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Knausgaard. O ensaio e o romance

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Créditos da imagem: Francesca Woodman – Providence, Rhode Island, 1976.

Por Fernanda Vasconcelos

Não é novidade que a série Minha Luta escrita por Karl Ove Knausgaard adquiriu relevância internacional. Apesar disso, ainda há pouco desdobramento crítico sobre a obra. James Wood, crítico britânico que escreve para a revista The New Yorker, atribuiu à obra um caráter de vanguarda. Mas por que será que o crítico a entende assim?

Para Wood, a opção de Karl Ove pela autobiografia representa uma vontade de sair da ficção. Essa escolha, segundo a leitura do crítico, demonstraria um cansaço das formas ficcionais tradicionais. Trazendo “personagens e acontecimento reais” para a narrativa, Karl Ove faz com que repensemos também as relações entre ficção e realismo.

Nos volumes nos deparamos com a escrita em primeira pessoa que narra seu modo de vida. As relações entre vida e obra, um tópico comum às vanguardas, aí aparece de forma quase indecantável. Assumindo uma dicção ensaística, o autor consegue operacionalizar o que James Wood chama de “aventura do banal”. Assim, Knausgaard opera não apenas sobre as miudezas e baixezas do cotidiano, mas busca moldá-las por meio da flexibilidade oferecida pela forma do ensaio.

Mais do que mostrar sua habilidade de escrita ao alcançar outros “tons” de escrita realista (teríamos um eu escritor exibicionista?), Knausgaard conquista os leitores mais afeiçoados à tradição logo no início do seu romance. E, então, os conduz delicadamente aos interiores de sua vida privada, para apresentar-lhes uma emocionante “aventura do banal”.

A presença da dicção ensaística coloca a própria forma do romance em questão. Lendo-a assim, como um longo texto autobiográfico em que o autor ensaia a si mesmo narrativamente, emerge um problema de caracterização de forma, do gênero na qual o texto se apresenta.

Considerando que alguns textos críticos consideram que as produções contemporâneas forçam os limites da especificidade que marcou a modernidade, podemos considerar que a mescla autobiografia-ensaio-romance(?) na hexalogia pode ser lida como um investimento de literatura expandida, problematizando a expansão dos limites literários via utilização de outros materiais não ficcionais expandindo os limites daquilo que até pouco tempo chamávamos de literatura.

Um eu, uma vida e o romance autobiográfico

Por Fernanda Vasconcelos

Camille Norment

Crédito: Camille Norment

As narrativas romanescas em escritas em primeira pessoa continuam sendo desafiadoras para os críticos de literatura. Muitas delas trazem na ficha catalográfica a designação de “romance autobiográfico” exigindo do crítico uma reflexão sobre o gênero na literatura contemporânea, pois a designação traz à tona questões relacionadas à forma da autobiografia, à sua relação com a tradição e ao embate com os gêneros literários. Podendo muitas vezes assumir uma forma híbrida, a dificuldade maior da classificação parece residir no que Costa Lima afirma, em Sociedade e discurso ficcional, como tendência dos escritos autobiográficos a se inclinarem ora para o discurso histórico, ora para o ficcional.

Porém, tão importante quanto essa oscilação entre essas duas posições discursivas, é a disposição de leitura diante dos gêneros: se diante do discurso ficcional o leitor sabe previamente que as informações partilhadas não são sobre fatos ocorridos, mas simulacros construídos com intenções específicas, o mesmo não ocorre com a autobiografia. Assim, Costa Lima, enfatiza a importância da experiência do leitor que lhe permite distinguir o papel concedido ao eu nessas espécies discursivas diferentes, pois o tratamento dado ao eu no texto esclareceria a diferença entre o gênero ficcional e a autobiografia. Tratando a autobiografia como gênero híbrido, o teórico afirma que em alguns casos, o material autobiográfico oscila entre o modo de expressão auto-referencial, que caracteriza o gênero, e uma impossibilidade de auto-representação do sujeito que diz eu, pois esse eu lida com a impossibilidade de converter a si mesmo no presente prometido pela linguagem.

