Ramon Amorim
Créditos da imagem: Michael Golden, Untitled collage, 2016
“Para mim, aids era uma doença de prostitutas, gays e viciados. Não de uma mãe, não de minha filha, não de um bebê.”
Durante as investigações feitas para a construção da tese que busco desenvolver no curso de doutorado, tenho observado o quanto a produção narrativa sobre a temática do HIV e da aids é pouco diversa no conjunto de suas abordagens. Ainda há uma recorrência na representação do tema associado a sujeitos e grupos marginalizados, sobretudo aos homossexuais.
Diante de mudanças no perfil epidemiológico das pessoas infectadas pelo HIV, ainda é comum, mesmo em produções mais recentes, um conjunto de representações que recorre a imagens originadas durante a emergência da epidemia e cristalizadas nas suas duas primeiras décadas.
Assim, a citação que dá título a este texto poderia ser pensada, fora do seu contexto original, como uma afirmação que atesta o que foi dito até aqui. Porém, ela apresenta camadas que precisam ser melhor analisadas, visto que está em uma das únicas narrativas em que há a presença, e o protagonismo, de uma criança vivendo com HIV, o livro Pequeno segredo, de Heloisa Schurmann, lançado no ano de 2012.
O relato sobre a origem e a história de Kat Schurmann, uma criança com HIV adotada pela família de velejadores antes de completar três anos, é fruto dos acontecimentos vividos pelos Schurmann nos mais de dez anos em que conviveram com a jovem, que era considerada por um dos médicos como uma “criança terminal” desde de os primeiros anos de vida.
É interessante pensar como a narrativa de Pequeno segredo, mesmo apontando para a possibilidade de construção de uma nova forma de representação para as produções literárias sobre a temática do HIV e da aids, insiste ainda na oposição entre o que é “mostrado” e o que é “dito” pela narradora. Se a aids (diagnóstico atribuído à jovem) “não é doença de criança”, como é possível então narrar sobre Kat e sua experiência com a aids? Por que a produção ficcional tem ainda utilizado imagens tão pouco diversas se narrativas (auto)biográficas, por exemplo, caso de Pequeno segredo, têm avançado nas formas de representar?
O caminho para responder essas indagações passa pela ideia já apresentada aqui e que remete ao fato de que a representação literária sobre o tema, assim como a social, é pouco diversa, o que dificulta criar imagens diferentes das criadas até então para representar as questões referentes ao vírus e à doença. Assim, mesmo uma produção que apresenta uma forma diversa de abordar o tema, ainda continua a dialogar com imagens ultrapassadas, pois parece que elas fazem mais sentido que quaisquer outras.