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As escritoras mulheres “de cor”

Samara Lima

Na cena contemporânea, é notável o incremento do número de estudos que buscam pensar os diversos obstáculos historicamente impostos às mulheres, principalmente, às negras e não-brancas. É nesse cenário, por exemplo, que recentemente foi traduzido por Larissa Bery, pela Zazie Edições, o ensaio A Tríplice Negação de Artistas Mulheres de Cor de Adrian Piper, que foi publicado originalmente em 1990. Ainda que seu texto esteja preocupado com investigar o mundo da arte e as relações sociais, a artista traz discussões que podem ser relacionadas com outras manifestações artísticas, como a literatura.

Nesse ensaio, dentre tantas outras questões, Piper aponta como os trabalhos dos afro-americanos e, em especial, das “artistas mulheres de cor”, foram duramente excluídos das galerias, museus e publicações. Ainda que, cada vez mais, possamos apontar iniciativas que visam a estimular a exposição desses trabalhos, muitas dessas artistas sofreram com discursos acusatórios que insistiam em afirmar que suas produções eram derivativas, o que redundava quase sempre em censura.

Ainda assim, Piper chama a atenção para um aspecto interessante. Na sua opinião, a visibilização dessas produções, por parte do mundo da arte euroétnica, está mais interessada na investigação da trajetória das artistas do que em suas produções. Ou seja, como uma espécie de boa consciência reparadora, o mercado da arte abre suas portas para a alteridade interessando-se muito mais pela biografia das artistas do que pela análise da maneira como escolheram se expressar artisticamente. O resultado mais evidente disso para Piper é que as exposições das “mulheres de cor” adquirem um viés didático: se se trata de uma artista negra, sua produção  “ensina sobre o racismo”. É como se sua produção não merecesse ou valesse a pena uma leitura teórica ou estética.

Salvaguardadas as devidas diferenças, será que podemos transferir a crítica de Piper para o que acontece com a literatura? No decorrer da minha pesquisa venho me debruçando sobre textos teórico-críticos que buscam analisar as obras de autores negros. É interessante notar como em muitos desses textos os críticos interessam-se pela biografia do autor, suas vivências e leem suas obras como mero relato de experiência e embora façam isso porque acreditam no valor literário das produções comentadas, na condição de leitora, gostaria de ser levada pela crítica a refletir melhor sobre a experiência singular de leitura que muitos desses textos me propõem.

Pois bem. Pensando nisso é que me proponho agora a fazer um pequeno exercício de análise do conto Metal-Metal de Cidinha da Silva, publicado no livro Um Exu em Nova York (2018), pela Editora Pallas. Em muitos textos que circulam pela internet é comum encontrarmos que o conto fala sobre a ligação entre a cura africana e a medicina oriental, mas podemos nos perguntar: de que forma isso ocorre na narrativa?

O conto parece tratar de um mero encontro entre a narradora, que não tem nome, e um homem chamado Zebrinha Onirê. Cabe ressaltar que o personagem é uma referência a uma figura importante da cena cultural baiana, chamado José Carlos Arandiba, um dos maiores coreógrafos e bailarinos do Brasil. De volta à narrativa, esse personagem sobe rindo a escada de três em três degraus e depara-se com a narradora que com a devida deferência ao filho de um rei lhe pergunta: Como vai? Tudo bem? E Zebrinha logo lhe responde: Que mal vai com o povo de Ogum? Como se tivesse percebido que algo está incomodando a narradora.

Nos contos de Cidinha, é notável a recorrência a mitos e deuses das religiões de matriz africana. A pergunta de Zebrinha, então, não é apenas retórica, mas supõe uma referência meio implícita, como se houvesse aí também uma piscadela de olho para o leitor, um convite para que o leitor acrescente à tentativa de interpretação do texto a referência ao orixá e o que isso pode significar para a narrativa. A pergunta engendra um fluxo de pensamentos na narradora, que olha através dele, como que distraída com a situação. A boa forma de Zebrinha contrasta com os problemas físicos que a narradora vinha enfrentando, como as dores e nódulos do vasto lateral, mas também, com vários outras preocupações, como a personagem frouxa do conto que precisava acertar.

Zebrinha Onirê logo exige uma resposta, que a narradora, de volta à cena, agora sim presente no diálogo, responde: Mal não há no caminho dos filhos de Ogum. Nem no meu, amiga dos filhos dele. O encontro com essa figura tão simbólica parece acionar um gatilho na narradora, que percebe que não está bem e que está em desarmonia com sua mente, seu corpo e seu espírito. A personagem que no decorrer da história aparenta estar perdida, aos poucos se encontra. Ogum é o orixá que abre caminhos com a força de sua espada e é nesse momento em que os princípios de cura da narradora se cruzam.