Pensar a hibridez do gênero autobiográfico no contexto contemporâneo (o embate entre o ficcional e o documental na exposição da vida do sujeito que se conta) remete-nos à “crítica do sujeito” tomado como um todo íntegro, pois desde Montaigne não acreditamos mais ser possível alcançar qualquer verdade imediata e original através de movimentos espontâneos de linguagem. Se a unidade do sujeito cartesiano há tempos foi contestada, se a teoria do inconsciente fragmentou o sujeito e mostrou que ele não conhece a si mesmo, se a linguagem se tornou opaca e objeto de estudo assim como o próprio sujeito, como manter um compromisso com a tarefa de expressar a vida a si mesmo?

Mesmo depois de todas as contestações à expressão do eu, enfrentamos o que a crítica argentina Beatriz Sarlo chamou de uma “guinada subjetiva” para nomear a primazia do subjetivo na esfera pública. Considerando esse contexto, interessa-nos pensar o que os romances autobiográficos oferecem ao leitor não apenas em relação à exposição de um eu que se conta, mas também enquanto forma.

Acreditamos que o embate em relação ao estatuto epistemológico dos gêneros autobiográficos (ficção? Não ficção?) continua uma longa história que diz respeito às fronteiras discursivas. No contemporâneo, a problematização da autobiografia se complexifica, uma vez que o estatuto da própria ficção parece estar se transformando, indo ao encontro de gêneros não ficcionais, pois cada vez mais nos deparamos com narrativas que se propõem a pensar uma vida, a dar forma a ela, tal como observa Reinaldo Laddaga, em seu Estética de Laboratório, quando comenta romances centrados na constituição simultânea de uma forma literária e de uma forma de vida nos quais materiais de caráter documental aparecem dispostos no corpo do texto.

Portanto, pensar a autobiografia no cenário contemporâneo exige identificar o papel oferecido ao eu e os embates provocados pela redefinição das fronteiras entre o ficcional e o não ficcional. Assim, pensar a relação entre o modo de se problematizar a própria forma e a construção de uma vida nos romances escritos em primeira pessoa, como o tratamento do eu vinculado às experiências do autor nos romances autobiográficos, pode ajudar-nos a reimaginar a vida e a forma de contá-la no século XXI.

​O romance e o comentário sobre as artes

Por Fernanda Vasconcelos

Créditos: Perimeters/Pavilions/Decoys(1978), de Mary Miss

Conforme afirmou Davi Lara em seu último post, uma aproximação entre a literatura e as artes plásticas/visuais tem se mostrado vigorosa em diversos romances publicados nos últimos anos. Trata-se de longos trechos, muitos deles escritos em primeira pessoa, nos quais o protagonista relata o contato com obras artísticas.

É interessante pensarmos nesse movimento, do literário rumo às artes, quase sempre presente em obras de caráter mais experimental, que é configurado na narrativa pelo amálgama de reflexão e fascínio do narrador diante das produções artísticas, muitas delas experimentais e com formas de difícil captura.

No caso do romance autobiográfico A morte do pai (2013), escrito por Karl Ove Knausgård, o contato do protagonista com as artes aparece em vários momentos ao longo do livro, seja via sua experiência como frequentador de museus evocando descrições e reflexões de alguns quadros específicos de Rembrandt, seja por meio da experiência mediada pela reprodução da obra em livros de arte, como ocorre quando entra em contato com as pinturas de Jonh Constable.

Comentando exemplos da arte no século XIX, fica explícito o arrebatamento de diante daquelas pinturas: “Tudo concentrado em instantes tão intensos que às vezes era difícil suportar”, afirma o narrador. Nesse trecho ensaístico, o protagonista lida com o indescritível de sua experiência com a arte em um âmbito íntimo sem parecer estar preocupado com fornecer esclarecimentos mais técnicos ou específicos para o leitor. É um relato pessoal, como uma conversa íntima consigo mesmo, uma reflexão do escritor com ele mesmo, na qual ele mostra estar lidando com o inexplicável da arte, mediado por suas impressões e sentimentos.

