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Viver (d)a literatura

Por Neila Bruno

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Crédito da imagem: Peter Ticien. Disponível em: <http://ronyblat.blogspot.com.br/2012/11/e-se-hoje-fosse-seu-ultimo-dia.html&gt;.

Segundo o sociólogo francês Pierre Bourdieu, a autonomização do campo literário está sujeita a três condições: a emergência de um corpo de produtores especializados, a existência de instâncias de consagrações específicas e a existência de um mercado.

Pierre Bourdieu sugere ainda que um campo é um espaço constituído de posições sociais, que podem ser ocupadas por diversos agentes e no qual a posição de qualquer ator envolvido implica em diferentes tipos de capital: econômico, cultural e social.

O capital econômico corresponde a rendas, proventos, recursos; o capital cultural refere-se aos saberes e competências, abrangendo também títulos e premiações; já o capital social estende-se às redes de relações e contatos que um agente forjou ao longo do tempo.

Elegemos esse conceito de campo como uma espécie de estratégia para entender as posições tomadas pelos autores que têm a literatura como atividade profissional.

Com o advento da internet e das redes sociais houve uma transformação radical na forma de circulação, divulgação e até de comercialização dos textos literários. Apostando na publicação em blogues e em outras plataformas eletrônicas, muitos autores encontram mecanismos alternativos ao mercado editorial tradicional.

O escritor Daniel Galera pode ser considerado um exemplo dessa nova geração de escritores no Brasil. Pioneiro no uso da internet, publicou textos de ficção na rede entre 1996 e 2001. Em seu site http://ranchocarne.org/ oferece obras para download gratuito, mas podemos dizer que Galera é um escritor consagrado, afinal, publicou obras por uma grande editora, a Companhia das Letras, e seus romances ganharam prêmios de prestígio: Barba ensopada de sangue (2012) foi vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura e finalista do Prêmio Jabuti e Cordilheira (2008) foi vencedor do Prêmio Machado de Assis e também finalista do Jabuti.

Os sinais de que é possível viver de literatura no Brasil estão visíveis ainda em outro exemplo quase antípoda ao de Galera: trata-se do escritor Luiz Ruffato. Para dedicar-se à literatura em tempo integral, Ruffato desligou-se do jornalismo em 2003: “Minha decisão se baseava numa intuição: se me mantivesse disponível para viajar e divulgar meus livros, talvez conseguisse uma maior repercussão do meu trabalho”.  O que importa ressaltar são as diferentes tomadas de posição dos dois autores mencionados em relação à construção de suas carreiras. Com a publicação do romance Eles eram muito cavalos (2001), Ruffato também ganhou prêmios importantes como o da Biblioteca Nacional e da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA).

Para Ruffato “já não causa tanta comoção quando alguém demonstra interesse em dedicar-se à carreira literária – isso por que, além do dado simbólico (a aura de prestígio que envolve o autor na sociedade), há efetiva possibilidade de viver de literatura no Brasil”.

A figura pública do escritor também mudou de estatuto. O campo literário se expandiu: os prêmios literários, financiados por instituições públicas ou privadas, abarcam valores consideráveis. Os lançamentos das obras também envolvem uma estratégia profissional e de marketing, participação em eventos literários, lançamentos em grandes livrarias e aparições na imprensa. Essa interação com o público leitor cria uma estratégia eficiente de promoção do livro.

Um outro exemplo que poderia ser mencionado, é o do ex-professor universitário Cristovão Tezza. Com 15 livros de ficção publicados, além de algumas publicações acadêmicas, o autor preferiu abandonar as aulas que ministrava na Universidade Federal do Paraná depois de vinte anos, para dedicar-se exclusivamente ao ofício de escritor. Essa decisão foi tomada em virtude do enorme sucesso de público e de critica que o autor alcançou com a publicação do romance O filho eterno, lançado em 2007.

Embora a antiga imagem do escritor como um artista por vocação ou talento, totalmente desvinculado do mercado, já tenha perdido terreno, sabemos que o processo de profissionalização ainda está em curso oferecendo grandes desafios aos escritores.

Acreditamos, assim, que uma questão como “quem é escritor profissional?” fica menos obscura quando lançamos um olhar sobre escritores que deixaram seus ofícios para viver de literatura.

Pesquisador nos espaços: sobre o IV Simpósio memória, (auto) biografia e documentação narrativa


Simpósio
(Conferência de abertura: “Documentação narrativa e investigação-formação-ação em educação”)

Rodrigo Estevão

No início do mês de abril, aconteceu, aqui, em Salvador, o IV Simpósio Memória, (Auto) Biografia e Documentação Narrativa, promovido pelo grupo de pesquisa GRAFHO (Grupo de Pesquisa Autobiografia, Formação e História Oral) da Universidade do Estado da Bahia.

A conferência de abertura ficou a cargo de Daniel Hugo Suárez (UBA), aconteceu em espanhol e o referido professor defendeu a adoção de um novo dispositivo pedagógico, a documentação narrativa, que, segundo o pesquisador, fomenta uma relação horizontal – portanto contra-hegemônica e descolonializadora – dentro dos espaços educacionais diversos.

