Arquivo do mês: janeiro 2016

Autor, editor e agente literário de si mesmo

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Por Marília Costa

Bruno de Moura é poeta, baiano, estudante de administração e distribui seus textos de forma marginal pela cidade de Salvador e pelos eventos literários que frequenta. Bruno começou a escrever aos quinze anos e aos dezoitos anos passou a colar cartazes pela cidade com poemas de sua própria autoria, para ele, a poesia deve ser o mais coloquial possível. Inspirado pelo que identifica como ideias filosóficas, faz questão de adaptá-las à nossa realidade.

Bruno se considera um artista independente. Ele mesmo produziu e editou cinco livretos com os seus poemas: Poesia Analógica (2015), Miopia (2013), Poliamor (2014), Dos amores que foram embora e não voltam mais (2014) e Pequenas estórias (2015). O autor planeja lançar um livro de crônicas, mas diz que não contará com o apoio de nenhuma editora.

“Eu sou artista independente, boicoto editoras! Esse ano vai sair um livro de crônicas, ele terá um melhor acabamento, mas não para dizer que lancei um livro. Interesso-me pelo conteúdo artístico. Tudo que faço tem uma estética.” (MOURA, 2016)

Durante algum tempo, autor distribuía gratuitamente seus livretos em saraus e aos amigos, mas atualmente os vende a preços populares. Além disso, para divulgar os textos, faz uso das redes sociais e o ritmo de publicação é quase simultâneo ao de sua produção. Para Bruno, a estética é aquilo que busca para traduzir o que sente. No momento, está trabalhando em “Orquestra da saudade”, um poema “fast-food”, como o próprio autor define. Salvador é o pano de fundo de suas criações, está presente nas postagens da internet, nos cartazes que espalha pelas ruas e nos vídeos que planeja fazer.

Uma rápida busca no Google basta para termos uma ideia de como a lista de sites que oferecem oficinas, workshops, tutoriais de como editar o próprio livro é gigantesca. Parece já existir um mercado estruturado em torno disso. Como afirma Ana Claudia Viegas, a atuação multimídia do autor que, além de produzir sua obra, encarrega-se de pensar estratégias de divulgação e circulação de suas produções e de seu nome, parece ser uma tendência da literatura contemporânea. Um fator importante para o que parece ser uma nova condição da autoria na cena contemporânea é o uso da internet como suporte. Nesse sentido, os textos de Bruno de Moura dizem muito do tempo presente e do funcionamento do campo literário hoje.

A narrativa de Ben Lerner

Por Bruno Loureiro

Há pelo menos um ano – ou mesmo um tanto menos que isso, não tenho certeza -, minha compreensão sobre as margens que delimitariam supostas fronteiras dos elementos presentes no contexto literário contemporâneo eram outras completamente diferentes daquelas que vejo hoje; ou pelo menos percebo que tais delimitações duras não condizem com o sentido anteriormente simples e direto de minhas interpretações. Assim, pude observar alguns cantos mais nebulosos, outras reentrâncias e a matéria gasosa que delimita essas fronteiras – observem, então, antes eu mesmo acreditava serem sólidas! -, tudo isso com algumas lentes um tanto opacas, é verdade, e tive a impressão de que na própria ferramenta havia algo de muito desregulado. Mas foi com aquilo mesmo, instrumento o qual ousei chamar microscópio, que pude observar, durante as horas de leitura dedicadas à Estação Atocha, de Ben Lerner, os elementos que gostaria de comentar aqui.

A narrativa, construída a partir de um ponto de vista autorreferencial, acompanha um americano, Adam, que foi contemplado com uma bolsa de estudos de um ano, durante o qual escreveria um poema sobre a Literatura e a Guerra Civil espanholas. Acontece que o personagem desconhece qualquer coisa relacionada à guerra e nem mesmo pode se reconhecer como especialista da literatura espanhola. O período dessa vida que acompanhamos é movimentado por automedicação, uso de haxixe e pelo relato, às vezes, cômico, das situações nas quais se vê envolvido o protagonista por não conseguir entender o que de fato está sendo falado ao seu redor, pois o próprio conhecimento do idioma é falho.