O escritor afirma que estava acostumado a estudar a história da arte e a analisar a arte, porém o mais importante seria escrever sobre a experiência de fruição da arte. O que em sua opinião representava um desafio, porque o forçaria a lidar com a impossibilidade de descrever ou narrar algo inexplicável. Evocando sua frequentação às galerias de arte, Knausgård parece querer reproduzir na escrita a liberdade experimental, reflexiva que desenvolveu como visitante dos espaços de exposição de arte, que, no entanto, nem de longe é caracterizada como uma atividade apaziguadora, já que esse exercício demandava “estar dentro da inexauribilidade” que aquelas obras lhe apresentavam.

Em seguida, o escritor tece um comentário sobre a arte contemporânea. Aí, o escritor ressalta que o que causara a experiência da inexauribilidade do estético diante de obras como as de Constable e Rembrandt, se esvaziou ou se torna irrelevante para os objetos artísticos enquadrados na categoria de arte contemporânea. Karl Ove reconhece que as representações naturalistas passaram a ser ingênuas e ultrapassadas, pois delas não restaram grande significados estéticos. Contudo, afirma não pode deixar de sentir nostalgia por aquelas pinturas, e que se é naquela direção que ele como escritor deveria ir, faltaria saber o caminho a tomar. Aí, a reflexão se interrompe e o romance volta ao relato das mais banais preocupações do cotidiano.

Acreditamos que essa reflexão pode servir para pensar a própria condição da narrativa de Karl Ove na literatura contemporânea. Pois ao se mostrar resistente à arte contemporânea e buscar abrir um caminho na direção de uma representação naturalista, tentando apreender um modo novo de contar dentro dessa representação, não poderíamos pensar que o autor ao voltar ao relato de suas trivialidades, não estaria já respondendo à nostalgia que diz sentir e, ao mesmo tempo,  tateando um outro caminho para sua narrativa?

O que quero sugerir que é talvez seja possível pensar o  próprio romance A morte do pai como a materialização do esvaziamento de uma certa concepção de arte literária, da forma do romance tal como o reconhecemos desde o século XVIII, em seu momento inaugural. E que essa transformação é dada a ver na narrativa de Karl Ove por meio da reflexão, quase ensaística, do autor sobre a própria arte e sua experiência de fruição.

O jogo que se estabelece, então, é o de uma aposta na experimentação que afeta a voz narrativa que pensa a arte e a literatura atuais e, simultaneamente, pensa a si próprio como autor, como fruidor e produtor, no movimento dessa reflexão, dando voz a um eu que volta a si mesmo, durante a escrita, convidando os leitores a se engajarem também nessa reflexão.

Atrás da assinatura: Elena Ferrante

Por Fernanda Vasconcelos

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Crédito da imagem: Katia Wille

Elena Ferrante é um nome de peso no campo literário contemporâneo. A autora, que conquistou a cena internacional, começou a escrever no início dos anos 90 e ampliou seu público para outros países com a publicação do primeiro livro da quadrilogia napolitana, A amiga genial (2011).  A venda dos seus romances atingiu a casa dos milhões de exemplares e, contra a vontade de críticos que não abrem margem para a literatura vinculada ao mercado mais explicitamente, seus romances também conquistaram a crítica especializada devido à qualidade de sua escrita. Qual seria o segredo de Elena Ferrante?

A narrativa captura o leitor pela exímia capacidade de construir seus personagens. Os romances, escritos em primeira pessoa, são narrados por Elena Greco, que conta sua vida em uma atmosfera intimista, marcada pela amizade com Lila: “E em seu aspecto não havia nada que agisse como corretivo. Estava sempre desgrenhada, suja, com cascas de ferida nos joelhos e cotovelos que nunca saravam”, é assim que ficamos conhecendo um pouco da “amiga genial” da narradora.  Segundo Wood, seus personagens são construídos como se estivessem sempre “à beira de um colapso”, caracterizados por relatos de vivências intensas e profundas.