A organização do evento previu discussão em vários eixos relacionados ao tema principal do evento. O Eixo Temático III: Documentação Narrativa, escrita de si e formação apresentou comunicação de pesquisadores que desenvolvem pesquisas afins a meus interesses. Participando da Sessão 8, coordenada por Carmem Sanches Sampaio (UNIRIO), conheci, além de outras propostas interessantíssimas, um pouco do trabalho de Jamile Maria Nascimento de Assis, estudante de pós-graduação da – vejam que interessante – UFBA. Em sua comunicação, A visão da Cordilheira: Daniel Galera e o campo literário, Jamile lança um olhar sobre a construção de imagens do campo literário no romance Cordilheira. Em uma leitura que se aproxima da minha em muitos momentos, Jamile não somente observa como vai se desdobrando o campo em volta da personagem escritora Anita, mas busca assimilar as experiências da personagem com as experiências de Daniel Galera (autor do livro) enquanto elemento do campo. Estratégias de inserção no campo e as perspectivas de literatura de ambos são contrapostas na análise de Jamile, o que me fez acreditar, mais ainda, na necessidade de um diálogo entre a minha pesquisa e o trabalho que a pós-graduanda vem realizando.

Não sei se, como apontado, Galera vem a ser um autor de sucesso (o sucesso me parece uma invenção do mercado). Contudo, é inegável que cada vez mais se comenta sobre o autor nos espaços acadêmicos. Penso, portanto, se isso significaria algo à figura de escritor de Daniel Galera. Acredito que vale a especulação.

Dante: um escritor construído por fragmentos

Rodrigo Estevão

A recorrente representação do escritor nas narrativas contemporâneas brasileiras aguça o interesse em buscar como esse tipo vem sendo construído na produção literária desse século. Nesse sentido, encontramos na obra de Daniel Galera uma forte contribuição para esse estudo, uma vez que a presença do escritor como personagem é significativamente salientada. Em meio a essa produção do autor, destaca-se Dante, personagem do qual buscarei traçar uma espécie de perfil considerando a forma como ele [o personagem] é construído. Isso mesmo, Dante. Não o Alighieri, mas Dante: escritor e irmão do protagonista de Barba Ensopada de Sangue, romance de Daniel Galera publicado pela Companhia das Letras.

A figura de Dante (moldada sempre em oposição ao irmão que, ironicamente, tem traços que nos remetem ao autor, como o gosto por nadar) vai tomando forma de maneira gradual, através de poucos – mas significativos – momentos nos quais, sempre através da fala de outros personagens, ele “aparece” na narrativa. A figura do escritor e seu mundo é sentenciada desde a situação inicial do romance, momento no qual o protagonista, irmão de Dante, em meio a conversa na qual seu pai anuncia que cometerá suicídio e o incumbe de sacrificar seu cachorro, responde ao pedido: “Por que não chama o outro? Ele vai achar graça nisso, quem sabe. Vai escrever um livro a respeito”, [grifo nosso] (p. 31). O recorte evidencia a representação do escritor como aquele que enxerga como possibilidade de material literário tudo que está ao seu alcance na realidade tangível.

A sentença ainda prenuncia um outro problema muito atual: é possível um autor de literatura viver hoje de seu ofício?  A representação de Dante no romance de Galera parece tensionar a posição do escritor colocado entre o capital simbólico e o capital financeiro. Nos termos de Pierre Bourdieu, sociólogo francês, o capital simbólico referencia-se por uma moeda de valor abstrato e está ligado ao imaginário das Artes em geral. Trata-se de, por exemplo, de ‘regalias’ adquiridas por conta do conhecimento ou do reconhecimento ou de um poder e local de fala mais privilegiados ou por tudo isso junto, já que esses elementos não estão necessariamente conectados. O segundo, considera uma moeda de valor físico, tendo como maior expoente o dinheiro.

Pois bem. Analisemos agora as dúvidas da mãe do personagem sobre o modo como o filho ganha a vida:  “Anos atrás eu cheguei a achar que o Dante era o filho que ia acabar se complicando na vida com aquela história de ser escritor. Até hoje eu não faço a menor idéia de como ele ganha a vida já que os livros vendem pouco e ele nunca vence os prêmios que dão dinheiro. Acho que é com palestra. Sei que ele tá em São Paulo vivendo num ótimo apartamento que conseguiu comprar (…)”, (p. 284)

A fala, além de insinuar o quão distante sua progenitora está do ofício de escritor do filho e o quanto ela entende esse ofício fora da lógica de mercado do capital financeiro (como se nota muitas vezes), respalda e potencializa um dos lados dessa caracterização construída pela dualidade dos dois capitais. A passagem, por um momento, nos faz acreditar que Dante é um dos escritores que se sustentam financeiramente por sua atuação no próprio Campo Literário. Porém o protagonista da trama funciona como uma ferramenta problematizadora dessa discussão, ao revelar, instantes depois, que o apartamento é financiado e o escritor divide as parcelas com a mulher. Ou seja, a literatura de Dante (e as esferas que a rodeiam) é suficiente ou não para lhe garantir capital  financeiro? Acredito que a pergunta permanece também na cabeça dos parentes do escritor, já que a eles parece improvável ganhar dinheiro escrevendo…

