Por Davi Lara
Boa parte da narrativa produzida hoje desafia nosso entendimento do que consideramos literatura. Em contrapartida, existe um movimento forte, por parte da crítica, no sentido de renovar o instrumental teórico/analítico com vistas a explicitar os impasses de leitura provocados por esses objetos. Um exemplo mais concreto pode ser útil para explicar o que estou querendo dizer. Retiro-o do debate em torno da autoficção, que é meu objeto de pesquisa. Num estudo de referência sobre o assunto, a crítica argentina Diana Irene Klinger circunscreve a literatura autoficcional contemporânea dentro da longa tradição das escritas de si. Assim, ela chega à sua principal contribuição para a discussão sobre o tema, que é a ideia da autoficção como performance.
Dentre os muitos desdobramentos desta definição, destaco articulação entre “a escrita com uma noção contemporânea de subjetividade, isto é, um sujeito não essencial, incompleto e suscetível de auto-criação”. Isso significa que, na leitura da obra, os dados intrínsecos perdem a primazia que tinham na perspectiva da crítica representativa (veja-se “Crítica e sociologia”, de Antonio Candido, por exemplo). Em pé de igualdade com os dados intrínsecos, os críticos têm que lidar com o elemento ingovernável da vida, que invade o texto ao mesmo tempo em que cria uma série de rotas de fuga para fora dele. Criando, assim, um novo locus da literatura, agora expandida. Nem dentro e fora do texto, mas dentro-fora.
O problema começa quando nos confrontamos com os problemas concretos propostos pelas obras e pelas possibilidades de leituras. Explico-me: julgo acertado afirmar que, no que diz respeito à escrita de si, a autoficção ofereça uma forma de expressão performática da subjetividade individual. Porém, na autoficção, a escrita de si é fundida à literatura, de modo que, ao lado do caráter performativo, há sempre uma força normativa, própria do literário, conforme ele tem sido pensado pela teoria literária. Literatura é forma, é texto, e o crítico literário inevitavelmente pensa de acordo com essas categorias (também). Assim, quando menos esperamos, estamos avaliando o elemento vital, que conforma a autoficção como uma performance, como um dado textual, algo que, mesmo sendo extrínseco ao texto, se soma ao material intrínseco da obra em prol da criação de um objeto coerente, passível de análise.
Será que, ao transformar os dados da vida em objeto textual, simulacro passível de analise, não estamos obedecendo à cartilha crítica da representação? Se sim, como fugir desse gesto vicioso da atividade crítica? O que significa fazer crítica sem reduzir o elemento vivo a simulacro? Significa agir diretamente no real, por meio de posicionamentos éticos e ativismos políticos? Mas a crítica representativa já não fazia isso? E que é isso que chamamos de “real”, afinal de contas?
É claro que eu não tenho uma resposta a essas perguntas. Mas me parece que o próprio trabalho de formulá-las, corrigi-las e aperfeiçoá-las é inevitável para a crítica interessada em compreender seu lugar dentro da configuração das artes do presente.