O estrondo sucesso dos romances convivia, até pouco tempo, com o anonimato da identidade da autora. Em plena era da “sociedade do espetáculo”, como diria Guy Debord, Ferrante escolhe ocultar-se por trás de um pseudônimo que assina sua obra. E, o que parece inviável em nosso contexto midiático, se mostrou eficaz. Durante um bom tempo, o público não teve acesso a outras informações da autora além da assinatura e do conteúdo dos livros.

O embate entre o sucesso e a postura discreta em torno da assinatura de autora despertou um rebuliço no campo literário. Por vezes, ela é comparada a J. D. Salinger e Thomas Phynton por críticos, devido ao comportamento recluso e à grande repercussão pela postura assumida, bem como pelo lugar que vai conquistando no campo literário.

Mas o sucesso não deu trégua para o recolhimento: uma pesquisa na universidade La Sapienza de Roma que buscou investigar, por meio de algoritmos, o estilo das obras da autora, comparando-o com estilos de outros escritores, a fim de identificar possíveis autores para as obras assinadas por Ferrante, na tentativa de desvendar sua “verdadeira” autoria, apontou como um dos prováveis autores para os livros o escritor Domenico Startone, que, em outubro de 2016, a partir de uma investigação feita pelo jornalista Claudio Gatti, foi identificado como o marido de Anita Raja, a “verdadeira” Ferrante.

Alegando agir em nome do direito legítimo de os leitores conhecerem a identidade da autora, o jornalista italiano investigou e cruzou as transações bancárias da editora Edizione E/O com as do casal Anita Raja, tradutora italiana, e a do marido escritor, apostando em uma resposta para as evidências encontradas. Os argumentos que sustentam sua hipótese de que Raja é Ferrante baseiam-se na exposição de altos valores depositados na conta de Raja pela pequena editora italiana, bem como ao considerável aumento do patrimônio do casal de escritores nos últimos anos.

A descoberta de quem está por trás do pseudônimo Ferrante, cria alguns constrangimentos aos críticos que, como James Wood apostaram na literatura “fortemente pessoal” de Ferrante (http://www.newyorker.com/magazine/2013/01/21/women-on-the-verge ), pois Raja, diferentemente das protagonistas, foi morar em Roma aos três anos de idade.

Como se os bastidores da autoria não fossem já aventurescos o suficiente, cabe observar que o pseudônimo escolhido para assinar os romances, Elena, é o mesmo da protagonista, o que não deixa de ser interessante, pois mostra uma perspicácia da autora em captar no espírito do tempo uma sede pelos perfis biográficos, um desejo de complicar ainda mais o jogo entre a ficção e a realidade, como fazem as chamadas autoficcções.

Mas descobrindo-se a “verdadeira” identidade autoral e as não correspondências entre a vida de Raja e a dos personagens, nos perguntamos, então, se o uso de um pseudônimo não resguarda uma potência ficcional, uma opção que reafirma o distanciamento entre o narrador e o autor e dá prioridade à “pura imaginação criativa” na elaboração do universo narrado.

Ao jogar com a semelhança dos nomes entre autor e personagem, mas optar por pseudônimo, Ferrante dá mais uma volta no parafuso da intrincada engrenagem da produção contemporânea e colabora para as discussões sobre a condição do autor no cenário literário contemporâneo.

Curadoria em tempos de Internet

Por Fernanda Vasconcelos

No  post  escrito por Nívia Maria Santos Silva, que trouxe informações  sobre as mudanças editoriais relativas ao formato digital da revista Bravo!, chama a atenção a recorrência do termo curadoria. Seu uso parece um sintoma considerando o suporte digital da revista e sua clara intenção de explorar os recursos que a web tem a oferecer – como foi apontado por Nívia.