Ainda fundamentando esse aspecto, que é a base da construção da imagem de Dante como escritor, numa leitura detida de outro fragmento é possível notar que o autor dispõe o personagem como um escritor que necessita abdicar de suas atividades extra-literárias e se fazer, de certo modo, recluso, “Emprestei pro Dante também e ele vai me pagar de volta, mas não sei quando. Ele disse que só vai ter dinheiro depois de terminar o livro. Porque precisa parar de trabalhar pra conseguir terminar.”, (p. 289). Isto, de certo modo, romantiza a figura do escritor e reforça a distância cultural-histórica entre o Capital Financeiro e o capital simbólico conquistado pelo artista das Letras.

Em Barba Ensopada de Sangue, a narrativa de Daniel Galera convida o leitor a tatear, superficialmente, a figura do autor na literatura contemporânea. Nesse sentido, Dante se faz um intensificador de algumas discussões que envolvem o escritor no Campo Literário Brasileiro Contemporâneo, tornando-se relevante elemento para os estudos da representação do escritor na ficção de Galera e de outros autores. Dante é, portanto, uma pergunta que permanece: quem é esse escritor do século XXI?

BES*: Barba Ensopada de Sangue.

Uma nota sobre o romance Cordilheira de Daniel Galera

Rodrigo Estevão

“Toda arte é egoísta, mas a literatura é a mais egoísta de todas. Não há como escrever honestamente sobre qualquer coisa que não seja nós mesmos.” (p. 89), diz o personagem Holden no romance Cordilheira, de Daniel Galera, tornando mais intensa a tensão entre ficção e realidade que atravessa todo o livro.

O enredo do romance é movido pelo súbito, inexplicável e desesperado desejo da protagonista de ser mãe. Anita é escritora e seu livro ganha uma tradução para o espanhol. Para fazer o lançamento do livro, a personagem decide ir a Buenos Aires. Embora não se mostre muito empolgada com a oportunidade, aceita o convite da editora com a única intenção de passar uma temporada na cidade até encontrar qualquer figura masculina que possa dar a ela um filho, já que, Danilo, o ex-namorado, não cede à idéia.

É lá, na capital argentina, que encontra Holden, um rapaz misterioso e fã entusiasmado de seu romance, e logo começam um caso. Anita passa a morar com o admirador de sua obra e a fazer parte do cotidiano dos amigos de hábitos ultra-extravagantes de Holden: cada um de seus amigos, incluindo o próprio Holden, possui um romance autobiográfico, cujo enredo deve ser literalmente vivido pelos autores – a intenção do grupo é que a própria Anita viva a vida de sua personagem, já que todos acreditam que é preciso viver a ficção na realidade.

Holden quer atuar como se representasse o destino dos personagens do livro de Anita. Já grávida do argentino, ela resolve ceder aos apelos do grupo e fazer a vida emular a arte. Para isso, sobe até o cume do Cerro Bonete simulando a situação em que se encontra a personagem final de seu livro, acreditando que a troca é justa: já que Holden dera-lhe um filho, Anita está disposta a levar a encenação do romance na vida real.

Em Cordilheira, somos conduzidos por uma narradora-personagem (Anita) cuja dicção está baseada em uma linguagem bastante imprecisa, respaldando um aspecto que vem sendo notado na escrita do autor desde seu primeiro livro Até o dia em que o cão morreu: uma oscilação notável no equilíbrio da voz narrativa, que, ora assume a coloquialidade, ora insiste numa linguagem mais rebuscada. A brusca mudança da voz que narra o primeiro capítulo (um narrador em terceira pessoa em Como água) para a voz que predomina no restante do livro [a de Anita], pode ser melhor notada se colocamos lado a lado passagens como essas: “[…] ela perguntou deitando a escova sobre as pernas” (p. 10) [grifo nosso], “[…] tendo o corpo sacudido pelo pau de um desconhecido” (p. 80).

O amplo detalhamento do campo literário no qual a protagonista está inserida é que mais contribui para a construção da representação da personagem como escritora: explanações minuciosas dos eventos literários e situações não tão conhecidas pelo grande público, como reuniões com os editores e sua relação com os autores. Porém, não se pode atribuir igual juízo de valor positivo à aparição inesperada do personagem Esteban, de verossimilhança dúbia, por exemplo – não há nada no livro que indique algo que sustente o motivo do personagem na história, já que as passagens nas quais ele está presente não alterariam o enredo em nada caso não existissem.

Mas, para retomar o mote da relação entre ficção e realidade explorado pelo autor em Cordilheira, valeria a pena perguntarmo-nos se há alguma relação entre Anita e Galera. O autor tem sido enfático em afirmar que Anita é seu personagem menos autobiográfico. No entanto, não é possível escamotear a probabilidade de a personagem escritora do romance ter sido construída com base na experiência de Galera no campo literário brasileiro contemporâneo e esse aspecto representaria mais uma possibilidade de polemizar a delicada relação entre ficção e realidade.