Arquivo do mês: junho 2023

“Isso não é doença de criança”

Ramon Amorim

Créditos da imagem: Michael Golden, Untitled collage, 2016

“Para mim, aids era uma doença de prostitutas, gays e viciados. Não de uma mãe, não de minha filha, não de um bebê.”

Durante as investigações feitas para a construção da tese que busco desenvolver no curso de doutorado, tenho observado o quanto a produção narrativa sobre a temática do HIV e da aids é pouco diversa no conjunto de suas abordagens. Ainda há uma recorrência na representação do tema associado a sujeitos e grupos marginalizados, sobretudo aos homossexuais.

Diante de mudanças no perfil epidemiológico das pessoas infectadas pelo HIV, ainda é comum, mesmo em produções mais recentes, um conjunto de representações que recorre a imagens originadas durante a emergência da epidemia e cristalizadas nas suas duas primeiras décadas.

Assim, a citação que dá título a este texto poderia ser pensada, fora do seu contexto original, como uma afirmação que atesta o que foi dito até aqui. Porém, ela apresenta camadas que precisam ser melhor analisadas, visto que está em uma das únicas narrativas em que há a presença, e o protagonismo, de uma criança vivendo com HIV, o livro Pequeno segredo, de Heloisa Schurmann, lançado no ano de 2012.

O relato sobre a origem e a história de Kat Schurmann, uma criança com HIV adotada pela família de velejadores antes de completar três anos, é fruto dos acontecimentos vividos pelos Schurmann nos mais de dez anos em que conviveram com a jovem, que era considerada por um dos médicos como uma “criança terminal” desde de os primeiros anos de vida.

É interessante pensar como a narrativa de Pequeno segredo, mesmo apontando para a possibilidade de construção de uma nova forma de representação para as produções literárias sobre a temática do HIV e da aids, insiste ainda na oposição entre o que é “mostrado” e o que é “dito” pela narradora. Se a aids (diagnóstico atribuído à jovem) “não é doença de criança”, como é possível então narrar sobre Kat e sua experiência com a aids? Por que a produção ficcional tem ainda utilizado imagens tão pouco diversas se narrativas (auto)biográficas, por exemplo, caso de Pequeno segredo, têm avançado nas formas de representar?

O caminho para responder essas indagações passa pela ideia já apresentada aqui e que remete ao fato de que a representação literária sobre o tema, assim como a social, é pouco diversa, o que dificulta criar imagens diferentes das criadas até então para representar as questões referentes ao vírus e à doença. Assim, mesmo uma produção que apresenta uma forma diversa de abordar o tema, ainda continua a dialogar com imagens ultrapassadas, pois parece que elas fazem mais sentido que quaisquer outras.

Posturas de autor

Luana Rodrigues

Créditos da imagem: Claire Heggen, Théâtre du mouvement, Catherine et l’armoire, 1985. Mise en scène: Yves Marc.

Em textos anteriores aqui no blog venho pensando acerca da importância das redes sociais para a inserção e consolidação dos autores no campo literário. As redes sociais integram a esfera pública e mesmo autores que são refratários a elas, reconhecem seus efeitos (tanto os positivos, quanto os negativos) para a cena literária contemporânea. Portanto, neste texto quero continuar pensando nelas como espaço de observação das posturas autorais atuais.

Na esteira de Alain Viala, Jérôme Meizoz, em Postures littéraires: mise en scènes modernes de l’auteur vai definir o termo “postura” como uma maneira singular de o autor ocupar uma posição no campo literário. Segundo Meizoz a “postura” é algo comum a todos os escritores, mas não deve ficar limitada à análise dos elementos mais visíveis, gestuais ou superficiais da atuação de um autor como se se tratasse apenas de uma mise en scène intencional, [pois] longe de ser considerada um epifenômeno que afirma a midiatização recente e ultraja a literatura, a adoção (consciente ou não) de uma postura é constitutiva do ato criador.

Embora Meizoz afirme que a postura só é significativa se pensada em relação a três instâncias (a posição no campo, as opções estéticas e as condutas públicas), os exemplos com os quais trabalha faz pensar que a postura deriva de uma obra, configura-se primeiramente no texto. Assim, Houellebecq e Céline são dois autores citados como exemplos de posturas que se inscrevem primeiramente nos textos e que são expandidas para a atuação pública dos autores.

Mas no caso de autores que buscam a inserção e a consolidação de seu nome de autor no campo literário e que ainda não contam com uma obra consolidada e, considerando que as redes sociais funcionam como uma vitrine de exposição, divulgação e circulação dos autores e de suas obras, não seria possível pensar que a postura autoral pode se formar antes mesmo que um autor tenha publicado um conjunto de livros que possa ser chamado de obra?