Após o encontro, a personagem resolve fazer o caminho das Ássanas e das agulhas, ou seja, recorre à yoga e à acupuntura para tranquilizar a mente e tratar as dores que sente no joelho. Mas é como se a personagem só pudesse se sentir leve e decidida, após o encontro com Zebrinha Onirê.

E o que significa o título do conto? O primeiro Metal pode sugerir, então, o saber ancestral africano, a força do encontro com o filho de Ogum, que é o Orixá da guerra e senhor dos metais; o segundo metal do título refere-se à agulha da acupuntura, uma técnica tradicional da medicina chinesa. É a partir da imbricação desses dois saberes que a personagem pode encarar suas outras preocupações e tratar o seu joelho, que estava inquizilado por inseguranças do pé durante a caminhada.

Ao propor essa análise, acredito que mais do que reiterar a escolha temática pela afirmação da identidade racial de Cidinha da Silva por meio da evocação a entidades das religiões africanas, o que importa é investigar como as textualidades dos autores negros contemporâneos carregam uma potencialidade que, muitas vezes, fica à deriva com os simples comentários, por parte dos críticos, sobre o tema.

A autorrepresentação do negro e o retorno do recalcado

Samara Lima

Créditos da imagem: Surreal Portraits – Henrietta Harris

Já faz algum tempo que não é novidade afirmar que os grupos marginalizados foram objetificados e representados na literatura brasileira a partir de visões que destoam da sua realidade social. Domício Proença Filho em A trajetória do negro na literatura brasileira (1998), por exemplo, discute o percurso do negro nas produções literárias e a forma como esses sujeitos foram estereotipados por meio de análise dos personagens de obras, tais como o conto “Setembro” do livro O corpo vivo (1962) de Adonias Filho. Aí, o personagem tomado para análise é a figura do escravo fiel, que encarna o símbolo da antiviolência.

Por outro lado, também não é rara a afirmativa de que a contemporaneidade vem sendo marcada por um contexto de efervescência cultural e política em que movimentos sociais buscam repensar diversas estruturas da sociedade e discursos cristalizados no imaginário coletivo. O campo literário brasileiro, que também se constitui enquanto esfera de produção de discurso, não fica imune a tais tensões.

O fato é que a disputa por representatividade nas esferas sociais e pela autorrepresentação põe em xeque, no cenário da literatura brasileira, as representações negativas fixadas pela tradição literária. Dessa forma, os sujeitos negros, que na historiografia literária foram apresentados sempre sob tutela, subalternizados e, muitas vezes, excluídos da representação, buscam manifestar em seus escritos o comprometimento com a etnia, uma vez que a manifestação literária tem a capacidade de (re)inventar positivamente essas tantas identidades.

Pois bem. É esta postura que os estudos culturais identificam como o retorno do recalcado, o retorno da identidade negra que por muito tempo foi recalcada no âmbito cultural ao condenar qualquer referência às características físicas e culturais dos negros.

É pensando na ideia de que cada vez mais esses sujeitos buscam e afirmam em suas obras a sua condição na realidade brasileira que meu plano de pesquisa atual utiliza-se do termo Recalque, criado por Sigmund Freud para caracterizar um mecanismo de defesa que se baseia na repressão da memória de eventos passados dolorosos.

O que chamamos, portanto, de retorno do recalcado diz respeito ao posicionamento afirmativo cada vez mais recorrente na literatura brasileira recente por parte dos escritores afrodescendentes como Cidinha da Silva, Cristine Sobral e Geovani Martins que reafirmam nos textos literários que produzem valores importantes para sua identidade racial.

Minha pesquisa, então, visa entender como esses escritores, por meio da literatura, discutem problemáticas da sociedade brasileira, como o racismo, e noções, não raras vezes estereotipadas, de identidade. 

Machado de Assis e a Poética da Dissimulação

Samara Lima

Créditos da imagem: Lost Horizon I, 2008 (detalhe).

Em outro post meu, Falando sobre o silêncio, ao fazer uma pequena análise do conto O Caso da Vara (1899), busquei mostrar como Machado de Assis faz uma crítica à hipocrisia da sociedade e à crueldade do sistema escravagista ao mesmo tempo em que aparenta tratar de assuntos banais. A análise é fruto de alguns meses de leitura, durante os quais venho me debruçando sobre textos teóricos que se propõem a entender as estratégias literárias utilizadas pelo “escritor caramujo”, como o próprio Machado se definiu, para driblar os pensamentos consagrados no período em que vivia e se fazer, dessa forma, um homem de seu tempo e do seu país.