Notamos que a palavra curadoria aparece com funções diferentes em dois textos que marcam a estreia da revista on-line. Primeiramente, o termo aparece como palavra-chave apresentando um dos propósitos da revista: “curadoria e seleção do que melhor se produzir no campo da cultura”. Porém, gostaríamos de explorar sua segunda aparição e arriscarmos uma reflexão sobre uma diferença em relação a sua função e significado.

No segundo número da revista, intitulado “Distopia e realidade”, o assunto é literatura de ficção científica e a criação da garota-software Tay. O leitor é apresentado ao funcionamento de Tay por Almir de Freitas:

“Tay [é] uma garota-software de inteligência artificial desenhada pela Microsoft para ter 19 anos e, assim, interagir com jovens entre 18 e 24 anos no Twitter. A ideia é que aprendesse com eles, falasse como eles – se transformasse, num extremo imaginoso, em um deles.”

Na página de Tay, se anunciava: “Quanto mais você falar, mais inteligente Tay fica.” Mas algo pegou seus criadores de surpresa. Lançado em 23 de março passado, o chatbot (robô para bater papo na web) teve de ser retirado do ar às pressas: em apenas 16 horas, @TayandYou desistiu de falar de Miley Cyrus e passou a disparar tuítes racistas e sexistas, espalhando palavrões na timeline. “Eu sou uma ótima pessoa”, disse. “Só que detesto todo mundo”.

Ao descrever os problemas do conteúdo que Tay aprendeu com os internautas, Freitas é taxativo:

‘“Se o algoritmo da Tay implicava em curadoria de dados por repetição de palavras-chave em determinados sites e redes sociais durante um determinado período de tempo, poderíamos concluir que os seres humanos que usam essas redes tendem a disseminar mais ideias “monstruosas” que benéficas, e o ‘bot’ apenas refletiu isso”, diz Fábio Fernandes, tradutor, escritor e especialista em cultura digital e ficção científica’.

Do caso citado, me interessa destacar o uso do termo curadoria. No trecho, sua aparição parece sugerir uma outra função, diferente da que aparece no manifesto citado anteriormente. Trata-se do modo como a “mentalidade” do software Tay funciona para adquirir a “linguagem millennium”: seleção de dados por repetição de palavras-chaves em determinados sites e redes sociais num determinado tempo. Que tipo de subjetividade virtual vai sendo gestada em imbricação com a prática curatorial na rede?

Me parece que o eu que passeia pelos bosques virtuais– seja o internauta adicto ou o software Tay –  faz um trabalho randômico de apropriação  montagem (de palavras-chave, de temas, de opiniões, de “likes”), e vai (re)constituindo-se em um outro, recontextualizando-se em um (outro) eu. Não seria esse um exercício de subjetivação próprio ao contemporâneo que surge em meio às múltiplas plataformas disponíveis no mundo virtual e às possibilidades de autoficcionalização promovida pela exposição do eu na tela do computador que incita a escrita de si ou de seu avatar?

O que estou sugerindo é que a garota-software Tay pode dar uma dica de como nossa subjetividade pode estar se transformando: copiando e colando o material lido, “curtido” e reproduzido,  por meio da montagem e sobreposição dos fragmentos, montamos também um um outro eu, um outro modo de ser sujeito na rede.

Assim, se o primeiro uso do termo curadoria no manifesto marca uma continuidade com relação aos propósitos da revista quando era totalmente impressa, como ressalta o post de Silva, no segundo uso do termo, notamos uma evidente atualização da função do termo curadoria com relação ao meio digital.

O romance que saiu para passear: experimentações críticas

Por Fernanda Vasconcelos

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Dados da foto: Anthony McCall, Between You and I, 2006, tenth minute. Installation at Peer / The Round Chapel, London 2006. Photo by Hugo Glendenning, © Anthony McCall 2006

A tarefa de se aproximar da literatura contemporânea é um desafio instigante, pois algumas obras nos surpreendem por sua complexidade e por nos conduzirem a leituras que nos desviam do esperado. Assim tem sido investigar o romance A morte do pai (2013), da série Minha Luta, donorueguês Karl Ove Knausgård.