A noção de “postura”, tal como pensada por Meizoz, pode me ajudar a pensar a inserção de Natália Timerman como autora na cena literária contemporânea. Timerman participa de muitas redes sociais ativamente. Sua presença oscila entre a divulgação de suas publicações e de participações em eventos de promoção de seus livros e certa abertura para a incorporação de notícias biográficas. É através das redes sociais da autora que podemos tomar conhecimento de sua relação com a crítica e com os leitores, das entrevistas concedidas, enfim de sua atuação pública na condição de autora, mas também de alguns dados pessoais e de informações sobre sua rotina privada. Muitas narrativas da autora exploram a relação dos personagens com as redes sociais e também é possível estabelecer uma aproximação biográfica entre as histórias vividas pelos personagens e a própria Timerman, em virtude de comentários de natureza mais pessoal feitos na rede pela própria autora. Essa dupla utilização das redes sociais (como tema da obra e para sua divulgação e também para exposição privada) me leva a pensar em uma postura ainda em construção, também indefinida, tanto na conduta pública, quanto na opção estética.

A tradição literária sempre considerou o autor um elemento externo ao texto. Mas o cenário contemporâneo da utilização das mídias sociais pelos autores não é um estímulo para pensar a construção de uma “postura” autoral concomitante (ou mesmo anterior?) a uma assinatura textual?

Possíveis modulações da autobiografia

João Matos

Créditos da imagem: Alain Fleischer, L’homme dans les draps, 2017.

Ao ler uma autobiografia, partimos sempre do mesmo princípio: a narrativa tem como objetivo contar a vida de quem a escreve. Mas existem maneiras distintas de contar uma vida?

É comum observar em autobiografias uma sistematização de dados da vida do autor em “linha reta”, das primeiras memórias da infância até o momento de vida em que o autor está escrevendo sua  autobiografia. Segundo o sociólogo Pierre Bourdieu é falsa a ideia de contar uma vida através de um conjunto orientado de acontecimentos, presentes no relato através de uma ordem “coerente” à vida contada.

Sabemos ainda que o relato de uma vida implica também em falhas da memória que podem ser responsáveis pela construção de uma imagem do autobiógrafo que nem sempre corresponde ao vivido. Nesse caso, há duas possibilidades: o autobiógrafo pode não admitir conscientemente essas falhas, acreditar demasiadamente na sua própria autoridade como sujeito da vida que narra. Mas é possível também que o autobiógrafo, fazendo uma opção oposta, assuma os deslizes da memória e exponha na própria narrativa da vida o “exame de consciência” que o leva a pôr em dúvida o que ele mesmo narra.

Defendendo a necessidade de caracterização do gênero autobiográfico, Gusdorf vê o exame de consciência manifesto na narrativa como um gesto “autêntico”, que garante o que chama de verdadeira autobiografia: “O conhecimento de si mesmo, seja qual for a abordagem escolhida, não é uma tarefa descritiva, reflexo fiel no espelho de uma realidade frente a qual se encontra o olhar do observador.”

Rejeitando a ideia de que as falhas da memória e a impossibilidade de recuperação de tudo o que foi vivido em qualquer relato autobiográfico aproximem a autobiografia da ficção, Philippe Lejeune defende que toda autobiografia caracteriza-se pelo pacto firmado entre o autor e seu leitor. Na visão do estudioso francês, é esse pacto que assegura o compromisso do autor com a verdade do relato, mesmo que possa haver incongruências com a realidade narrada.  Assim, para Lejeune, se o autor deseja inventar (ficção) ou reescrever acontecimentos de sua vida (autoficção), não há intenção de elaborar uma autobiografia.

Em um momento em que as fronteiras entre os gêneros autobiográficos e ficcionais não parecem estáveis, seria possível questionar se a presença de obras que exploram o que Gusdorf chama de  “exame de consciência”, como, por exemplo, as narrativas de Annie Ernaux, não projetam também uma figuração, constroem uma imagem do sujeito que se desprende do pacto autobiográfico, ainda que não abram mão totalmente dele.

Crítica e ficção sem nostalgias

Luciene Azevedo

Créditos da imagem: Edward Burtynsky. Phosphor Tailings #5, Near Lakeland, Florida, USA, 2012. (Escombros de fósforo #5, cerca de Lakeland, Florida, EE. UU.)

Em Uma arte ecológica, Paul Ardenne coloca no centro de seu problema uma pergunta inquietante para a crítica hoje: considerar a arte útil não é fazer desaparecer sua especificidade? Ardenne reconhece a necessidade de “modificar nossa gramática e nosso vocabulário de prazer” e constata uma demanda para que a arte “faça a diferença”, coloque-se em condição de urgência.

A leitura do livro de Ardenne me interessou menos pela investigação sobre a arte ecológica, sobre o que o francês caracteriza como uma guinada afirmativa do meio ambiente como matéria artística, e mais pela reflexão que o crítico faz sobre as transformações no campo da arte.

O livro traz muitos, muitos exemplos, mas pouca especulação teórica.  Chega um momento em que a montanha de referências perde todo o sentido e funciona apenas como um argumento de força da premissa básica: a arte se transformou, é preciso pensar na Natureza, dela depende a sobrevivência do humano, a arte deve ser útil. Embora essa seja a “mensagem” principal do livro, também chama a atenção o modo como à medida que esse mote vai sendo exposto de forma mais assertiva, Ardenne não se furta a colocar na página as perguntas cruciais: Mas a utilidade não é um elemento externo à arte? É possível tamanha transformação? Isso não significa abandonar uma certa história- até anulá-la- para fazer desaparecer a especificidade da arte?