É pensando nessas estratégias e dribles que eu gostaria de discutir brevemente a capoeira enquanto metáfora para a leitura dos escritos machadianos, tendo como disparador reflexivo um trecho do livro Um defeito de Cor (2006), de Ana Maria Gonçalves, que me parece um exemplo emblemático para o debate proposto:

“Um bom capueira nunca deve mostrar tudo o que sabe, ou pelo menos deve fazer parecer que não mostrou, e para isso nem precisa ser forte, mas estar sempre atento e ser esperto. (…) a capueira é como uma conversa, um faz uma pergunta de supetão e o outro tem que ter a resposta pronta, e ganha quem faz a pergunta que o outro não consegue responder.” (p. 666)

Recentemente, ao reler essa passagem, não pude deixar de lembrar do texto A capoeira Literária de Machado de Assis de Eduardo Duarte, no qual a produção machadiana é entendida como uma poética da dissimulação. O que o crítico sugere, com base na ideia de capoeira verbal forjada por Luiz Costa Lima, é que assim como na capoeira existe o ato de gingar, a fim de confundir o adversário para surpreendê-lo de supetão, nos escritos ficcionais e jornalísticos do Bruxo do Cosme Velho, há uma ginga verbal que põe sob disfarce as denúncias muitas vezes propostas pela narrativa ao acomodar, no primeiro plano, amenidades e valores dominantes. Essa necessidade de dissimulação, como a utilização da ironia, do ceticismo e das mudanças do foco narrativo, segundo o teórico, é uma resposta aos leitores e às condições políticas contemporâneas à obra machadiana.

Vamos ver um exemplo dessas condições. O conto Mariana (1971) foi publicado no Jornal das Famílias num momento em que questões, como a instituição da Lei do Ventre Livre, eram discutidas no parlamento. Levando isso em consideração, como se posicionar, em uma sociedade racista e patriarcal, frente à problemática do negro num periódico destinado à família e ao público feminino?

Diante disso, é interessante notar que se, por um lado, o leitor depara-se com um conto que parece tratar de um reencontro entre velhos amigos que não se veem há muito tempo e que trocam confidências amenas, por outro, somos levados a notar como o que parecia um relato banal sobre uma história de amor (considerada, jocosamente, impossível por Coutinho, o narrador), guarda, dentre tantos questionamentos, um profundo debate sobre os problemas raciais no Brasil.

Mariana, a escrava “criada como filha da casa”, apaixona-se por seu senhor. Embora o relato seja narrado do ponto de vista de Coutinho, o protagonismo é assumido por Mariana e seu drama, pois ao contar aos amigos o ocorrido, Coutinho, sempre em tom ameno e jocoso, deixa claro que a paixão da escrava é uma impostura, um absurdo. Nesse sentido, o jogo literário entre o dito e o não dito foi a maneira que Machado encontrou de expor a suposta benevolência do bom tratamento dado à Mariana pela família de Coutinho e de fazer a crítica às mazelas da sociedade escravocrata, atendendo às expectativas de seu público leitor: senhoras e donzelas integrantes da Corte e da elite carioca que podiam se deleitar com um “caso” de amor.

Dessa forma, o leitor, pouco a pouco, é colocado à prova e é exigida dele uma capacidade de lidar com a capoeira verbal machadiana. Seja qual for a estratégia literária empregada por Machado de Assis, minha pesquisa visa estar atenta a cada detalhe da ginga literária no intuito de entender como o autor se compromete com a sua etnia mesmo quando trata de assuntos, à primeira vista, supérfluos.

Machado de Assis e Afrodescendência

Samara Lima

A criação de Deus – Harmonia Rosales – 2017

Nas últimas semanas, circulou pela internet uma nova versão de uma foto bastante conhecida de Machado de Assis. A recriação da foto clássica do autor faz parte de uma campanha promovida pela Faculdade Zumbi dos Palmares intitulada Machado de Assis Real. Tal iniciativa visa inscrever uma “errata histórica feita para impedir que o racismo na literatura seja perpetuado”. A foto de Machado de Assis real valoriza seus fenótipos negros e o tom da sua pele que, por muitos anos, principalmente nos livros didáticos de literatura, foram retocados para maquiar sua origem afrodescendente, já que “entre os textos consagrados pelo cânone literário, o autor e autora negros aparecem muito pouco”, como afirmam Florentina Souza e Maria Nazareth Soares no livro Literatura Afro-brasileira, publicado em 2006.