A narrativa é escrita em primeira pessoa e a priori nos sugere o relato da morte do pai do narrador, mas tal promessa parece ser adiada ao se abrir e expandir em inúmeros relatos cotidianos, lembranças e descrições minuciosas, que caracterizam materiais ficcionais que se acumulam, atingindo um equilíbrio sofisticado.

Apesar de a descrição acima sugerir a impressão de uma narrativa fragmentária, a natureza desse fragmentário é muito distinta a da experiência de leitura de E les eram muitos cavalos ( 2001), de Luiz Ruffato, apenas para evocar um exemplo brasileiro. Em A morte do pai, a mudança de dicção (ora o relato avança como reminiscência, ora assemelha-se a uma reflexão ensaística sobre arte) muitas vezes ocorre de uma maneira deslizante, tornando se quase imperceptível à leitura, que segue de maneira fluida.

Contudo, quando acreditamos termos sido capazes de nos aproximar da forma desse romance, tudo parece escapar. Isso ocorre, pois o autor trabalha o texto em sua materialidade, transformando- o em volume e textura, “experimentados” pelo leitor, como se estivesse em contato, por meio da narrativa, também com a “experiência” mediada por outros gêneros e outras artes. A tensão entre o texto narrativo e o ensaístico, no qual o segundo invade as brechas do primeiro, coloca em questão o papel e valor do “romance”, já que os comentários sobre a arte na contemporaneidade, apresentados de modo reflexivo, em tom ensaístico, são pulverizados ao longo do texto e sugerem o risco de nomear a narrativa como romance, pura e simplesmente. O modo variado e complexo de construção das cenas desafia o leitor a estar atento e a experimentar diferentes ritmos de leitura.

Talvez o auxílio de uma metáfora possa nos ajudar a trazer à tona um aspecto do romance que tentamos evidenciar. Em uma cena cotidiana e banal com o seu irmão, Yngve, o protagonista, questiona sobre a “escultura” que estava fazendo com comida em deterioração, prato, garrafa e cigarro ainda aceso: “pois o que é um recipiente que não contém nada? Não é nada? Mas o nada tem forma, compreende? Essa forma que tento demonstrar aqui”. Essa escultura sem forma, provisória, inacabada, funciona, em nossa leitura, como uma metáfora para o romance do autor. Há uma materialidade dos objetos e da própria linguagem (que ganha um volume próprio durante a leitura) sendo problematizada em primeiro plano pelo caráter ensaístico da dicção.

Outro elemento evidente e que parece crucial para a instabilidade da ‘forma’, da caracterização da narrativa do que lemos como romance, é o fato de que a imagem do autor-escritor vai sendo construída paulatinamente ao longo dos volumes que compõem a hexalogia.

O romance autobiográfico, como a ficha catalográfica da edição brasileira classifica o volume, apresenta o eu-escritor no seu local de trabalho, como se revelasse ao leitor o making of da obra.

Reinaldo Laddaga, em Estéticas de Laboratório: estratégias das artes do presente, comenta que em muitas narrativas contemporâneas é comum encontrar o que chama de “estado de estúdio” no qual o escritor aparece escrevendo ou comentando suas estratégias de escrita, tematizando-se em  seu local de trabalho. Este é um dos aspectos de nosso interesse.

Nada disso pode ser considerado novo. E é claro que é possível identificar genealogias. A mais comum, no caso de Knausgard, ainda que possa soar uma blasfêmia a muitos, é a narrativa proustiana. Ainda assim, o desafio da crítica é perceber sua diferença, um dentro (da tradição) e um fora (em direção a outras formas narrativas) em relação à história da forma romance, como afirma em entrevista a Hal Foster, Richard Serra, um artista contemporãneo, em relação à criação de própria obra:

“‘Dentro disso’ e ‘extrapolar minha obra’ indica que, uma vez traçado o caminho, a sua arte é conduzida por sua própria linguagem mais do que por quaisquer antecedentes. No entanto, para que essa linguagem não se feche em si mesma, a obra deve também permanecer ‘aberta’ e ‘vital’ por meio da construção por meio das exigências dos materiais, projetos e locais reais”.