Durante a narrativa, o elemento autorreferencial alimenta a ficção. Muitas são as semelhanças entre a vida do autor e de seu personagem e a ambiguidade entre autor e personagem confirmam o toque autoficcional. É uma jogada de vai e vem constante onde, se num momento, as questões reais se mesclam à ficção e afirmam sua autoridade sobre os elementos supostamente ficcionais – nomes de amigos em comum, eventos cotidianos da viagem que ambos (personagem e autor) fizeram, ou mesmo o lugar onde nasceram e a profissão dos pais – como experiências biografadas, em outro momento, a mera biografia é negada. O primeiro indício dessa negação que também constitui uma tensão é o que dá a identidade inicial do personagem em seu ambiente ficcional – seu cartão de visita – pois o nome do protagonista é Adam.

Apesar da negação da homonímia entre personagem e autor, essa mescla constante do ser e não ser é uma das marcas que direcionam a uma compreensão e interpretação autoficcional da narrativa – interpretação cuja a definição não é “dura” -, “a possibilidade de apagar, ao menos embaralhar, os limites entre uma verdade de si e a ficção… a leitura simultaneamente referencial e ficcional de um mesmo texto”, segundo Luciana Hidalgo. Um contato íntimo distanciado; a ficção e a realidade

diluídas num único fluido, uma mescla na qual a separação dos elementos reais e ficcionais dificilmente podem ser separados: ficção e evento biografado. Esse movimento de vai e vem brinca com a ideia de texto biográfico e torna imprecisa a definição do texto como puramente ficcional.

Assim, ao optar por uma narração em primeira pessoa, na qual se põe nos olhos do personagem, Lerner em momento nenhum assume a narrativa como um texto autobiográfico, pelo menos de forma direta. Pelo contrário, os aspectos autobiográficos são sempre contextualmente suspeitos, ainda que se revelem com frequência considerável.

Em seu texto Autoficção e literatura contemporânea, Azevedo relaciona o advento da chegada dos blogs com o artificio autoficcional, “como o mais novo dispositivo propulsor de artificialismos que investe na espetacularização do sujeito”, onde os autores poderiam criar personas próprias, “com subjetividades construídas para serem apenas vitrines de exposição de um eu produzido artificialmente, uma identidade fake”. Não existe aí uma relação direta com a ficção de Ben Lerner. Há porém um contexto muito interessante internamente construído na obra do autor americano, onde o personagem reconstrói a própria personalidade, por estar num contexto onde não é conhecido e suas poucas relações serem, simplesmente, superficiais – não uma superficialidade por não haver de fato uma relação, mas por serem relações recentes. Ele se “autoficcionaliza”, cria uma ficção de si mesmo, torna-se outro. Enquanto nos blogs, a persona fake é criada num ambiente virtual e é oferecida como o real, na narrativa, o personagem (Lerner/Adam) tenta inventar um outro de si mesmo, já que está num lugar onde não o conhecem e ele poderia ser quem quisesse: na Espanha, na escrita do romance.

Nesse sentido, a vida é ficcional, é uma vida criada para existir naquele contexto (durante a estada de Adam por um ano na Espanha, durante a leitura do romance de Lerner), onde Lerner/Adam se põem como espectadores do próprio teatro.

Não existe uma grande transformação no personagem de Estação Atocha. Ele permanece muito próximo do que era quando disse a palavra que abre o romance, mas o que importa talvez não seja sua transformação, sua educação sentimental, mas simplesmente o desvelamento do trabalho de tornar-se autor de si mesmo que deriva numa dupla entrada de leitura do texto: biográfico e ficcional. É essa estranheza que me faz perguntar a mim mesmo a respeito dessa leitura e, também, a respeito de algumas outras narrativas contemporâneas: o que é, então, este romance?