Apesar de fazer parecer fáceis as respostas às questões espinhosas, encontro no livro a ideia de que há uma mudança nos modos de fazer arte, de que há uma transformação em vários campos do saber e uma insatisfação com a ideia de representação para pensar a arte (substituída pela presença, pela exploração do corpo, pela performance). Ardenne defende que esse é o momento em que a arte pode recuperar sua importância social, deixando de lado uma concepção estética alienante que exalta a contemplação e a beleza e que separa arte e política.

Embora concorde que a arte hoje experimente espaços não convencionais e formas de emancipação da criação que negam marcos tradicionais, não estou bem segura se a saída é a preconizada por Ardenne, que defende que a estética e a representação ficaram para trás e que agora é o momento de a arte se engajar na ação, transformação e atuação direta no contexto no qual intervém.

Se por um lado comemoramos a diversidade das perspectivas narrativas que expõem um mundo mais plural a partir da exploração de temas associados à identidade racial e ao gênero, à questão pós-colonial, à pauperização social, não é tão simples concordar com Ardenne quando afirma que “pensar a forma, pensar em termos estéticos é pouco produtivo” e que “representar é demasiado pouco”.

A tensão entre arte e política, ética e estética parece reavivar um debate tão velho quanto essa tensão: a velha oposição entre forma e conteúdo. É o que aparece subjacente, por exemplo, na resenha de Lígia Diniz feita ao último livro de Itamar Vieira Jr., Salvar o fogo: “É curioso que, no empenho de trazer à ficção a realidade de uma população à margem da modernidade ocidental, o autor recorra a expedientes gastos da literatura mais convencional: mistérios revelados pouco a pouco, alternância entre vozes narrativas que se esclarecem mutuamente e uma insistência na produção imediata de sentido.”

Diniz caracteriza como “espirito do tempo”, um desleixo da imaginação, uma desimportância da ficção (e, por tabela, com a forma, com a ambiguidade própria do dispositivo ficcional) que sucumbem diante do “triunfo da narrativa didática e moralizante, que se esquiva da complexidade humana e finca o pé na prescrição de como o mundo deve ser encarado.” Mas o argumento, apesar de parecer lacrador (aliás, como o do próprio Ardenne), impõe muitos desafios críticos: como lidar com a ambiguidade na construção dos sentidos das obras, com a velha oposição entre forma e conteúdo, com a relação entre o ético e o estético, sem voltar a antigas fórmulas, sem remeter apenas a nostálgicos momentos de conservação de tradições?

Prezar a ambiguidade como uma propriedade da arte (e da própria vida) é um empecilho para uma decisão fácil entre as dimensões ética e estética da produção artística.

Desafios críticos do teatro contemporâneo

Marília Costa

Créditos da imagem: Zula Cia de Teatro

No contexto da produção teatral do século XXI, percebe-se a presença de diversos espetáculos teatrais que acionam experiências traumáticas baseadas em episódios biográficos vividos por atores, diretores ou mesmo espectadores. Dramas familiares, doença e traumas como em Espontaneamente – genealogia da memória com a Cia. de teatro Improviso Salvador; abandono parental e estupro em Conversas com meu Pai de Janaína Leite; a experiência de viver nas ruas e a convivência com as drogas, a violência e prostituição e o abandono materno em Rosas no Jardim de Zula com a Cia. de Teatro; traumas ligados à escravidão como em Fonte de Cura (2021) dirigido por Denise Pedron e Fala (2021) que tem como tema o estupro. Esses são apenas alguns exemplos de produções que no contemporâneo desafiam a crítica especializada a repensar seus instrumentos e métodos de análise.

Um desses desafios está centrado na análise do modo como realidade e ficção disputam o espaço da cena contemporânea. Essa disputa pode ser percebida tanto no número de espetáculos nos quais atores representam suas próprias histórias no palco, como no biodrama, quanto também na própria dimensão espacial do teatro com o palco que se expande na direção da audiência, do público, que, muitas vezes, é convidado a participar mais ativamente da encenação compartilhando histórias pessoais como comentei em meu último post. Essas criações parecem estar mais preocupadas em examinar o território das subjetividades de si e do outro do que em se manter dentro de uma tradição de teatro dramático.

Por que tantas experiências pessoais e traumáticas estão sendo levadas para o palco do teatro que durante muito tempo foi um espaço próprio da ficcionalidade? Nas peças que mencionei acima, por exemplo, é comum encontrar parte do processo criativo dentro da cena, a presença de várias versões dos acontecimentos, comentários analíticos sobre os limites da representação. Será possível pensar que essa exposição da subjetividade autobiográfica no espaço da teatralidade pode apontar também para uma certa virtualidade, um certo modo de explorar o desconhecido desse mesmo sujeito que se dramatiza? E que consequências isso tem para a própria forma do teatro no presente?