Acreditamos que esses aspectos, o desafio do autor de lidar com uma tradição e ao mesmo tempo desvencilhar-se dela, escrever outra coisa, inscrever uma dicção própria, também são encontrados no romance de Knausgard.

Nesse sentido, esperamos ter ensaiado alguns apontamentos que nos aproximam da obra de Karl Ove Knausgård, já que o contato com a tradição e a busca do que transborda a respeito do que conhecemos como o gênero romance parece um bom caminho a percorrer que nos dedicamos a comentar criticamente o empreendimento do autor norueguês.

Seduzidos pelo autor: Karl Ove Knausgård na FLIP

Por Fernanda Vasconcelos

Masculinidade, masturbação, mulheres são alguns dos assuntos que o autor norueguês Karl Ove Knausgård comentou na mesa da Feira de Literatura Internacional de Paraty neste ano. Um dos grandes destaques da feira, o autor da série Minha Luta, movimentou o campo literário brasileiro causando burburinho nos bastidores e frenesi em sua recepção. Cercado por câmeras, críticos e leitores-fãs, o autor “astro” mostrou ter presença de palco ao performar com sobriedade, jogo de cintura e domínio literário a discussão sobre sua vida e trabalho como escritor. E os fãs-leitores, que parecem aguardar seus livros como se espera o uso da próxima dose de droga (como comentou o mediador da conversa), aguardaram o autor com a mesma fissura.
O autor, que parece sair do livro e tornar-se palpável “em carne e osso” no palco (ao procurar manter o tom ensaístico e também discutir temas encontrados nos livros), provou que seu fôlego ultrapassa as mais de 3000 páginas escritas que compõem os seis livros da série autobiográfica Minha Luta: “Karl Ove Knausgård, fez o que dele se esperava nesta sexta-feira quando surgiu como superstar no palco: mostrou demais, ainda que em termos literários, e não literais”, comentou um resenhista.
Sobre sua relação com o palco, Knausgård foi questionado pelo mediador da conversa na Flip, Gúrria-Quintana: “você disse que era mais fácil falar sobre essas coisas [trivialidades da vida íntima do autor que aparecem no quarto livro] no palco. Você fala do seu livro, como se eu e você estivéssemos tomando um chopp” E Karl Ove respondeu: “Eu acho que a situação é como escrever, a única coisa é que não é tão criativo assim, mas você tem que ser totalmente livre, dizer o que quiser, besteiras e permitir isso também. Conseguir dizer algo substancial também, mas eu não sei, vergonha é um tema dos meus romances desde o início”.
Knausgård mostrou que sabe seduzir o público com comentários reveladores sobre sua vida íntima transformada em literatura (ou seria o contrário?), seu processo de criação e as consequências da publicação de uma escrita que revela muito de si e também dos outros já que o autor teve de enfrentar as reações da esposa, familiares e amigos que aparecem nos livros, chegando a ser processado. A presença do autor também foi utilizada para divulgar a publicação no Brasil do quarto livro da série Uma temporada no escuro pela Companhia das Letras. Retratando sua adolescência, Karl Ove evoca os pormenores e banalidades dessa fase da vida como se realizasse um sobrevoo sobre o passado. Em longos trechos, a dicção parece reelaborar o vivido e aprofunda-se em reflexões instigantes que fazem do eu um outro.
Talvez essa seja uma das razões, associada às revelações polêmicas e à sua atuação pública, que justifique a superlativa recepção a seu nome de autor no mundo literário contemporâneo.

O áudio da mesa que teve a participação do autor na Feira de Literatura Internacional de Paraty encontra-se no canal da FLIP no Youtube.