, O pai da menina morta (2018) exemplifica talvez a experiência mais radical, no que diz respeito à ideia de “romance desmontável”. A narrativa apresenta o que muitos autores chamam de hibridismo de forma, há a ocorrência de diversos gêneros (verbete, lista, formulário, reprodução de e-mails, crônicas, fotos etc.) e tipos textuais (narração, descrição, dissertação). O livro de Tiago Ferro exibe inúmeros textos, na sua maioria curtos e independentes entre si, sob a forma de romance, como confirmado na ficha catalográfica. Para tratar do luto pela morte da filha, o autor constrói uma espécie de sucessão de notas mentais sobre os mais diversos assuntos e tempos. Em O pai da menina morta não uma história única, mas dezenas de trechos diversos e completamente independentes que podem ser lidos em qualquer ordem sem prejuízo do entendimento. Assim, o livro de Tiago Ferro pode ser também um “romance desmontável”.

A pergunta que me faço é: o que muda na leitura de um livro que traz essas questões sobre a maneira como organiza sua forma de narrar?