Matheus Xavier

No romance Os supridores de José Falero, acompanhamos as vidas de Pedro e Marques, os dois jovens protagonistas, entre as vielas da periferia porto-alegrense. Os dois amigos se conhecem na rede de supermercado Fênix, no qual trabalham como supridores, abastecendo as prateleiras. Pedro é um leitor ávido. Logo no início da narrativa, em um dos muitos diálogos bem construídos do romance, explica a Marques, didaticamente, o conceito de mais-valia de Marx. E explica isso enquanto aprecia uma caixa de bombons. Marques fica boquiaberto. Toda a argumentação desenvolvida pelo amigo, aproximada à rotina de exploração que ambos experimentam no dia a dia, é atualizada e constrói uma crítica feroz às noções infames de empreendedorismo e meritocracia. Assim, ao longo da história, vamos conhecendo mais a fundo as duas personagens, e vemos como Pedro vai se consolidando como uma espécie de mentor intelectual dos planos que tem para montar um grande esquema de venda de maconha e abandonar a pobreza.
Pois bem. Feito esse apanhado geral, me interessa, aqui, um passeio pela Rússia retratada nos romances de Dostoiévski a fim de analisar os ecos russos que pude ouvir ao ser apresentado pelo romance de Falero à Vila Viçosa de seu romance, mas também à sagacidade e insatisfação de Pedro com sua vida.
Criado pelo autor russo no final do século XIX, Raskólnikov, protagonista do romance Crime e Castigo, é um jovem autodidata, assim como Pedro. Raskólnikov estudava direito, mas, por conta da sua situação socioeconômica precária, teve que abandonar os estudos. Morava sozinho em um cubículo e contava com o apoio financeiro da mãe que estava em outra cidade, junto à sua irmã. Para piorar a sua situação, havia algum tempo que elas não conseguiam enviar dinheiro. Tentando sobreviver em meio a uma São Petersburgo dividida entre os que têm tudo e os que pouco ou nada têm (desigualdade agravada pela modernização abrupta, que escancarava ainda mais a desigualdade social), Raskolnikov dava algumas aulas particulares aqui ou acolá, mas, ainda assim, não era o suficiente para ter dignidade, tampouco para concretizar o seu grandioso projeto pessoal. Eis que, ainda no seu tempo ativo dentro da academia, Raskólnikov escreve um artigo dizendo que a espécie humana seria subdividida em dois grupos: os extraordinários e os ordinários (ou comuns). No primeiro, encontram-se as pessoas — o plural aqui é questionável, pois, seguindo a teoria formulada pelo protagonista, esse grupo seria uma espécie de fenômeno de um em milhão — que seriam responsáveis pelos grandes feitos para o progresso humano. Por isso, são os responsáveis pelas elaborações de leis e, ao mesmo tempo, são capazes de transgredi-las, desde que seja pelo bem comum. O maior exemplo disso, como diz o personagem, seria Napoleão Bonaparte. No segundo grupo, encontram-se as pessoas que estariam destinadas a seguir o que for produzido e ordenado pelos extraordinários.
Os extraordinários, portanto, seria a categoria que teria o direito ao crime. E já que o próprio Raskólnikov se via nessa categoria, o crime seria legítimo, pois, por ele se autodefinir como extraordinário, poderia até mesmo matar em prol do progresso social. Considerando-se, então, uma das exceções à regra, uma pessoa extraordinária, concluiu que poderia transgredir a ética e a moral, decidindo matar uma velha usurária, justificando que ela só fazia o mal e não geraria nenhum bem social. Assim, pegando o dinheiro da velha, voltaria a estudar e, sendo ele um extraordinário, reverteria todo o seu estudo em benefícios à sociedade russa.
Há muitas diferenças entre Raskólnikov e Pedro. Dostoiévski quer afrontar a lógica de que os fins justificam os meios. Está pensando no salvo conduto dado a Napoleão e nas atrocidades que comete e pelas quais é louvado. O autor russo quer transferir essa autorização para o pobre personagem. Falero quer expor a falácia da retórica do mérito em um país tão desigual e com uma elite tão pouco preocupada com o bem comum, explorando o pensamento marxista. Apesar de realidades tão diversas e propósitos diferentes, chama a atenção a ligação entre o crime e o castigo em ambas as narrativas. Raskólnikov e Pedro se dispõem a passar por cima de tudo o que for necessário para atingir seus objetivos e, por causa disso, não calculam muito bem os possíveis desdobramentos de suas empreitadas. Mas o desfecho de ambas as narrativas não vacila em prever o castigo para cada um dos personagens. Ao olharmos para a realidade brasileira não é muito difícil encontrarmos diversos Pedros. Talvez Mano Brown tenha razão ao dizer que a frustração é máquina de fazer vilão.