É pensando na discussão em torno do embranquecimento do escritor autodefinido como “o mais encolhido dos caramujos”, que busco com minha pesquisa de iniciação científica, cujo título é (Auto)representação do negro no conto brasileiro, entrar nesse debate. Na tentativa de contribuir para a revisão desse discurso hegemônico que há décadas imperou na crítica brasileira, gostaria de analisar contos clássicos de Machado de Assis, como Pai Contra Mãe (1906) e O Caso da Vara (1899), para cotejar sua produção ficcional com perspectivas críticas de recepção à sua obra que afirmavam que o próprio autor não mantinha compromisso com a sua etnicidade.

Não é possível pensar Machado de Assis e sua obra considerando sua condição como afro- descendente e deixar de mencionar os textos do professor Eduardo de Assis Duarte, um dos pioneiros na releitura que faz do Bruxo do Cosme Velho ao propor uma revisitação do passado para reinterpretar os discursos ocultos e ignorados pela crítica acadêmica.

Acreditamos ainda que a reflexão atual sobre nosso “escritor maior” abre margem para se pensar a participação de outros escritores negros, em especial, no caso de minha investigação, na literatura brasileira produzida atualmente. Dessa maneira, ao propor como corpus da minha análise escritores como Geovani Martins, Cristiane Sobral e Cidinha da Silva, busco entender de que forma esses autores, por meio da literatura, questionam uma noção tradicional de identidade, não raras vezes também estereotipada, para pôr em xeque problemas relacionados ao mito da democracia racial em nosso país.

Literatura e representatividade

Samara Lima

imagem samara

Créditos da imagem: Sohei Nishino. “Diorama Map, Rio de Janeiro”, 2011 .

Geovani Martins, filho de dona de casa e jogador de futebol amador, nascido em Bangu, bairro da Zona Oeste do Rio de Janeiro publicou seu primeiro livro pela Companhia das Letras em 2018, ​O sol na cabeça, ​​um conjunto de 13 contos. Livro e autor foram apresentados ao público como sendo a mais nova revelação da literatura brasileira contemporânea.

O livro, se consideramos as publicações recentes, destoa das estatísticas levantadas pela professora Dra. Regina Dalcastagnè, que através da sua pesquisa “O personagem do romance brasileiro contemporâneo: 1990-2014” mostra como as narrativas brasileiras produzidas dentro do período estudado privilegiam um determinado grupo social, branco, heterossexual, classe média, enquanto sobre negros e pobres, imperam os estereótipos, pois são representados como escravo, ladrão e vítima. A propósito disso, cabe mencionar que o próprio Martins afirma que gosta de omitir a cor da pele dos personagens, mas que ainda assim costuma receber comentários sobre as situações narradas em que os protagonistas são imaginados como negros pelos leitores.

Ao mesmo tempo em que alguns contos abordam temas como a violência policial, o tráfico de drogas, a intolerância religiosa e o racismo, é possível também enxergar o outro lado da favela. Em ​Estação Padre Miguel​​, por exemplo, o narrador em primeira pessoa reflete em meio à discussão com os amigos sobre a compra de mais drogas:​“De um momento pro outro tudo se desfaz, se desaba, e ficamos sozinhos frente ao abismo que é a outra pessoa.”

Seus personagens são favelados ​e enfrentam dramas internos, o que torna mais complexo o imaginário sobre a vida na periferia. O conto ​Espiral​​, por exemplo, trata sobre o racismo estrutural existente na sociedade, como isso afeta o jovem negro, e como crescer sendo alvo de medo – por causa da cor da sua pele – transforma alguém. Enquanto ​O caso da borboleta​​ tem um fluxo narrativo mais lento, poético.

Em ​O que é lugar de fala?​​, Djamila Ribeiro apresenta o problema do acesso à voz, à representação daquele que é excluído, de quem pode falar numa sociedade excludente, onde o discurso legitimado é o discurso do homem branco. O livro de Geovani Martins arrisca uma resposta literária e quer cavar nessa tradição de monopolização dos lugares de fala, seu próprio lugar para “mostrar a periferia como algo em movimento”.

Durante sua participação na última Flica, perguntaram ao autor se ele achava que seu sucesso se devia a sua biografia. Martins afirmou que quem pode responder a essa pergunta são os leitores. A pergunta e a resposta podem servir como reflexão sobre como a desigualdade racial e econômica do Brasil é representada pela literatura e lida pelos leitores.